O Navio PirataJhuPReÀReÀTEXtREAdÿÿÿÛ –¤¤ ¤0¤@¤P¤`¤p¤ƒûTitle: O Navio Pirata Author: Vitorino Nemésio CreationDate: Thu Jul 23 15:36:00 BST 2009 ModificationDate: Wed Mar 04 13:00:00 GMT 1970 Genre: Description: O Navio Pirata Vitorino Nemésio A publicação de O Navio Pirata, I'm Very Well, Thank You!, e O Arquipélago dos Picapaus, extraídos do livro O Mistério do Paço do Milhafre, foi gentilmente autorizada pelos herdeiros de Vitorino Nemésio. © 1998, Herdeiros de Vitorino Nemésio e Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8396-37-6 Lisboa, Janeiro de 1998 Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** O NAVIO PIRATA Jé Faleiro (conta Mateus Queimado) pertencia a uma tribo de pescadores do Pico que arribara à Terceira em tempos imemoriais. Talvez baleeiros, ou simples pescadores fugidos às fomes periódicas daquela ilha. A verdade é que os Faleiros estavam na Praia de raiz, com quatro ou cinco fogos espalhados na Ribeira do Mar e cheios de raparigas casado iras, de homens maduros e calados, de velhos graves que ajudavam à rede e, de perna encruzada, a galocha na ponta do meíto, contemplavam o mar porte irando e cuspindo. Eram Faleiros, por macho ou fêmea, muitos dos meus companheiros de arruaça. E, na venda de Antonico Faleiro, ao domingo, espreitando o renque de quartilhos que faziam ir e vir as maçãs-de-adão aos bebedolas como êmbolos no corpo de uma bomba, era à garotada Faleira que eu devia os meus maiores regalos espirituais. Santo tempo! Antonico Faleiro deixara a cana do leme pelo rebote; depois, o rebote pela medida de litro. Estabelecera-se. Dizia-se que fizera fortuna passando aos direitos da Alfândega tabuões arribados. E então?! Não seria um meio como outro qualquer de enriquecer?! Os madeiros pertenciam a navios de gente de longe, que naufragavam no Banco. Ali à vista da Ilha quebravam seus mastros para sempre, perdiam o poleame, ficavam enfim umas pobres carcaças sem governo. Nós íamos espreitar algum que conseguia exalar o último suspiro nos rochedos da Mamerenda. Era desses (oh! ... raros!) que Antonico Faleiro safava os esteios da bordada ou os pranchões da carga de f1andres, cobertos de gusano e de algas mais bonitas que o penteado da Rosa do Cabelo Vermelho, que Deus haja. O navio lá estava estirado, sem metade de um bordo, como meia queixada de um animal do Dilúvio. Um pedaço da mastreação, teimoso, de vante e embrulhado num retalho de pano encordoado, ainda conservava àquele lamentável esqueleto um pouco da graça e do atrevimento de um navio. Mas era um vencido, um cadáver! A tripulação desaparecera-lhe da coberta como a população de uma cidade atacada de peste negra. Um cordão de gaivotas debicava-lhe no círculo da água do costado. Mas nem isso! ... A bordo não havia que comer. Nem conserva frescal nem bicho morto. Apenas cá nós (<> - como dizia, verde de cólera, o Samiguel da venda, a quem pilhávamos a alfarroba de saca e os figos de seira, cheios de caspa) conseguíamos desencantar daquele cavername destroçado alguma coisa útil: uma polé inteira. .. um cachimbo ratado ... uma lata de cré ... E fazíamos da sua área abandonada pela Alfândega a cidade fatal da nossa pirataria. -Eh, r'pá!. .. -(E assobio. ) Um aulido suspeito já varou o ar de Inverno. A Praia está deserta; a tempestade, latente. Milagre é se em calçada ou passeio esturge um tamanco matutino. Mal se vê, ao rés dos telhados altos, sina linho azul de almoço em casa de gente rica. O <>, doente, faltou à escola. E da venda do Caboz (onde fica a chave, presa a um búzio), da venda do Caboz até à raigada da muralha erma e abalada da vaga formou-se aquela espécie de carga de cavalaria da garotada em férias, de sacolas apertadas, barretes enterrados até às orelhas, e o pião na algibeira dos calções como um grande bubão numa virilha. -Sume-te, cão! Vai-te encostar a quem te deve! Nã querem lá ver que o alma do diabo me ia atirando õ chão?! É o Cacória. Cachené ao pescoço, chinelo de ourelo no pé, bonezinho de veludo, não há maricas maior ao redol desta ilha. Tem a venda a Entremuros. Lá frita o peixe aos moleiros da Agualva e corta o queijo a quem quer. Mas quero cá saber! O que ele é é um grandessíssimo maricas e muitíssimo capaz de estragar o destino desta manhã à rapaziada da escola à solta. Nem mais!...Viu a malta dobrar o Casão do Sal; pôs aquela mão gorda e niquenta em pala sobre os olhos (o pitosga!) e lá foi…lá foi, que eu bem vi, avisar o Sr. Zozimo, por causa do Venâncio. .. talvez avisar meu pai, que tem medo da minha bronquite e não me tarda no encalço! -Foge! Foge, Segunda! Anda Tiazé, que eles vêm aí! <> O pobre do Porto Judeu bem pode esboçar o seu bailado tonto, na Casa do Peixe; torcer o pezinho de valsa e fazer aquela cara feia, de parvo ou de mártir, com que dá o pulo final a meio do terreiro arrematando a cantiga. A cáfila vai mais longe que o seu bordão de tolo. A cáfila já deixa no areal as pegadas da fuga e do mistério. Vão à banhada? Não, que o frio e o mar não convidam. Às giestas novas, à Ladeira Devassa? Não é o tempo delas. O cemitério, ao Vale Farto, ainda tem as despedidas-de-verão frescas do Dia de Defuntos. Quando nós éramos vivos Comíamos destes figos; Agora que somos finados Comemos dos mais passados ... Assim cantava o Ti Matesinho a meu pai, aos seis anos, para o obrigar a atravessar em fralda os quartos desertos e a meter-se na caminha ao pé dele. Os finados, vizinhos do Verdoiço ... As campas de labrostes e marítimos, de senhorões e de pedintes floridas de goivos e violetas uma vez cada ano... Lá estava, entre elas, a cargo do Cabo do Mar, a sepultura estrangeira: AQUI JAZ JACQUES ROUDÉ E SEUS COMPANHEIROS DE BORDO DO LUGRE <>, Q DERAM À COSTA D'ESTA ILHA EM JANEIRO DE 1907. P. N. A. M. -Não está? -grita uma voz, cá do cais, para um dos da patrulha de exploração escondidos atrás do forte, espiando os calhaus do naufrágio. Mas eles não podem falar. Além de ser longe, compenetraram-se da missão e do mistério pirata. Por isso só fazem de lá um sinal de braço e mão, que o vento, padejando a areia, equivoca e dificulta. Quer dizer que o guarda, naturalmente, foi caçar para a banda do Zimbral. Há lá pombos de rocha alapados nas furnas da craca. Quando, seguros da impunidade, chegámos à carcaça do veleiro, ainda felizmente não tinham tirado o sino que marcava os quartos a bordo. Zozimo de Sã Lazro pensara em arrematá-lo para a ermida de S. Salvador. Embora sem cepo nem cegonha, a sua fraldilha de bronze era toda jeitosa, com a marca de Brístol na borda, como os botijões de grés da botica da Misericórdia. Estava-se mesmo a ver o efeito que faria, ali chumbado à ventana do campanário da ermida, como o saiote dum anjinho. Mas nós tínhamos rachado a velha garrida à pedrada, só para a ouvir zoar e arreliar as Serrilhas, que moravam por trás. Valeria a pena Zozimo ir à arrematação ... picar ... ofender o Sr. Mendes, que andava com o olho nele para a sua casa das Vinhas? Com a busana da nortada, o guarda-fiscal desandara, ao arrepio dos pombos engaroupados no bacelo. Desandara Augusto Escanchado, posto pelo Faleiro de vigia aos tabuões. Certificámo-nos bem disso ainda cá em cima, do alto das brechas do forte, protegidos do inimigo pelo tufo, o vento e a nossa pequenez. O isolamento e a impunidade davam-nos uma coragem sem emprego: preferíamos talvez, agora que tudo ia fácil, conquistar o navio à pedra, assustando Augusto Escanchado, a quem mandaríamos previamente nuvens de barro e matacões. E talvez mesmo desafiar a cólera do guarda mandando-lhe ao focinho as raízes esterroadas das caneiras. Responderia à pistola ... Diante da hipótese, os olhos do Segunda brilharam. Ele tinha um <> de ferro, surripiado ao Jirome Parrampolha, o carcamano, que agora consertava guarda-sóis e punha ferrões de encaixe na lojinha das Camareiras. Estava na sucata da tenda, entre varetas e dedais. Um <> deveras! O Parrampolha, bêbedo, encostava-se à sua bigorninha de soldador a bater o metal e a resmungar, que bem podiam entrar carros e carretas, bombos e violas: ele não dava por nada. E o Segunda, rente como um gato, safou-lho. <> Que pena!...Mas o guarda não estava. Apoderámo-nos do navio sem perigo nem resistência: era portanto preciso extrair de nós mesmos o primeiro e organizar a segunda. Venâncio, trepando à proa da carcaça, assumiu o comando da equipagem. Nós sabíamos muito bem que os navios se governam à popa ou a meia-nau; mas tínhamos a impressão de que, assim como no peito-feito está o desafio e a coragem <<< Cospe-me no nariz, se és homem!>>), assim nas proas, mesmo meio submersas, está a glória e a vantagem da rapina. À falta de peça, Tiazé tocou o sino para celebrar a implantação do nosso almirantado no navio dado à costa. E, como o Segunda se deixasse vazar -malcriado! -o Venâncio ferrou-lhe uma chapada no focinho. Breve e casto incidente ... Dividimos então as nossas forças em duas tripulações. Seríamos para aí uns quarenta à saída da escola; mas a distância a percorrer, o medo da denúncia do Cacória, o atrito comprido e ventoso das nuvens de areia do areal tinham reduzido o êxodo a uns doze, quinze piratas, se tanto! Duas tripulações que se revezariam na ocupação e manobra do navio. Mas, apesar do complicado e belo ritual da rendição -em que introduzi, a título de santo-e-senha, umas americana das ouvidas a meu tio António Queimado Baleia ( -Au du iú fi disemorna? - À nivélio alcance-o!), a vida a bordo tornou-se-nos chata, sem horizonte. Seriam onze horas da manhã. Estávamos ali desde as nove, nove e meia. Até há pouco tínhamos esquecido tudo: a Praia, o tempo, os suspensórios dependurados na farfalha das caneiras. Agora, porém, começava a entrar em nossos corações piratas o farpão do repouso e a nódoa da cobardia. Não tínhamos feito nada que se visse ou prestasse, naquelas duas horas de folga e de trégua dada à vida. Não merecíamos o feriado, o naufrágio, a sineta de bordo, nada! Antes ir às rãs, às poças do Paul, e à junça, ou enviscar os nossos sutis de cana nos cerrados ceifados da Rua Alta. Surpreendemo-nos uns aos outros nestes pensamentos a medo, sentados em círculo na calheta cheia de calhau rolado, à beira do navio perdido. Venâncio, chateado ou desiludido, descalçara-se e percorria as cristas mais perigosas da rocha até aos visos do Zimbral. Depois, enterrado na água até às virilhas, desarraigou de um pesqueiro meia dúzia de lapas bravas e, mesmo sem pão, chamou-as à pá do bucho. Ele próprio, o grande almirante Bigorrilhas (outras vezes, em seco, capitão Fandulha Alstrecó), para ali estava parado, atoleimado, inerte ... Que fazer? Eu disse-lhe não sei o quê, a ver se o espertinava. -Vai ber ... da ... Nisto, assoma uma cabeça à brecha grande do forte -uma cabeça civil, correcta: um chapéu de coco. Seria meu pai ou o de Venâncio? Eu tinha o justo e sagrado terror da perseguição ao filho pródigo, e fiquei sem pinga de sangue. Mas a hesitação foi breve. Aquele coco não podia ser... não era o de meu pai. Naquele coco devia estar a perfídia e a denúncia do Cacória, o seu visceral ressentimento contra a garotada da escola; e o pai de Venâncio ficava-lhe mais à mão do que o meu. Começou então a caçada habitual do pai atrás do filho. Venâncio, incapaz de responder torto, era incapaz também de se deixar cercar. À vista do autor dos seus dias, lançado em sua perseguição por desobediência de fuga, nascia-lhe na boca um sorriso amarelo como a morte, um sorriso terrível que nos enchia de medo e de espanto. E Venâncio galgava, adiante da bengala do pai, ruas, esquinas e travessas, cantos, paredes e portais; mas deixar-se agarrar, ceder ao gesto aliciante e cominatório -<> -isso, por nada deste mundo! Naquele sorriso do tácito desobediente tremia, como uma flâmula, a nossa coragem sopeada. Naquela obstinação revia-se o nosso instinto de liberdade ofendido por tanta espionagem. Vendo Venâncio sumir-se na crista dos penedos, e o pai, no atalhinho da rocha, cada vez mais danado, perdemos a cabeça, desatámos aos vivas e às palmas. Tiazé, roxo de rir, tocava o sino a rebate. O Segunda soltava aulidos de santo-e-senha. O pai de Venâncio, que perdera a paciência e o chapéu, acabou por perder a linha. E só então sentimos, naquela cobarde arruaça, o travo a coragem e o sangue da nossa pirataria. I'M VERY WELL, THANK YOU! João Cachalote passa as tardes sentado à janela da cozinha, a espairecer. Vê-se dali a venda do Adrião e o mar. A venda do Adrião tem um foguete atravessado na porta, a servir de reclame, e, nas tardes de Inverno mais puxadas de vento, meia porta fechada. É justamente nesses dias que as filhas de João Cachalote o não deixam sair e lhe sabe mais a janela. -Vou ali num instante à venda do Adrião e já venho ... -Ah, senhor! Acomode-se o pai prà i! Com um tempo destes! ... Quem fala assim a João Cachalote, mestre trancador de baleia conhecido desde o Banco da Terra Nova até às Ilhas de Baixo, e capaz de dar uma pontuada de arpão atrás do ouvido de um mosquito ou de pegar em meia fanga de sal a pulso para dar com ela na cara de quem lhe disser que mente?! <>, pensa João Cachalote, que se arrasta até meio da cozinha encostado ao seu cacetinho de jacarandá com meio dente de marfim aplicado às conteiras, e já vai remando outra vez para o lado da janela, indeciso entre teimar e sair mesmo ou amassar-se na cadeira ao pé do gato. Lá está ele, o Sobe-e-dece, a aproveitar o borralho do xale que o velho largou na cadeira, e de barriguinha a papejar como o motor das primeiras lanchas que se atreveram a querer desbancar remo e escota ... João Cachalote navega com dificuldade perto das águas do gato e não tira os olhos dele. A serenidade do Sobe-e-dece aconselha-lhe resignação. Enxota-o primeiro como amigo; mas o gato boceja e demora-se, e o velho, lembrando-se de que não refilou bastante com as filhas, aplica um berro dos seus, dos antigos. O gato esgueira-se rente ao sobrado da cozinha, e João Cachalote, de xale pelos joelhos, senta-se. As pequenas têm razão: está vento. Cada rabanada na rua, que é o poder de Deus! Titritite…Uma nuvem de areúscos vem experimentar a vidraça. E que grandes salseiradas no forte, quando os vagalhões de arco formado longe já não podem mais e rebentam! Ali sentadinho debaixo de coberto enxuto está-se muito melhor. De mais a mais, o céu promete água, todo sujo e mexido por rodilhões de nuvens que João Cachalote bem conhece. À porta da venda do Adrião perguntam-lhe sempre: -Tempo siguro, sô João? -O vento stá descaindo a és-nordeste ...Mau sinal! Temos trabuzana. A nã ser que aquela nesga ali a barlavento abra mais ... Hoje é um dia desses: triste, embaçado, maciço. (E João Cachalote faz pinchar a bengalinha de jacarandá no soalho.) Fez aquela cara feia que parece trazer na algibeira como uma máscara suplementar, aquele enfado de bigode pendido, amarelado nas guias pelo queimor do cachimbo, com que fala às vezes à gente; -mas no fundo sente-se bem disposto e está gostando. O mar lá está com a carneirada toda, esverdinhado, e de quando em quando aquele seu urro da rebentação, seco e certo. É assim mesmo que ele gosta. Encosta-se à cadeira e afirma-se no debrum do forte (para ver, está por ali. .. ): catatau! -outra vaga estoirada. A alegria do velho é tão velada e tamanha, que, apesar de se lhe não ouvir uma palavra, parece que aplaude: -Chega-lhe! Mas da venda do Adrião vem um bafor de ajuntamento humano, uma insinuação de jogatina e de cachaça. É um quase nada. É agora esta velha que deita o xale pela cabeça e sai de lá com meia barra de sabão embrulhada e o cantil de vidro enforcado no dedo mendinho, com a pinga para o homem. É depois o Adrião perna de pau que chega à porta, cuspilha para o meio do caminho e se mete logo para dentro. João Cachalote mexe-se na cadeira, esboça uma nova investida. Não, que elas ralham. <> são três: Teresa, Joaquina e Rosa. A mãe, também Rosa; mas a mãe já lá vai, infelizmente. Isso não é coisa que dê por nome de vivo nem se traga à baila de mistura com aquelas três criaturinhas que o não deixam pôr o pé em ramo verde: <> <> <> O velho empertiga-se e, saracoteando-se na cadeira, imita as filhas uma a uma; arregala os olhos, de esconso, a ver se alguma aparece; quase que berra, em desforra de tanta aperreação: <> Joaquina entra, pé ante pé, espreita um pouco, e pergunta: -O papá disse alguma coisa? Está com mais dores na perna? O velho faz meia rotação à esquerda, bufa furioso -e mais nada. Joaquina, <>, é quem todo lo manda em casa. Tende, coze, faz barrela, todas as semanas passa uma boneca de óleo de amêndoa doce nos tarecos. Doralice, um esfregulhinho de treze anos, neta da vizinha Cacória e afilhada de Rosa, <> , faz os mandaletes e já tem as mesmas peguilhas das amas. Joaquina atreveu-se a encarregar o <> de quitar João Cachalote, quando, à hora da deita, se encaminha para o quarto, de pôr a bengala de castão de marfim ao canto do escarrador. Há-de ser por força detrás da porta do quarto de jantar, com os três guarda-sóis das filhas! O José da Praça, que entra na venda do Adrião. .. Deu por ele cá na vidraça; riu-se; fez um sinal de cabeça, como quem diz: -Então hoje não vem um bocado até à venda?... Ele fez-lhe de cá um gesto vago, um passe de mão dos vidros para as nuvens, como quem responde: -Obrigado; mas não me apetece sair, com um tempo destes ... O que é, é que não pode ... Porque não há-de pensar, ao menos, com franqueza? Não o deixam! <> ralham. E João Cachalote ouve a risada escarninha do José da Praça, o seu maior amigo, agora que estão ambos uns caqueiros. Passam horas e horas na venda do Adrião a falar de forças e de <>. Com o tempo assim como hoje, a conversa pede histórias do mar, dificuldades de tripulações a contas com navios desarvorados: um inglês chamado Jack que levou o João Cachalote à rua das mulheres da vida, em São João da Terra Nova, e duas sentaram-se-lhe uma em cada joelho a puxar-lhe o bigode e a cantar. José da Praça ouve-o, bambo, com as suas manápulas de carniceiro encostadas aos rins. Hoje, que oiça quem quiser e vá para o diabo que o carregue mais a sua rica liberdade! Vive sozinho com um filho solteiro, o Quincas, na Praça. É por isso que lhe chamam o José da Praça, onde tem a casa e o açougue. Mas esteve mais de vinte anos na Bahia, estabelecido no Caquende, e juntou uns vinténs bons. Trouxe de lá aquele filho meio amulatado e baixote, com aquele andar de capoeira e um sinalzinho na cara, uma espécie de uva passada. As moças morrem por ele. Por onde será que lhe pegam? João Cachalote não sabe, nem se importa. O que sabe é que o Quincas lhe rondava a porta, gingando, o olho de boi languinhento por cima da uva passada. João Cachalote -a pau... De inculca em inculca, descobriu Rosa afogueada, a meter-se para dentro da janela. Não ponhas mais na carta... -Seu Quincas, sou muito amigo de seu pai, mas se você me não varre a testada quebro-lhe o focinho! Quincas mediu o velho: João Cachalote marchava enganchado, escorando-se passo a passo àquele seu cacetinho de jacarandá encastoado de marfim. A pele, de encarquilhada, tinha pé-de-galinha nos olhos. Mas a linha da testa ao queixo -<> era sinal de quebrar mesmo. Quincas lembrou-se do pai; lembrou-se da sua querida Joana da Travessa do Ourives; lembrou-se dos ossos inteiros e foi descolando, grunhindo ... Rosa emagreceu muito, mas foi pouco a pouco esquecendo a uva passada do Quincas. Pois! Assim é que é! João Cachalote lembra-se destas coisas por alto, por dentro da vidraça da cozinha, em frente da venda do Adrião. Vê-se lá longe o forte, com as peças servindo de frades, de culatra para cima. Enterradas no barro coberto de areia e bálsamo, cheias de craca e de ferrugem, nem parecem já peças verdadeiras, do tempo dos Auxiliares da Costa! No paredão que divide o cais do mar -o velho argolão a que deitam a amarra os lugres. Foi ali que atracou o bote da chalupa americana para o levar para bordo, fugido ao recrutamento. Com o guarda perto, o Broca (mal encarado, quezilento no imposto do pescado ... ), como havia de embarcar sem no verem? Foi então que teve aquele expediente de descer a rocha do mar com a trouxinha às costas, atirando-se da fonte da Amoreira à água -e ala! a nado, até ao bote, que virara de bordo à sorrelfa. Deixava atrás o rochedo da ilha a pino. Lá em riba, num atalhinho -o vulto do pai, que diz adeus ... A tarde está cada vez mais escura. É o tempo, que entruvisca; mas ainda há lugar para a claridade do dia ir abaixando o registo até o sol morrer. Lá para trás da casa está Rosa cantando: Eu ia pelo mar fora, Cheguei a meio, parei... Estupor de gato! Não querem lá ver que, de pata a cardar o dono, lhe afia as unhas na mão?! João Cachalote lambe uma arranhadela do polegar, um risquinho de sangue à toa. É esse dedo que ele usa para se agarrar à bengala, no trajecto de casa à venda. Antigamente sim, que o dedo tinha outro ofício: empunhar com firmeza a haste da lança baleeira, fazer ponto e trancar. Uma estrada de sangue unia o cachalote aos homens, atentos à selha da linha, com medo de alguma coca. Cheirava a camisa suada e a corda ardida: -Força à ré! Ah! Tempo e dedos! Baleeiros de uma cana! (<>) Acenderam agora mesmo o farolim do Espartel. Farolim!. .. Uma candeia num espeque, que todos os dias bebe um nico de querosene! Farolim era o da ponta ao norte de Betefete, que dava aquele arrefião de luz pulsada, a grande vassoira branca que ia varrer lá longe o casco ao cutter ... -How do you feel this morning? -I'm very well; thank you, filho duma cadela! (Que, na América, quem quer chamar filho da mãe a uma pessoa diz é sana bòbicha.) João Cachalote tem saudades da América e do carro que o levou de Nova Inglaterra à Califórnia. Ouve ali da cadeira o bombear dos rifles da noite. Está de xale pelos joelhos -e é como se estivesse a bater o cascalho do filão no crivo, quando andava nas minas de oiro. Agora, já nem joeira o trigo durázio que lhe vem das Trunqueiras, das terras da sua santa mulher, que Deus tem. Teresa, <>, lá está com Joaquina e a afilhadita de Rosa a joeirar no garnel. Rosa onde está? (lembra-se de repente do caipira do Quincas, gingando): -Rosa! -chama ele, como quem crama. A voz vai longe, para além do preciso. -Pai. .. ? -canta uma voz do céu. E entra uma mocinha de vinte anos, repatanada e fininha, toda vestida ao Carmo como se fosse uma noviça. Ah!. .. (pensa João Cachalote para lá das pregas da testa): aquela já não precisa de bengala nenhuma para a defender do Quincas e quejandos, com aquela correia à cintura, passada no olhal de osso. -O pai que me quer? -pergunta a filha. depois de um silêncio em que se medem ambos: ela sorrindo, ele salamurdo. -Eu que quero?! Quero que me tires aqui o xale dos joelhos. que só serve pró gato me inquietar ... Rosa retira-se com o xale dobrado e um sorriso maternal no queixo fino. Está cada vez mais parecida com a mãe, Deus a guarde! Gasta as manhãs na igreja a ouvir o padre e a cantar, do fundo do bioco do manto: No céu, no céu, no céu Eu vos verei um dia! Depois, com a nave deserta, enche-se do relento das capelas e rodeia as santinhas de açucenas. Tem uma pele que parece nascida no quintal, das rosas rainha-da-hungria. Não será nariz deste mundo que lha há-de cheirar, se Deus quiser! João Cachalote não é poeta nenhum e mal sabe assinar o seu nome numa pauta; mas palavra de honra que é assim que cisma n' <>! E lá ficou ele a pensar que, se tem aquela Rosa e uns benzinhos, foi a outra Rosa, que Deus levou, quem lhe deu tudo. Os bens e as três filhas, já se sabe. Contanto que o deixem ir um bocado até à venda ... Agora, a noite caiu de todo, e a fundo. O gato safou-se; e, como ainda não há luz de candeeiro em casa, sentem-se melhor as coisas, que, de dia ou com a torcida alta, não dão rumor de si: baratas, tábuas de soalho aluídas, um grão que algum rato deixou para trás do buraco, na pressa. João Cachalote já não vê se o mar está verde ou se tem carneirada à de cima, mas sente-lhe a grande pulsação salgada e viu agora mesmo a sua forte fosforescência. Na venda do Adrião acabam de acender o bico de acetilene. Estão a jogar às cartas. O velho não vê senão uma réstia de luz que varre a soleira da porta; mas sabe que estão numa bisca; sente a pressão de uma sota encovada na mão esquerda; estala-lhe ao ouvido um ás numa puxada de copas. A bordo do Free Town jogava-se forte, a meio peso. O Jack, à direita dele, cortava; quem tinha a mão era um negro de Kentucky, um da cozinha. O negro baldou-se a oiros; a roda correu. Na última vaza -a manilha de copas que cai da mão do negro! -João Cachalote sente-se levantar no baleote de proa e chapar todo o peso da mão no focinho do negro de Kentucky. Uma navalha luziu: -Charape! Sana bagana!  O Jack joga uma cabeçada ao negro, e acaba tudo a apito e a solha do capitão Matthew. À força de tão bem lembrar, João Cachalote ergueu-se mesmo. Apesar do cacetinho de jacarandá, que não o larga, as suas passadas não têm firmeza: vai bordejando um bocado ... bolinando da vidraça até ao corredor. .. do corredor à porta da rua, que abre e que encosta atrás de si. Em São João da Terra Nova o que se jogava era o best, em casa das raparigas de uma rua escusa do porto. Uma vez que lá entrou mais o Jack puseram-se-lhe duas ao colo, uma sentada em cada perna. A do joelho esquerdo (e o velho desce um degrau) era uma ruiva forte, perfeitaça, sardenta ... A do joelho direito ... Grande estreloiço nos degraus: o baque de um corpo e de um pau que rolam combinados. -Rosa! Rosa! -gritam Teresa e Joaquina, à porta do granel. -Acode aqui, que o pai ia prà venda e caiu da escada abaixo! O ARQUIPÉLAGO DOS PICAPAUS Noetium phantasmata ne polluantur corpora. Estou casado há meses, na Ilha (conta John Derosa, súbdito norte-americano), com um corpo feminino que se compõe da maré-cheia, das nuvens algodoadas, dos bicos dos penedos e desta aragem carregada de sal que me visita no torreão da Ponta Negra e faz tremer as folhinhas amargas e verdoengas dos salgueiros. É…Minha Mulher a Solidão. Procuro em vão, no fundo do meu saco de aventuras, farrapos de experiência que se assemelhem a isto. Nem Kate, cujos ombros olímpicos me levantavam meia jarda inglesa acima da dobra do lençol. Este ser de nada é mais bravo. Vera, a italiana, dava-me beijos preparados com uma pastilha de fruta que me deixavam sem forças e de meninges a latejar. Mas de manhã, quando abro a porta para o caminho, o mar envia-me um pique mais doce e bravio. E desisto de comparações simplesmente idiotas. Isto deve ser uma pontinha de febre enxertada num certo esgotamento dos meus trinta anos excessivos, e já me lembrei que, tomando brometos, talvez esta espécie de mulher marinha se safe, como se eu fosse um corpo aberto. O Prof. Sousa Júnior, aqui retirado há anos, e que além de médico eminente é um coração de ouro e grande cavaqueador, falou-me de sífilis hereditária e deu-me calomelanos. Melhorei um pouco, mas não ... Isto não vai com drogas. Asseguro que estou casado com uma mulher de sal e que vai dar-se aqui uma coisa tremenda que fará gemer os prelos! Trata-se, pelo menos, de uma ilusão singular. Esta noite sonhei que a Solidão deixava de ter aquele corpo quimérico e feito de linhas de limite, para tomar as formas aproximadas de Nanette. E acordei a chorar como uma criança: -Minha Mulher a Solidão é Nanette! E, ainda, num halo de delírio: -Nanette é Minha Mulher a Solidão! Como foi? Não sei bem. Parece que eu deixara Nanette num país esquisito e inabordável: o arquipélago dos Picapaus. O nome era devido à configuração dos estranhos habitantes dessas ilhas: tipos ferozes, gargaludos, providos de narigueiras que farejavam tudo de alto a baixo. Nanette, que eu levara à falsa fé, sob pretexto de uma regata, não queria desembarcar no único ancoradoiro da Picapau Grande, cortado entre falésias mosqueadas de líquenes cor de fogo. Eu, verde e perfídia, disse-lhe: -É só por um dia, meu amor! E ficas muitíssimo bem entregue ... Vá, minha filha! Ponha aqui o seu pezinho no primeiro degrau do cais ... O chefe dos Picapaus dissera-me ao ouvido que no arquipélago se desenhava uma tendência à mutação nos caracteres antropológicos da escassa cidadania. Os narizes pencudos, de alto faro, tinham provocado afinal uma epidemia terrível que dizimava em massa as tabas: a rinite picapaual. Além disso, um vento misterioso, soprado dos seios do Pacífico (o arquipélago dos Picapaus está mais ou menos na latitude do golfo da Califórnia, entre 25° e 30° de latitude norte), apanhara a população de surpresa nas suas tarefas habituais -a picagem do pau de rolo -e cortara cerce os pescoços de mil e quinhentos cidadãos. Se eu quisesse, mediante um cheque de cem mil dólares, ele, führer natural do arquipélago, receberia Nanette em depósito durante dois ou três anos e fá-la-ia conceber de um ou dois picapaus mais decentes. Animado pelo secreto desejo de enriquecer e encobrindo a própria vileza com reservas mentais de palingenésia, fechei a transacção. Fomos ao banco de meu primo James Derosa e recebi metade do estipulado. Preferi o esterlino. A outra metade ser-me-ia entregue quando me restituíssem Nanette com um quinto dos picapauzinhos humanizados que ela houvesse, a bordo de um navio do contrabando do álcool tripulado por marujos da confiança de Al Capone. Consegui enfim vencer as últimas resistências de Nanette. Ela era romanesca, de uma docilidade de cadelinha, e confiava em mim como as pombas palonsas que, na Praça de São Marcos, em Veneza e antes de Tito estar às portas de Trieste, vinham comer milho americano disposto grão a grão nos meus ombros enchumaçados, sob a forma patriótica por que se agrupam as estrelas na bandeira dos Estados Unidos. Comecei por dizer-lhe que precisava estudar os costumes dos Picapaus para esclarecer um ponto controvertido da história do Canadá, minha especialidade. E creio que lhe falei vagamente em hibridismo e nas ervilhas lisas e crespas das experiências de Mendel. Ela, que copiava com tanto amor todos os meus verbetes, desembarcou carregada de tiras de papel de costaneira, e com uma grande caneta de uma marca que oculto enquanto me não derem mil dólares para a revelar aqui. Eu ia dar um bordejo a outra ilha e dali a seis horas voltava. Escusado é dizer que não voltei. .. Não posso precisar todos os pormenores do sonho, mas foi horrível! Os Picapaus hospedaram Nanette numa casa abjecta, onde mulheres de baixa esfera a cobriram de chufas horrendas e a untaram de um creme afrodisíaco. Nanette ainda tentou resistir às megeras a pulso -aquele seu pulso fino e endurecido a transportar os nossos móveis, a pegar nos filhos alheios e a encerar o meu escritório. Não pôde. De cabeça baixa, a testa afogada na mecha de cabelo que às vezes desfazia e descompunha para me dar a impressão da Mãe no Manicómio (filme que me aterrou), chorava em fio e tinha o queixo marcado pelas unhadas dos Picapaus. Algumas lágrimas me caíam também, feitas pedras de gelo; outras iluminavam o chão do cais do regresso, como carvões espalhados de uma braseira honesta. Quando acudia à pobre Nanette, acordei. Eram cinco horas da madrugada. Agora, na Ponta Negra, amanhece mais cedo; entra na minha alcova uma luz mortiça e creme e o coro dos melros pretos de bico amarelo nos faiais. Como a casa onde moro é escaiolada a vermelho, parecia-me estar numa das falésias do ancoradoiro da Picapau Grande, toda mosqueada a fogo e tinida dos dólares do resgate. Esfreguei os olhos e atirei com a dobra do lençol. Cá fora o mar desenrolava-se azul, sem uma ruga. A luz do farolim da Ponta do Cavalo ainda pulsava a distância. Cantava um galo: respondia outro -e mais nenhum. Eu sei que há uma ligação secreta entre a fauna torpe e absurda que nos povoa os sonhos e o fundo inconfessável que levamos connosco até à cova. Talvez eu deixasse Nanette nalguma casa suspeita! Talvez eu esteja casado com Minha Mulher a Solidão ...  How do you fell this morning? I'm very well thank you.  Son of a bitch.  Shut up! Sun of a gun!