Os GatosJ`@€,€€,€TEXtREAd$†”” ”0”@”P”ogTitle: Os Gatos Author: Fialho de Almeida CreationDate: Fri Jul 17 15:40:00 BST 2009 ModificationDate: Wed Apr 08 06:20:00 GMT 1970 Genre: Description: Os Gatos Fialho de Almeida Os excertos aflui publicados foram extraídos do livro Os Gatos. © 1998, Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8396-44-9 Lisboa, Março de 1998 Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** OS GATOS 10 de Dezembro Setúbal é, como naturalmente sabem, uma cidade pequena, na margem do Sado, vivendo magramente de banhistas e fábricas de sardinha. Tem quatro velhas paróquias, de roda de cujas igrejas se enroscam vielas nauseabundas, dois conventos ou três, sem maior importância arqueológica -excepção feita ao de Jesus, de que falarei depois com mais vagar -e como obras modernas, uma extensa avenida marginal sem terraplenos de cais ocultando a imundície da praia coberta de dejectos, alguns desmazelados jardins impasseáveis, e uma estátua a Bocage, vestida de criado de ópera, defronte dum portal gótico, e ao pé dum chafariz seco. Na varruscadela à pressa das ruas, na brunidura módica de certas casitas novas, na ornamentação dos passeios e alamedas suburbanas, uma pelintrice salta, de cidade que se acapitala, sem estipêndios fixos, particulares ou municipais, e a quem a necessidade da clientela banhista impõe, no Verão, despesas, cujos frutos a penúria do Inverno inutiliza. Nos bairros velhos, como as construções são primitivas, nulo o conforto, a higiene um mero acinte, acontece que a podridão dos lares corre nas ruas, descoberta, em jorros negros, cujo fartum humano se intromete ao do peixe podre, e ao dos monturos acogulados pelos cantos. Esta povoação de meias sujas, velha e mesquinha, espécie de Ribeira Velha complicada de Alfama e Cruzes da Sé, alastra-se à beira-rio num leque branco, cicuntornado de pomares e de arvoredos, para além de cuja fímbria se alteia depois um aro de serras magníficas, com tiaras de rochas e pinhais. Estes pomares, laranjais na maior parte, que a epidemia arrasou em alguns anos de devastações não combatidas, foram por muito tempo em Portugal um oásis raro, tornando o vale de Setúbal numa corbeille-caçoila, reconstruída sobre desenhos do Éden, e a que parecia estar de guarda, Palmela, a prumo na serra, crenelada e estupenda, com o seu formidável ar de ninho de dragões. A laranjeira morta, as vinhas filoxeradas, outras frondes cobriram a argila riquíssima das veigas, árvores novas supriram, nos regadios das quintas, os cadáveres das antigas, e o pinheiral desceu até dos píncaros, a povoar as calvas que os agricultores não replantavam. De sorte que o forasteiro sincero, depois que passeado na cidade, se vai desinfectar do seu mau cheiro aos campos, ao surpreender o contraste da obra de Deus com a dos homens, a primeira oração que faz é pedir aos céus o terremoto, agora que o marquês de Pombal já cá não volta, com um indulto para o Convento de Jesus, para os castelos de S. Filipe da Serra e S. Tiago de Outão, para os portais da igreja do Sapal, e algumas miudezas mais de que este exíguo roteiro não dá conselho. Foi o que eu fiz em toda a consciência, depois dum dia de passeios no Bonfim e gasosas no Lapido, vendo as sécias alentejanas, com colares de varina, pavonear modas confeccionadas nos ateliers da Rua do João Galo e Beco das Donzelas, sobre fazendas de quatrocentos e quarenta o metro, entrando as guarnições. Fui-me pròs campos, e como tinha os ouvidos cheios de sumptuosidades reais da torre de Outão, tomei um carro e fiz-me transportar té lá, no decidido propósito dum inquérito formal sobre as quantias e luxo esparso naquele tronício estábulo de Verão. Há um macadame de via larga, entre a cidade e o castelo, à beira-rio (a famosa estrada de cinquenta contos o quilómetro, feita em três meses, a tiros na rocha, cos britadores suspensos de cordas, a medonhas alturas sobre o rio), e assim o percurso antigo se abrevia, por maneiras de pôr Outão num arrabalde quase da cidade. Apenas transposta a casaria do arrabalde, a poente, e os pomares e jardins da casa O'Neill, começa uma rampa leve a nos fazer subir os planaltos primeiros da riba Sado. À esquerda o rio alarga-se; pela direita, montes cavalgando, vinhedos, árvores, moinhos: e para trás Setúbal, e S. Filipe a cavaleiro. Jibóia a estrada em sucessivos ziguezagues, sem afastar-se da água um só momento, trepando sempre, de sorte que a paisagem desfrutada, da Toca do Pai Lopes à Comenda, não faz senão ir decuplicando o raio da mais embriagante marinha que olhos touristes podem contemplar. A poucos metros da Toca, que é um corredor triangular entre duas massas de salão desagregável, separadas talvez por alguma comoção subterrânea, a estrada despega um ramal que desce à praia, parando à porta de Albarquel um velho forte de cantaria, quadrado e inofensivo, colaborando nas antigas obras de defensão do rio, e com algumas peças ferrugentas na plataforma, para enviar descargas à flor da água. O forte hoje é casa de Verão do Sr. Peito de Carvalho, que anexou jardinetes à esplanada, tornando as casernas em residência confortável, e envolvendo os canhões numa camisa de trepadeiras cascatantes. Anda-se além, e a estrada trepa mais, sobre verdadeiros montes agora, internando-se ao de leve, para nos fazer gozar todos os pontos panorâmicos do seu curso; e assim, junto à Comenda, no mais sobranceiro trâmite do macadame, a duzentos metros da água, o espectáculo é quanto pode ser de extático e magnífico! Tem-se pra baixo, à esquerda, esborcinando o olhar da amura de madeira, fundos precipícios, revoluções de terra que as águas castigaram, calvários destacados, ravinas bruscas, quebradas, tudo duma cor vermelho-sangue, cortada de verde-bronze, ou sujo, ou mais vivo, ou mais violento, e sobre este casco de gangas ferruginosas, da cor trágica das guerras e dos poentes, pinheiros direitos, decapitados nas copas, esgalhados lugubremente nas braçadas, altercando entre si como cruzes que se disputam um mau ladrão para um suplício. Pela direita toda, sempre a serra, com as suas massas de argilas fuscas, areias quaternárias, calhaus conglomerados em cabeçorras nuas, lá nos píncaros -a serra a despenhar-se sobre o viandante, cheia de cicatrizes dos tiros dos britadores, lascada a prumo por machados de cilopes furiosos, e curveteando sempre, e desdobrando-se com um extraordinário pitoresco de agulhas, crenéis, contrafortes de apoio, linhas, socalcos, fustigada da luz, zebrada de nevoeiro, em destaques cruéis e escuros rembrandtescos e duma infinita poesia de ajoelhar e dizer os hinos de Eurico sobre o Calpe! Tal a visão da terra. Para exprimir a do rio, necessário se faz f1uidar tintas de estilo té um inverosímil lance de gradações quase incorpóreas, ter ligeirezas de tom capazes de exprimir não sensações, mas sonhos de sensações, almas de cores, tão vaporosa imaterialidade se exala dessa marinha única de harmonia, embaladora de idílio, a entredizer, num murmúrio de beijos, como o Hamlet: …dormir, talvez sonhar, talvez!... - Dormir, sonhar... Oh! como a baía ganha, entre Setúbal e Tróia, tons de safira e azul-ferrete, duma frescura de mar grego, onde as silhuetas dos barcos põem sua asa nítida e cantante! Atrás de nós a cidade é uma manchinha jovial, entre azuis de água e verdes de arvoredo, com as gredas da Saúde, amarelas de bílis, contrastando; depois na outra margem do golfo, Tróia e as areias brancas, invasoras, palhetadas de mica, avançando a estrangular o corredor da entrada dos navios, e para além de Tróia o mar intérmino, com gargalhadas de espuma em pelotões sobre os bancos de areia afogados na água viva, o mar risonho, o mar supremo, com seus mosqueios de chispas cáusticas, listras claras zebrando-lhe o azul-ventre-de-carpa, e aqueles fundos de azul-pálido, que ao achegarem-se à rocha vêm cambiando até ao verde-ultramarino. Abaixo de cada ravina ou convulsão violenta das barreiras, um portinho doce, alcatifado de branco, cheio de conchas e algas, onde romanescos saveiros se balançam: -e um tal silêncio, um sossego, que as mesmas gaivotas caminham com o acento circunflexo das asas, à procura duma exclamação mais alta, pra velarem... A carruagem internou-se agora entre duas colinas redondas, vinhedos e oliveiras, vêem-se casas, uma capela sem cruz, com as janelas do coro atochadas de molhos de feno -postes de pedra apoiando latadas já sem uvas, ciprestes e cedros em avenidas entre as cepas, e inda arribanas, e alpendroadas com utensílios de cultura, carros de mato em fueiros, tonéis sem arcos, e alfim, numa pirâmide de rochas, entre eucaliptos e abetos, à beira de água, a casa nobre da quinta da Comenda, propriedade dum conde de Armand, antigo embaixador francês, em Portugal. É o momento em que a estrada, deixando o estrangulamento entre montanhas, resvala docemente à ribeira de Ajuda, uma risonha garganta, que, enfeixando os caminhos de água dos mamelões das serras próximas, abre até ao mar seu largo leito, entre decorações alpinas, e bastidores de piçarra e mato inimitáveis. A estrada circuntorna a garganta, em ferradura, como se quisesse prolongar ao viandante o angelus da cismadora beleza ali gozada, e aproveita o estrangulamento que os regatos da serra fazem à entrada, pra lhes saltar por cima, e prosseguir, cingida ao contraforte de além, té aos baluartes de Outão, outra vez agora à beira de água. Mas que sossego! nem um rumor despaisando a quietura uníssona desse mimoso e grácil paraíso! algum passarito nos medronhais do mato a pipiar, sem eco, éclogas do tempo em que não havia setas nem espingardas. No chão da ribeira, fofos tapizes de erva eternamente verde, fetos mui ténues, íris de água e capilárias em pequenos pufs de folhagem. Pórticos de granito, com botaréus grosseiros, isolados como monólitos de sepulcros, restos da antiga guarnição mural da propriedade, hoje em ruínas. À direita e à esquerda, montanhas gigantescas, com o peplum de argilas roto, e mamelas de rochas encaroçadas de calhaus, todas à mostra. Depois ao fundo, cónicos montes de pinhais verde-esmeralda, penetrados de vapores, as cristas cintilantes, e tão a prumo na cena, com seus crenéis feudais e veludos verdes nos ombros de reis bárbaros, que eles chegam a parecer encantamentos de antigos génios do humus terrae postos de guarda aos vales onde o silêncio mora, e ao luar as antigas almas se assembleiam. Emfim a torre. Como fixar-lhe agora a configuração irregular, acessível do lado de terra por uma espécie de porta de quinta com fecharias de bronze, ornada de lampeões, e da banda do mar como noutrora, por formidáveis pontes levadiças? A porta aberta, dá-se por um corredor de abóbada, na esplanada do meio, ou da cisterna, e alçando a vista, apercebemos cravada no enorme terraço uma torre de pedra, quadrada e bronca, corpos de construção mais sobranceiros, a lanterna do farol por cima, e mais à esquerda, escalonadas, como apoiando-se nos contrafortes graníticos da serra, as casamatas térreas, a capela, e outras dependências rasas do baluarte. Outão é um exemplar de arquitectura guerreira de há dois séculos, hiante à boca da barra, e coas baterias na posição de varrer à rasa de água. Tem fundações de 1390, época do mestre de Avis, que a assentara, dizem, no mesmo local onde dantes havia umas ruínas dum templo de Neptuno. Foi sucessivamente acrescentada por vários grandes reis da casa de Avis, D. Manuel e D. Sebastião mencionadamente, e poucos anos depois da Restauração, o próprio João IV ali mandou fazer consertos. O estado de conservação é perfeito, e a alvenaria tão sólida, que tendo os tremores chanfrado, de baixo a cima, S. Filipe, jamais a Outão puderam fazer a mais pequena esgarçadura. A solidez é tal, que a fortaleza, com seus terraços, cárceres, obras cobertas, melhor se diria uma grande pedra com buracos. A esplanada ou plataforma que primitivamente seria uma, de nascente a poente, avançando numa espécie de grande miradouro em leque, sobre o mar, acha-se agora partida em três bocados, pela interposição de construções fortuitas, que foi necessário ajuntar à medida que a torre caía, de baluarte de guerra, em residência de Verão. O bocado mais extenso fica a poente, grande como uma praça, o plaino de lajedo, circuitado todo de parapeito, e com suas guaritas crivadas de seteiras. Por baixo, cárceres terríveis, salitrosos de abóbada, com água até à cinta nas marés, e onde presos políticos célebres jazeram, Matias de Albuquerque entre outros, e muitos dos venerandos lutadores de trinta e quatro. Para a esplanada do centro rasgam quase todas as portas das dependências superiores da construção, junto das quais ultimamente se pôs um guarda-vento envidraçado, fazendo galeria por diante da capela, e daquilo que doravante pode chamar-se o palácio real -venho a dizer um pedaço de casamata, a torre de menagem, e algumas casas novas que por trás desta engerocou um arquitecto pobre e pouco imaginoso. Quando no primeiro ano de reinado, o Sr. D. Carlos apeteceu residir no castelo coa família, revestia-se dum toldo branco este terraço, estendia-se uma alcatifa no lajedo, e fazia-se da peça hall para as preguiças da calma, vendo as gaivotas subir o rio co vento leste, e ouvindo a maré fluir e refluir contra a muralha. Para a estação balnear do ano seguinte requereram os reis obras na torre, e uma adaptação quanto possível garrida, da velha fortaleza, a volière de grous coroados. Ainda naquele tempo, para se vir por terra de Setúbal a Outão, era necessário tomar o carreiro de Albarquel, trepando outeiros após, e palmilhando calhaus na maré baixa, para chegar à Ajuda, e trepar depois aos espinhaços da serra, até ao farol velho (ruína a prumo no vertiginoso rochedo sobranceiro à fortaleza) donde aos tropo-galhopos seguidamente se descia, entre mil perigos, té ao postigo da ponte levadiça do castelo. Por consequência, aos aconchegos ou preparos do palácio régio, urgia, como complemento, abrir a estrada no torcicolo, de despenhadeiros e montes interpostos, o que tudo se fez em quatro meses, porque o rei tinha pressa, gastando-se na obra aproximadamente trezentos contos. Foi uma labuta a peso de esterlinas, esse capricho de rei puindo a miséria do erário estanque, numa quadra em que as rendas públicas mal chegam para pagar os juros dos empréstimos. Já lhes falei da estrada de Outão, e como artista não nego encómios ao personagem que influiu no seu traçado. E a mais bela coisa de Setúbal, essa avenida através de alcantis e bosques ribeirinhos, sobrepujante a um golfo de águas puras, azul-ferrete, e em céu aberto, entre casitas e crenéis tisnados de fortalezas e redutos. Ninguém que faça o passeio de Outão fica disposto a maldizer a famosa estrada de pedras de oiro, tão estesiante gozo infunde o percorrê-la, e tão condensada impressão se traz dessa paisagem única, etereal, onde cada coisa prossegue no seu diálogo com Deus, sem lhe importar quem vai passando. Direi agora das sumptuosidades do alcáçar realengo, que de propósito fui ver com olhos jacobinos, decidido a flagelar os desperdícios da coroa, em frases cutilantes. Compõem-se duma casa de jantar deitando sobre a esplanada, o parquet de rosáceas, madeira a três cores, claro, preto e cor de avelã -as paredes e tecto em caixões e molduras de carvalho, com filetes a fogo, guarnições mais escuras e pregaria forjada, aqui e além. No meio do tecto e muros, pintura decorativa em tela, e nos cimos das portas um delicado entablamento de escultura, saindo airosamente da ornamentação comum da boiserie. Esta peça está pouco mais ou menos no pavimento das cozinhas, que são corredores de abóbada caiada, pavesados de asfalto, com cabides de taberna, e mesas de pinho cobertas de zinco. Sobe-se uma escadinha de alvenaria, larga dum metro, tomando por labirintos de corredores sem luz, por estucar, caiados a correr, e a espaços suando penduricalhos de salitre, ao fim do que se consegue chegar à sala de recepção. É a antiga sala nobre da torre de menagem, quadrada, alta, a abóbada em tiara, e quatro grandes nervuras de pedra nascendo-lhe dos cantos, até se entrelaçarem no fecho, em guisa de florão. Este recinto é tudo o que pode haver de menos majestoso, uma só janela de balcão, dando pró golfo, e pela direita o vão dum arco, com ares de capela vazia, sua escaiola barata, e sobre cuja volta o arquitecto pôs umas armas reais, guardadas por dragões. A decoração também é quase reles: há uma guarnição de carvalho, lisa, emoldurando lambéis de serapilheira pintada a borra-vinho, com castelos e flores-de-lis a oiro e prata: as nervuras da abóbada têm sua silva a grisalha, e os espaços entre elas simulam céu, com suas nuvens; em termos que até como decoração de teatro esta borradela de artista era chinfrim! Mais escadinhas, corredores partidos em compartimentos de restaurante pobre, por biombos de casquinha sem pintura, e recebendo luz por lucarnas de masmorra. - Eis o toilette e o quarto de dormir, diz-nos o guarda. Antes de o abordarmos, uma sala de banho com etruscos macacos, desmobilada, escura, e sem torneiras, e alfim o toilette, num Luís XV de Oliveira e Costa, com asco de boudoir de Dama das Camélias, a esfarinhar o estuque e o oiro pelos casacos dos visitantes. Entre duas portas fica o lavatório, com pedra branca, as duas cuvettes de loiça, em básculo automático, e o espelho acima, com moldura no estuque, e por sinal fazendo a cara torta. Tanto no tecto, como nos panos murais, decorações a óleo, indecentes de cor, desenho e arquitectura (e todas as pinturas de Outão partem com esta), verdadeira irrisão da mediocridade protegida em detrimento de artistas verdadeiros. O quarto de dormir é, como a casa de jantar, uma excelente adaptação da boiserie moderna às confortabilidades senhoriais da residência. Tectos, lambéis, pórticos, almofadas, é tudo simples e dum gosto sério, realçado de riqueza e de elegância. Aqui, porém, como nas outras quadras, veio o pintor enodoar a obra do ebenista, e marcar de grotesco a harmonia séria que a casa de jantar e a câmara de dormir podiam ter. Em todo o palácio não há um móvel ou um tapete, e como vêem, as apregoadas sumptuosidades de Outão não passam do arreglo que qualquer remediado burguês poderia ter feito num casarão dos seus antepassados. Custaria isso oitenta vezes mais caro que o razoável? É o vício fundamental de todas as administrações do Estado, mas releve-se ao reinante a responsabilidade de haver ladrões miúdos no reino, que bem lhe basta o remorso de pregar às vezes grã-cruzes no peito de alguns ratoneiros descompassados. Nos varandins do farol levanto os braços: domino a torre e o mar, topeto quase os despenhadeiros do farol velho, e as gaivotas crucitam, saveiros à pesca, Tróia fronteira, o mar sem fim, azul no rio, e lá nos confins do céu chispando brasa... Depois os meus olhos baixam ainda sobre as esplanadas da praça, onde, como Hamlet, o espectro do pai podia dizer ao filho <>. Mas levanto a cabeça ansiosa de ar, coisas brancas ao longe, espuma, velas, areais, ilusões e nuvens pálidas. Oh, como eu quisera ser tudo isto, sem perder a consciência do que sou! 30 de Março - Manhã no Tejo. Enquanto o vapor não chega detenho-me a abranger amorosamente, dos terraços da estação do Barreiro, a marinha plácida que a meus olhos se desenrola, um quase nada perdida nas musselinas ondeantes da manhã. O Sol não rompe, há vento, e como choveu de noite, um vago véu de lágrimas suspende-se no espaço, e irrita-me a respiração de frígidas picadas. Daquela altura da riba, a expansão que faz o Tejo, dá-me uma sensação de taça cheia, tão fechado o circuito das suas margens…No primeiro plano, à direita, uma língua de areia contém moinhos e casarelhos brancos, muros de quinta, oliveiras e eucaliptos tristes que se acurvam a saudar a lufada húmida da aurora, vinda da barra. Pela esquerda é uma barreira brusca de terra vermelha, alteada, chanfrada, comida dos assaltos das cheias, rachada da água, com cabelugens de mato e pinheiros anões dum verde-bronze. As casas parecem sucessivamente mais humildes, à medida que se distanciam pelos planos além da perspectiva -são quadradinhos de caliça, com pontos negros de portas e janelas, telhados negros, paliçadas de quintais e de arribanas; depois além, fazendo fundo, no ponto onde o cotovelo do rio põe em relevo os montes de Cacilhas, a casaria complica-se em povoações miúdas, com chanfraduras de caminhos, mirantes, quintas, dedos de campanários e chaminés de fábricas apontando o côncavo da cúpula astral, que as névoas lambem, semelhante a uma fumarada de turíbulos. Para trás os pinheirais aquietam-se, negros ainda duns restos da noite chuviscosa; uma grande muralha de nuvem veda a eclosão do Sol, como um pano de teatro, por trás do qual se está preparando uma apoteose. O vapor da carreira dá sinal, e a primeira escuma escachoa-lhe das rodas, com um escarro de fumista, no instante em que rente do cais uma fragata passa, com uma espécie de deus marinho à ré, puxando a vela, enquanto o resto da companha desvia com arpões o costado da pesada traquitana, e o cão de bordo agita a cauda aos f1avores da caldeirada que no convés refoga alegremente, sobre um lamaréu jovial de pinho e de urze. Circunscrevemos a ponta dos moinhos, e a enseada alarga-se, a toalha líquida desdobra-se -a água mal se enruga, uma placidez de espelho reflecte os mastros das barcaças e ainda por alguns instantes a fragata nos leva empós de si o olhar artista, que lhe aprecia a mancha, como um momento da luz a escorrer de sensação. Na ré, curvando-se a cada instante aos movimentos da corda que põe em riste a vela, a figura colossal do rapaz é linda de energia, e a lentidão da manobra, constante duma série de movimentos análogos de duração e de amplitude, parece feita de versos mimados, cujo magnífico ritmo enche duma ternura física a natureza. Pouco a pouco, a luz transmuta-se, cambiam-se no ar tonalidades que a fugida das névoas renova e substitui com uma instantânea agilidade, e que mercê dela, tiram dessa mesma paisagem centenas de clichés todos diferentes, qual mais vaporosamente irisado de estro trágico. Já as margens do rio se afastam, verdadeiramente vencidas pela força de expansão do volume de água, que vai de rio a oceano, e abarca no mar da palha uma distância intérmina e radiosa. À esquerda, os pormenores da riba acentuam-se e definem-se, grupo a grupo, e começam-se apontar povoações, Arrentela, Seixal, Ginjal, Cacilhas, Almada a cavaleiro: vêem-se prédios, pontais, baías do tamanho de bandeiras, um formilhar de manchas claras em fundos de pinhal e de olivedo, onde um ou outro moinho move circularmente as suas velas cristãs, em pétalas de crucífera, guinchando ao vento, como os bibes nos lavradios, à caça de minhocas. Pela direita, porém, a margem foge, acachapa-se, humilha-se, esquece, e é verdadeiramente colossal a marinha que sob o meu olhar se desenrola! No fundo do poente, a névoa sempre, névoa cor de pérola, f1uidíssima, ar visível, que nasce da barra como o nimbo de não sei que formidável ascensão, e tolda a cidade, as serras da foz do rio, os arrabaldes, preparando o final de acto feérico que há-de ser a nossa chegada à vista de Lisboa. Venho à ré do vapor lançar um último adeus às perspectivas que ficam, e vejo a nascente o pano de nuvens baixar caliginosamente ao rés das terras, fugir para o interior do país, prenche de chuva, como um odre benéfico que Deus tivesse vindo encher ao rio, para o espargir depois sobre as cearas e vinhas do Alentejo. São sete e meia, os primeiros bicos da coroa solar queimam no céu, doirando as fímbrias dos pinhais e a faixa de névoas que por cima de mim vai migrando lentamente para o Sul – tempo expressivo, como os ribeirinhos dizem -orfeão matinal, cuja monotonia enorme determina uma assunção de sonhos para o azul, para o azul que o meu espírito atravessa, ai de mim! ralado de deboches, à procura do amor definitivo! <<…Os primeiros bicos da coroa queimam no céu>>. Marchamos a vapor, sente-se por baixo a água insondável, cheia de penumbras verdes e de sepulcros misteriosos, incrustados de madréporas, com grinaldas de líquenes, e romarias de peixes ouvindo derredor dos cascos submersos, quotidianas missas de finados. Primeiro é uma cor unida, opaco chumbo, que lentamente passa a hidrargírio, a azul-ventre-de-peixe, sem rugas, plácido de hausto, e com essa languidez dum ser que se aborrece e flana no seu leito, à procura dum centro histerógeno que fazer vibrar para sair daquela lassidão. Progressivamente depois a luz ascende, e começa uma sinfonia constitucional de azul e branco, que varre o resto dos seus espectros nocturnos. - Tempo claro, mar claro, luz circulante, circundante, envolvente, fundente, com uma preocupação monocórdia de tornar os objectos luminosos, e de fundir toda a marinha numa aguada de azul imaterial. Sim, a criação é mais monótona do que variada. Barbey de Aurevilly tinha razão – Deus é Vítor Hugo, só dum lado. Oh água sem rugas, perfídia dos lagos plácidos, vida líquida, que de aparência imóbil, contudo correis vertiginosa como a idade eis a minha alma que adormece das suas inquietações, vendo-vos dormir assim tão traiçoeira, enquanto as nuvens fogem, e a brisa do Sul rosna nas bailadeiras, inquisidor maldito, o de profundis do naufrágio! Varrei, tágides minhas, os monstros esponjosos do aguaceiro – vagas, trazei nas vossas lápides os funéreos in pace dos meus irmãos que a borrasca sorveu numa hora de rancor, e se a vida do mar tem voz, essa voz me fale a minha língua, para que eu nela reconheça o remember dos ancestrais de quem herdei esta angústia terrível do au-delà! Marchamos a vá por; em pleno mar da palha, há vento; a vaga porém, dulcíssima, como um semicúpio morno, faz a perder de vista uma alcatifa de felpa, por onde o barco pisa alegremente. A vastidão do horizonte é maravilhosa, e com detalhes supremos de transparência matinal. Alguns barcos ao longe, de vela oblíqua, fulvos na luz, parecem, nas envolvências da bruma, postos de propósito para fazerem bater o coração dum colorista. Mais longe, para além, ligeiras névoas aveludam Lisboa e as cordilheiras graves dessa margem, mostrando-as como uma sucessão de terraços sobre o Tejo, não deixando porém ver por detalhe os bairros da cidade, exagerando as dimensões da imensa casaria, e enfim dando à retina uma tal sensibilidade, que não há ponto que ela não aperceba, nem papila nervosa do corpo que ela para assim dizer não torne em órgão de visão. Assim, mau grado a sua magnificência e largura panorâmica, essa marinha guarda sempre uma nitidez de vinheta a talhe-doce, é um golfo de mágica, volatizado de poeiras de oiro, e onde só faltam sereias e tritões, empurrando a concha de Neptuno. …com o Sol alto, o céu fica varrido dos aguaceiros de passagem, e por todo o plaino então os valores da luz tomam uma meiguice adolescente, uma subtilidade irreal vaporizada, branco sobre pérola, com efeitos róseos na franja das brumas longínquas, e rosáceas de lilás-diáfano, que fazem pensar na cor do não-me-esqueças. Como nos longes a bruma insiste sempre em vortilhar, polvilhando o desenho das montanhas da barra e da cidade, vê-se a luz do Sol zebrá-la de faixas loiras, por trás de cuja diafaneidade as velas dos barcos parecem traços duma escrita de criança, e a silhouette das serras surge incorporeamente, como uma sombra numa sombra. Certo, esse momento da luz é transcendente: é que verdadeiramente essa água canta um treno de safira, azul-ar, verde-lavado, lilás-opalescente, prelúdio vago que se difunde de onda em onda, vago e tão psíquico, só lá de quando em quando zimbrado pela arieta alegre dalguma asa de gaivota. Nem uma vaga ao largo, nem um lenço de escuma correndo a acenar ao vapor que nos transporta -o mar quase branco no horizonte, branco-solar como a couraça de Lohengrin…E é naquela magnífica natureza, formilhante de mistério, ideal de alacridade, feita de biliões de almas anónimas, que ela, olheirenta ainda dos cansaços da viagem, sentindo-se acordar, diz como em sonho -Mas tu então não vês que é uma injustiça envelhecer? Não vês que eu nasci para ter asas, e que me sinto roubada de não poder servir-me delas?