Primeiro Corso (1946)Js „I>I>TEXtREAdFTT!T1TATQTaTqTT‘T¡T±TÁTÑTáTñTTT!T1TATQTaTqTT‘T¡T±TÁTÑTåTTitle: Primeiro Corso (1946) Author: Vitorino Nemésio CreationDate: Fri Jul 31 16:11:00 BST 2009 ModificationDate: Wed Feb 25 14:20:00 GMT 1970 Genre: Description: Primeiro Corso (1946) Vitorino Nemésio A publicação de Primeiro Corso, extraído do livro Corsário das Ilhas, foi gentilmente autorizada pelos herdeiros de Vitorino Nemésio. © 1996, Herdeiros de Vitorino Nemésio e Parque EXPO 98. S.A. ISBN 972-8127-51-0 Lisboa, Outubro de 1996 Versão para dispositivos móveis: 2009, Instituto Camões, I.P. *** PRIMEIRO CORSO I. <>: Solidão de Ilha Tovim, 24 de Julho de 1946 Uma cabrinha de barro (escreve Mateus Queimado), um paliteiro de Barcelos que o acaso me pôs, de pesa-papéis, na pilha de papel extra-strong ao lado da máquina de escrever, parece dizer-me do alto da sua pêra preta e do assobio de barro: -Então, vais-nos deixar? Que vais tu lá fazer? <> -são as ilhas. "Cá" -é o país da cabra de Barcelos: <>, como diz todo o ilhéu, fazendo ressoar neste nome aquilo que ignora e que não é capaz de tirar aos seus horizontes movediços, cheios de nuvens estáticas, de velas excessivas, de algum antigo cavername cinzento de destroyer passando, e do jogo diário do Sol que nasce para morrer. Claro que o boneco de barro não me diz nada disto. É um estúpido e ameno bibelot que aqui tenho. Eu é que atiro para cima das coisas circundantes a cobardia de partir para as Ilhas em viagem sentimental. e faço falar as pedras e as cabras de barro no estilo do velho do Restelo. Fecho os olhos e, nas teclas da máquina, encalorado, antecipo-me. O próprio dactilografar, um tudo-nada excitado pela minha primeira inspiração de longo curso, imita a pulsação do paquete largando. Mais um dia, umas horas e ficará para trás o Restelo da prudência com a sua bela torre branca e a curva do rio das Aventuras (como se diz: <>). Talvez de aqui partisse o primeiro Queimado para as Ilhas... Talvez eu esteja repetindo, desmemoriado por duas séries de dez anos de ausência, a experiência virginal de meu tetravô Queimado: colono, deportado ou emigrante de meio caminho. Mas não. Nem esse meu longínquo e hipotético progenitor se chamaria Queimado, nem o meu despaisamento das ilhas dos Açores é tamanho que eu não saiba de antemão tudo o que lá vou ver. Fecho os olhos de novo e toco nas coisas todas. Uma por uma levantam-se as ilhas no arco do horizonte como navios à capa, disfarçados uns dos outros pela cortina de mormaço. Aqui, Santa Maria, na sua solidão compacta, hoje quebrada pela colossal plataforma de um aeródromo. Nas ilhas de Baixo conhecíamo-la apenas pelos seus potes de barro, pelos grandes e bojudos <> onde o Inverno ilhéu vertia, nas escorra lhas dos beirais, as reservas de água de Verão. Dali se importava, em barcos de boca aberta, o magma de barro que ia reforçar em qualidade a olaria rudimentar dos outros portos islenhos, sobretudo os <> que fabricavam o tijolo de forno e a telha-vã. Ali, São Miguel, com as suas lombas pardas e as suas povoações castiças, os seus latifúndios e os seus parques. Diziam os madrugadores que São Miguel se avista da ilha Terceira em dias límpidos. Um negro a avistou das alturas de Santa Maria (se Frutuoso não mente), lá pelas brumas da memória e do descobrimento... O nome dele, porém, não figura entre os Velhos, os Zarcos, os Teixeiras. Preto não ter cabidela entre heróis... Mas seria o seu olho fino que tirou São Miguel da negaça das nuvens? A sua dentuça branca a primeira que se arreganhou de surpresa e alegria ao ver terra? Pobre preto sem nome! Raul Brandão escreve, n'As Ilhas Desconhecidas: <> Esta verdade de panorama começou por ser simplesmente uma verdade de <>. As ilhas descobriram-se, por assim dizer, umas às outras, pouco faltando para que ficassem conhecidas por um seco e simples número, como uma flotilha de contratorpedeiros estacados no mar. Assim, é com uma espécie de orgulho de marujo perdido numa rua de bares que respondo à curiosidade geográfica de alguém: <>, e ao Arioche (Arctic Ocean) como quem bebe um copo de água. O certo é que ir ao ilhéu do Norte, do varadoiro da Praia, não era para qualquer. Como dizia o Macetinha: eram <> do Poção -o pacato pesqueiro do chicharro e da cavala miúda, fronteiro ao casario da vila e ao estendedoiro das redes. De pé à popa, com o facão do engodo nas unhas, os mestres de barco ouviam do Poção as trindades da noite, desbarretavam-se e acendiam o lampiãozinho de proa, fanal de uma braça de água... Para se ir ao ilhéu do Norte dobrava-se a ponta da Má Merenda, entrava-se na sombra azul-ferrete da rocha do Zimbral, que, de escura, parecia o tinteiro revirado de um polvo monstruoso. E só então, entre as escarpas da ilha e as ravinas do ilhéu, começava a peripécia da apanha da craca a picão -a craca de três válvulas, forte como um castelo e suave, ao chupar, como mamilo de sereia... Depois, estendendo para sul e para oeste, com as promoções do liceu, as minhas andadas de ilhéu, subi uns furos na experiência e no gosto da solidão. Até mais de meio caminho de Angra ainda se não viam ilhas. Mas os ilhéus das Cabras eram já outra coisa, quebrados pelo meio como um pão mal tendido, suficientemente afastados da terra para que pudessem passar por um país estranho... -em todo o caso, outra plataforma talvez só própria para bichos (os do seu nome), embora uma lenda rezasse que ali tinha estado de castigo um amante infeliz ou um traidor. Os ilhéus das Cabras não tinham cabra alguma, mas uma cisterna salobra e meia dúzia de carneiros. Eu, que tinha a mania da geografia fantástica, chamava-lhes a Terra do Perrexil -a plantazinha rasteira, de folha carnuda como a da beldroega, que se curtia num frasco e nos servia de pickles. Mas a grande lição dos Ilhéus não era nem o perrexil, nem o carneiro: era a prova provada do nosso emparedamento num vasto calhau atlântico: por assim dizer, a estátua da nossa solidão arrancada das nossas entranhas e ali posta, junto ao Porto Judeu, como o símbolo de um destino e o padrão de uma vida interior. Do espectáculo dos ilhéus das Cabras, a que uns cachopos mais longínquos davam projecção e tristeza, passávamos à visão diuturna das primeiras ilhas de Baixo. Angra, como velha <>, no dizer de Frutuoso, tinha São Jorge e o Pico ao alcance dos torreões do seu castelo hispânico, ele próprio torreado num istmo, como que no flanco de outra ilha -o tríplice e taciturno Monte Brasil dos facheiros. Do Torreão dos Mosquitos via-se, para lá das quintas ribeirinhas do Caminho de Baixo, a grande barra verde, roxa, gris, azulada da ilha de São Jorge, tão sensível às manobras do sol como um toiro puro à capa do matador. Por detrás, como uma cabeça à espreita, surgia a agulha irreal e esbranquiçada do Pico. Em dias luminosos e nítidos (garantiam alguns) via-se roupa a corar... Com mais forte razão se avistaria uma casa ou outra, se as houvesse na falésia áspera e feia, como que cortada a cutelo, que é o lado de São Jorge visível da banda de cá. Mas já estes <> e <> da visibilidade entre as ilhas eram uma senha misteriosa. Aprendíamos pelos olhos a existência de mais mundo, mas mal queríamos crer... tão pequeno era o espaço em que nos movíamos da vida à morte e tamanho e tão salgado o mar que nos rodeava e enchia. Uns quilómetros mais para oeste, no sentido das rochas inabordáveis da ilha, e divisava-se outro calhau longínquo: a Graciosa. Esse ficava espaldado pela hóstia do Sol ao morrer -um Sol encarnado e redondo, cujo cobiçado e raro raio verde parecia tirado às tintas dos pinhais da Serreta e das algas do mar do Peneireiro. Ilhéu do Norte (o sugestivo Espartel das cartas de marear)... ilhéus das Cabras ... São Jorge ... o Pico a meio busto e coroado de nuvens perpétuas... enfim, o pão preto da Graciosa no extremo oeste ... -e estava fechado o aro do nosso confinamento atlântico, a que aquelas amostras de rocha esmaltadas de pasto e de cores búcias davam uma promessa de convívio. Oh, solidão das ilhas! ... Conquista da terra por firmeza no pouco que se tem e por tino e recuo a tempo no muito que se deseja ... Portos fechados, ilhas à vista ... Entre nós e o mundo aquela porção de sal que torna incorrupto o aro da terra ... Movimento e força; outras vezes tranquilidade e pasmo... Extensão... Extensão... (E, por mais que embirremos com reticências, que são espasmos tipográficos, a coisa é assim mesmo. . . Tem de exprimir-se nesta dose exacta de exaltação e de pouca sintaxe ... ) Ilhas pontuadas naquela brutalidade oceânica que é afinal a única coisa delicada e discreta da nossa vida -o mar do nosso segredo... a volubilidade do nosso ardor que nada estanca... esta inconsistência de projectos humanos (mas desumano é o lógico, o ético, o inflexível!). Além disso, o vapor da carreira ... o boletim meteorológico (grau de humidade à saturação cem ... ), e o acostamento de Santos com a bandeira de saída... Oiço os rebocadores. Mas, por ora, as cigarras da Beira ainda cantam na calma. Uma borboleta amarela acidenta a paisagem de olivais que me circunda. Hesito diante do calor e da luz peninsular a que me afiz. Vou? Não vou? Pelo sim, pelo não, vou colando os rótulos nas malas e dizendo com não sei que autor bem-falante e avisado: <<É sempre tempo de recolher a vela a uma desilusão ... >> II. <> 15 de Setembro de 1948 As Ilhas, para mim, são aquela fita de estrada entre Angra e a Praia, na Terceira, onde logo aos dez anos, como tecedeira que mete uma lançadeira nova ao tear, a vida me ensinou uma saudade e o apartamento. Porque até se pode estar desterrado a vinte quilómetros de casa sem se sair de um palmo quadrado de ilha -que (dizia-mo a Corografía) é <>. É certo que, seguindo esse já melancólico itinerário dos meus dez anos, quase sempre feito sob um borralho de nuvens e com as orelhas do macho húmidas do relento açoriano, eu me dava conta de que: terra, se a tinha, não podia acabar muito longe. Seguíamos uma espécie de plataforma saibrenta a um ou dois quilómetros do mar. Trepada a Presa do Ferrão, à Fonte Bastarda, percorríamos a linha alta da vertente sul da ilha onde assentam as principais povoações. Dir-se-ia que o homem se fora cansando do mar, procurando silêncio e assento no interior. Daí também, em montes à alentejana, vigiava melhor as culturas. À nossa esquerda ficava uma linha de povoados mais pobres, mas mais antigos: o Porto Martim, com o 'Seu Canto da Câmara, onde parece se juntara a primeira vereança municipal daquele penhasco de Cristo; a Ribeira Seca de Baixo e a de Cima, onde os Anais da ilha davam como nascido o primeiro filho dela; e, enfim, com licença de alguns caprichos e voltas daquilo que por lá se chama a rocha do mar -o Porto Judeu de Baixo (que pelo nome não perca!) e cuja atlântica judiaria um ninho de casas alvas e de portas escancaradas imediatamente desmentia. Essa primeira linha de fogos da ilha Terceira parecia-me a raiz daquilo, daquela espécie de inchume emborralhado que em a terra dos nossos, misteriosa e velha quanto o quisessem os geólogos, mas nova para o bicho homem, que se implantou tarde e a más horas ali. Terra remoçada, de história recente: terra que as próprias entranhas, sob a forma de sismos e erupções, se davam ao luxo de revolver e remodelar, ao menos de século em século. Ali nascíamos, ali vivíamos -ali estávamos. E <> é muito mais verbo para ilhéu do que <>. Sempre que, já crescidos, nos chegávamos a um cabeço, como o do Pico do Capitão ou o da Fonte das Amoreiras, e descobríamos, não o aro da ilha, que esse só se mostra da serra de Santa Bárbara, mas um lado inteiro dela, um flanco, sentíamos o que há de vulnerável e frágil em ser-se ilha, e, com muito mais forte razão, em ser-se ilhéu. Os continentais, sempre um pouco malignos connosco, bem davam a imagem do nosso estreitamento neste mundo, dizendo: <> Ora, se isto não é fisicamente verdade -nem no Corvo, onde o Chactas de Chateaubriand se pôde espreguiçar à vontade -, tem todavia uma certa razão interior: traduz caricatural mente a nossa sensação insular de solidão e de limite. Nós não temos medo de que o mar nos alague ou de que a terra nos falte: temos sempre presente, como salutar advertência, a sensação de que o mundo é curto, e o tempo mais curto ainda. Mas contra o que se poderia tirar da área apertada que nos coube no berço, quanto à nossa equação com o mundo e à nossa maneira de respirar a verdade é que ninguém mais do que o ilhéu, a não ser talvez o homem da planície, possui o instinto da amplidão. É com os próprios olhos que tiramos do mar a terra que nos faltou. Ilhéus do que, de São Miguel para oeste, chamamos as ilhas de Baixo, o dispositivo em que se encontram as ilhas do grupo central favorece essa impressão de mobilidade, de terras sonhadas, que as ilhas dão umas às outras. O clima, húmido e baço, torna-se cúmplice da ilusão. Os naturais da costa sudoeste da Terceira, os da Graciosa, os das duas vertentes da serra única e longitudinal de São Jorge, o Picaroto do Norte e o de Oeste, o Faialense, acostumam-se de meninos ao palpite e à sondagem do horizonte: são naturalmente vigias ou velas. A atitude radical do ilhéu é chegar à porta de casa e interrogar o mar. A relativa frequência do nome <>, na toponímia açoriana não só atesta a necessidade de sinalização nocturna, como a rede de atalaias que se forma naturalmente em torno de cada ilha e que, de umas às outras, se tece de postos fixos ou acidentais de espera e de observação. O nome de Vila das Velas, que coube à cabeça de povoamento de São Jorge, põe na ilha alpestre essa espécie de divisa do destino islenho -que é vigiar, velar. Ora ... Sempre que penso nos mistérios do isolamento lembra-me a história do Esteves do Correio e dos cagarros da ponta da Má Merenda ... Esteves era transmontano. Esteves era chefe de estação telégrafo-postal de terceira classe. Mas Esteves também era carrancudo e repontão. De modo que considero (um pouco gratuitamente) a chegada de Esteves às ilhas de Baixo, na qualidade de funcionário das comunicações normais e aceleradas, como o resultado de uma indisposição pública entre ele e a sua forçada clientela postal de Trás-os-Montes. A suficiência, o despotismo, a tirania telégrafo-postal do Esteves do Correio é uma das admirações mais profundas da minha infância e da minha adolescência de ilhéu. Oh!, manhãs inteiras passadas à espera de um selo, à grade do expediente, fitando os carimbos pousados na almofada ressequida como a fisionomia do Esteves, enquanto ele, na sala fronteira da estação, gritando um <> de domador de feras ao meu atrevimento de bater com uma moeda no balcão, se ocupava de não sei que misteriosas escritas ou conferências de verbas. Do outro lado da grade e para lá dos carimbos pousados, as rodinhas denteadas do aparelho Hughes, estremecendo àquela excitação linear que vinha de Angra, esperavam também. Bem se importava Esteves com o telégrafo eléctrico, o sistema Morse e os seus traços e pontos, pontos e traços de chamada! Queria lá saber! O importante era a escrita e lá os seus humores de pai de família mal pago. Enfim: quando Esteves achava que era a altura, vinha acudir à fita, resmungava para mim uma resposta torta, fazia-me esperar até decifrar, colar e mandar distribuir o telegrama, cortando-me só então, da folha picotada, o belo selo da efígie de D. Manuel II, com a sobrecarga <>. O Esteves do Correio! O seu mau humor, a sua bengala, a sua cara encortiçada, a inquietação e o mal-estar que a sua chefia telégrafo-postal semeava na vila, sem que ninguém se atrevesse (nem o médico!) a dar o mais leve indício de um descontentamento geral! Pobre homem! Bom homem, que imolaste o teu feitio e o teu desterro à minha infância, para que nela houvesse a sombra benigna de um tirano caseiro, ou o exemplo vivo de não sei que entidade feudal, cujo castelo pagava renda a meu pai na sua qualidade de procurador de uma ausente, e tinha à entrada, em vez de ponte levadiça, aquele portão provido de uma greta e de uma portinhola de metal onde enfiei a tremer o meu primeiro original destinado à letra de forma! À tarde, chegava o Manuel Machado carteiro; parava o macho à entrada da Rua do Rossio. Mala à vista! E, à luz de petróleo das vendas e dos vestíbulos das casas, lá ia o Joaquim Giesta distribuir o punhado de correspondência sobre que Esteves descarregara, como quem atira chumbadas às pernas de larápios de capoeira, as pancadas desesperadas do carimbo. Era o Esteves quase no Largo da Luz, em irritado, e meu tio Mateus, em atento e pacífico, duas ou três casas abaixo ... Entre os dois -a estátua de José Silvestre e as duas araucárias eternas. Já lá estão ambos, na mão do Senhor e no escuro das covas do vale Farto! Mas a história dos cagarros ia ficando por contar. Ora foi o caso que Esteves, chegado de fresco à ilha, resolveu dar um passeio à serra do Facho, espairecer. Estava, naturalmente, ainda magoado do desterro; e aquela sua expedita maneira de despachar os fregueses ainda não criara cama. Fosse como fosse, subiu a Ladeira Devassa e lá se embrenhou nas falésias da ponta da Má Merenda. Escolhera bem, não há dúvida ... Ali, o céu ilhéu é uma pura carranca e o pouco de terra que o mar consente empina-se e enegrece. De um lado, o vale do Ramo Grande com a vila da Praia ao fundo; do outro, o mar do ilhéu do Espartel, que, sombrio e apertado dos rochedos, parece um tinteiro entornado ou uma alma penada que, não podendo mais, rebenta. Esteves, de bengala atrás das costas, media o atalhinho praticado quase no fio da rocha, por onde passavam os bois do Almeida a um de fundo, e agora, com o credo na boca, António Esteves, chefe de estação telégrafo-postal de terceira classe, natural da província de Trás-os-Montes, arribado à ilha Terceira. Então, como que por encanto, começaram a juntar-se, vindos daqui e dali, das furnas da banda da terra e das furnas da banda do mar, uns bichos escarninhos, de pena arisca e asa rápida, que iam pairando e apertando o cerco a Esteves. Ao alto da falésia, parecia uma legião infernal. O seu grito marítimo, aos nossos ouvidos ilhéus, não é desengraçado; é qualquer coisa como: garr... lhé! garr ... lhé! Que havia Esteves de ouvir? .. : -Agarra: é ilhéu! Agarra: é ilhéu! Então, arrepiando caminho e levantando a bengala em direcção aos cagarros, gritou: -Eu não sou ilhéu! Sou do continente! III. Vida de Bordo 7 de Agosto de 1946 Atiro-me de alma e coração a este roteiro tanto tempo sonhado e só agora empreendido. É uma viagem banal, dez vezes feita e desfeita nos seus dois rumos monótonos, precedida das mesmas expectativas e seguida de iguais recordações. As recordações desta etapa escapam-se por enquanto (claro!). Mas as expectativas... Ah! Essas aqui estão cheias, inteiras à entrada da realidade que as desfaz neutralmente, pelo simples facto de que, transpondo-as, lhes destrói a espera, a esperança, o crédito -enfim, tudo o que as faz adiantadamente substância de tempo. Bem ou mal, assim ou assado, o que me vai suceder deixou de tergiversar. Só esperando me era possível aventurar num ou noutro sentido, e logo corrigir a aventura ensaiando-a de modo oposto. Agora, entrando no paquete, penetrei no domínio turístico dos factos consumados. Já não revogo nada; nada deixo em suspenso. Nem sequer já me balanço na esquisita excitação que precedeu esta largada: <> Umas vezes: <> Outras: <> Maldita condição pendular da vontade! Perpétua indeterminação do disponível e do gratuito… Mas já vou mesmo ! . .. Despedi-me. Embarquei. Parti. Fiz, enfim, um par de pretéritos perfeitos e próprios das viagens ... Já o meu próprio escrever é fluido como o mar e, como ele, ilógico. Uma cinza húmida e fresca tornou-se comum às águas, ao céu, à alma, à cabeça. Só o coração vigia inteiro e saudável nas primeiras derrotas do mar. (Eu durmo e o meu coração vigia.) Navegamos ambos, o coração e eu. Parece que a essência do navegar é o velar; mas quem vela no viajante deste itinerário búcio talvez não seja a sua mente, e não é com certeza a sua convicção. Primeiro, porque o viajante forçado não pensa grande coisa; segundo, porque não está realmente embarcado e convicto… Vai pelos cabelos. O próprio paquete lhe parece um tabuão à deriva, arrastado no mar p o r algum génio dos fundos abissais. Maléfico ou benéfico? Chi lo sa?... Sereia - não deve ser. Além do ridículo estrutural desses híbridos, deixou de haver mitograficamente sereias. A metade peixe é boa para a mesa de jantar e cortam-na na cozinha. A metade mulher, por falta desse órgão caudal que prendia o monstro ao meio salino, acabou por cair, por emigrar ... O navio, aliás, navega pelos seus próprios meios, sem reboque mecânico ou animal, e é com o seu verdadeiro ambiente -a vida de bordo -que consegue enfim prender e domar a minha imaginação vagabunda. Sinto-me enfim situado. Há aqui bomborbo e estibordo, proa e ré, deck e porão. E, diante de nós, uma linha imaginária a que chamamos horizonte. Não... Isto já não é o clássico vapor das Ilhas, cheio de estudantes estúrdios, de caixeiros-viajantes opiniosos, de proprietários ilhéus de volta ao lar e de funcionários continentais enjoados e tristes do seu primeiro desterro. Haverá de todas estas condições a bordo, não duvido: só não há a matéria psicológica que outrora lhes servia de cimento. A volubilidade tinha as suas regras; o divertimento as suas praxes e etapas. Desapareceu do convés o trampolim do burro com as respectivas patelas. Neste mesmo barco a piscina foi uma great attraction: hoje não a há. Também ainda não vi que o xadrez de um baralho estendesse o seu leque nas mesas de jogo intactas, e à roda das quais certamente as pessoas que vejo transportam consigo a virtualidade de uns parceiros. Morreu a alegria a bordo. Só o enjoo é eterno e vivaz. Começou o meu roteiro pela ronda nocturna aos enjoados que o excesso de lotação amarrou às cadeiras articuladas. Mas até esses me parecem menos interessantes que os enjoados antigos, desaclimatados às zonas que lhes competem nos decks, com caras e posições infinitamente menos típicas -e com menos mantas de viagem. Há menos bonés; e, até agora, só registei uma boina. Mas o enjoo continua a ser um grande escultor, escavando as feições e enchendo-as de uma luz muito lúgubre. O enjoo é certamente um mal benigno, mas aproxima a toilette do vivo do toucado do moribundo. Aqui, uma face terrosa e bela de rapariga deixou-se vencer pela acção da vaga de través. O seu corpo fino e esbelto parece uma toalha amarrotada na lona da cadeira. Uma massa viscosa, inequívoca, alastra no chão perto dela. Para que tudo mude e o antigo encanto destas viagens me pareça de todo perdido, substituíram a bordo as valentes campainhadas, que anunciavam as refeições, pelas macetadas de gongue de uma marimba javanesa -o que lembra os paquetes de luxo e de longo curso engolidos ou assucatados pela guerra. Era desta maneira que Montaigne queria que acordassem os meninos em seus quartos. E lá vamos lavar as mãos, direitos à canalização interna do navio, carregada de borborigmos ... Não... Realmente já não navegamos no lendário Açor ou no minúsculo, fétido mas saudoso Funchal da minha adolescência. Mas também não será a melodiosa marimba javanesa que, pela imaginação, nos porá a bordo de um Baloeren, a caminho de Singapura ou de rota batida a Roterdão. Instalado na peca realidade interna de tal roteiro, aperto a lombada do longo romance de Conrad que trouxe para as horas de fastio -e é como quem, em plena Falperra, apalpava a coronha da pistola fagueira e camiliana ... Estou defendido contra o tédio de bordo até à camada mais íntima do imaginar e do entreter. Um tomo da Pearl Buck vai comigo a bombordo -que é o lado do coração. No tempo do Açor dizia-se, à ré: cuidado com as hélices, e as pessoas curiosas e instruídas discutiam na casa de fumo sobre se se devia dizer os hélices ou as hélices, e se era conveniente aguentar o h no começo da palavra ... Como este, outros santos e eruditos costumes se perderam. Já a menina .. bem>> não dá a volta ao convés, de pé atado à calça daquele afoito senhor. Que é do binóculo matutino, sensível à toninha emergente e ao fumo do petroleiro? Metade da nossa vida se vai na maré do carvoeiro, e verifico que a Saudade navega a óleos pesados. O sino de bordo, outrora, era tão convincente nos quartos post meridium, quando ainda o tom dos madeiramentos das câmaras envidraçadas era o do mogno polido, por dentro e por fora, e o vidro enramado e fosco. E que doce, o rascar do piaçaba nas tabuinhas do convés! Cinco horas da manhã -baldeação. No navio deserto a frouxidão das lâmpadas atarrachadas aproxima-me do coração de meu mestre Joseph Conrad, capitão de longo curso com quem afinal nada aprendi... Na minha terra chama-se a esta espécie de estúpidos <>. Se ao menos, já que Conrad me não deu o génio do mar e a ficção dos portos do Índico, me ensinasse a tomar a altura do Sol neste dia cor de clara de ovo em que navego para a Madeira, com destino aos Açores… Mas não. Tudo é frustrado e torto neste 1946, Julho 25, em que Mateus Queimado me pede a pena emprestada, e se põe a falar por cima do meu ombro como um títere de barraca de lona. Cabeça de pau! Pedaço de bonifrate pseudocosmopolita, que perdeu a metrópole e o microcosmo não sei onde ... Estratagema! Estratagema! Vejamos agora o mar. Chamar suave e bela a uma coisa destas, chata, mexida, com bocados brancos metidos no meio do cinzento! Gostar da água estendida como se fosse um solo -mas sem árvores, a não ser a árvore seca de algum pobre iate em calmaria ... ! A hipocrisia lavrou a terra e o mar como um verdadeiro escalracho. Já não se dizem as coisas directamente; todos fingem o que não são e armam ao que não têm. O mar... La mer, la mer, toujours renouvellée…Diz isto o poeta. E, como o poeta é Valéry, a minha imaginação anarquizada e insofrida troca o largo Atlântico pelo Mediterrâneo, e a proximidade de Porto Santo por Palavas-les-Flots, onde vi banhar as judias ... A verdade é que só amo o mar rebentado e colérico, principalmente o das praias e dos recifes: detesto cordialmente este mar enrolado, como massa a folhar pelo pasteleiro de bordo -esta coisa estanhada e estólida como um olho sem pálpebra, que já não tem nada que olhar. Ao menos, um veleiro é belo; um couraçado é belo! Mas o alto mar parrana não é belo. Tudo se esvai e esfuma nesta extensão sem referência. Cheira a tinta de óleo e a corda cozida por toda a parte. Sei bem que isto é da entranha do paquete, como o fartum a rato é do ninho de rato. Mas atiro com as culpas para cima do mar sem limites. Com o anoitecer, as probabilidades de terra aumentam. As primeiras gaivotas carregam a asa direita para o calado do navio. Há um pouco menos de vaga de través e prometem-nos Porto Santo lá para as três da madrugada. Que fazer, senão saltar ao beliche, fechar os olhos na esperança e conservação de quem deixámos e esperar a primeira crista de monte na ilha da paz e dos coelhos? IV. A Ilha dos Coelhos 21 de Agosto de 1946 Infelizmente o navio fundeia em Porto Santo a uma hora inconcebível: três da madrugada; e descubro, com mágoa, que já me falta aquela ingenuidade marinha que faz levantar os passageiros cedo para verem surgir, entre os negrumes de céu e mar, a cobiçada terra... O Porto Santo, aliás, é um tropeço nesta rota. Já várias pessoas se queixam da lentidão mortal de semelhante viagem: doze milhas à hora na era do avião e do átomo! E, considerando que vamos no rumo dos grandes aeródromos atlânticos (Santa Maria e Terceira), essas pessoas choram a falta de Clippers, o torpor dos congressos de aviação, enfim a lesma do progresso alado nos artelhos... Não faço propriamente coro com os meus companheiros de viagem. Confesso um medo cobarde à carlinga, que espero vencer. Confesso, ainda, apesar do mau humor em que me puseram os primeiros dias de mar, uma radical fidelidade à esteira dos navios, ao seu morno balanço nas cordagens, à nocturna e fresca paz dos tombadilhos ... Mas, na verdade, isto é um pouco enervante. Tomar o rumo da Madeira para alcançar os Açores -só de quem não tem que fazer... Para me desculpar da preguiça que me amarra ao beliche enquanto se atinge e ultrapassa um pedaço de terra firme, alego a noite escura como breu, que nos não deixa ver nada; pretexto, ainda, antigas singraduras ao largo de Porto Santo. Mas precisamente o Porto Santo nocturno é que seria novo e belo! E vejo a ilha seca, esgarçada ao largo da Madeira como cenário de papelão de um amarelo encardido, toda desenhada em aresta viva e com uma corcova a meio. A impressão que conservo é a de uma imensa praia espaldada por uma cortina de relevo semicircular: não uma montanha verde e natural como as outras, mas um pico de areia, um verdadeiro desmonte de materiais de fachina, feito à molhelha e à gamela ... Sente-se naquele telúrico e desolado estendal o espolinhadoiro natural dos coelhos de Bartolomeu Perestrelo, prodígio da política demográfica dos fins do século XV... Mora ali uma próvida população de escassas centenas de almas entregues à pesca, à cultura da vinha, ao funcionalismo indispensável à cobrança dos impostos e ao içar da bandeira nacional no mastro da Casa da Alfândega. Estas ilhas pequenas e puras, como Porto Santo, Santa Maria, Graciosa, Flores, e sobretudo o miniatural e incrível Corvo, dão-me a impressão de existirem administrativamente apenas como simulacros pueris de ajuntamentos humanos, já Chateaubriand, passando na Graciosa a caminho da América nos fins do século XVIII, registava essa sensação de finisterra a que a cratera do Pico dá grandeza e fundura, e que a mísera casaca verde, agaloada de ouro nos seus tempos, do capitão-mor de Santa Cruz, prendia efemeramente às vicissitudes deste mundo. Pobres e minúsculas ilhas da solidão, coroadas de cagarros e de nuvens, onde a vida humana ainda tem, de quando em quando, o sabor dos primeiros dias da criação do mundo... Das espessuras oníricas da minha gaveta de bordo sonho-me corsário ou mercador. Abordamos a Porto Santo em pleno quarto de alva, já se adivinha na escuridão do calado do paquete um vago livor de dia. O mar é tinta de escrever, mas já a ilha se adivinha abrupta, compacta, a uns quinhentos metros da escada do portaló. Tão cedo entrámos, que foi preciso arrear de véspera a escada de estibordo para adiantar serviço. É só largar a mala, um ou dois passageiros que vêm não se sabe de onde e vão não se sabe a quê, e aquela meia dúzia de lingadas de carga que mal quebram o silêncio aborrido dos camarotes e partem no lanchão solitário em direcção a terra. O que irá ali, meu Deus?...jamais carga no mundo me pareceu tão rica e essencial a um mínimo de vida humana. Uma dúzia de maços de velas de estearina…dois ou três fardos com fazendas…a preciosa bilha de azeite para o guloso... e pouco mais. Quem sabe se um pacote de livros ... uma sorveteira ... um breve capricho mecânico que vai calmar o frenesim de algum ilhéu insofrido? .. Não quero cá saber! Gostaria de ser guarda-fiscal no Porto Santo, não para importunar o único passageiro mensal que vai em demanda da ilha, mas para ouvir chiar os cagarros à minha rica vontade, e jogar as cartas na Casa do Sal, à luz de uma candeia de azeite de peixe ou de baleia. Tão bom! Tirar o cinturão, meter a caixa de fósforos na algibeira do dólman de cotim, bater a pala ao administrador do concelho e ao delegado marítimo... E talvez ter a elasticidade dos coelhos de Perestrelo nesta ilha austera e bem-amada. Quem deseja estas coisas passa por poeta ou por tolo. São as únicas coisas boas e autênticas deste mundo! Eu, nesta viagem comprida e súbita, tenho outros sonhos ainda. Esses, porém, guardo-os envergonhado e comovido. Estou muito bem-disposto... Já não chego lá acima ao deck a tempo de ver a Madeira ajoujada ao horizonte como uma promessa que se faz pouco a pouco e pouco a pouco se cumpre. Mas a ponta de São Lourenço e a aldeia do Caniço me bastam para encher a chegada. Era naquela baciazinha íntima, recortada de fragas e falésias, sem ramo verde e quase sem sopro humano, que me apetecia ficar para sempre. Pescador, não, que é muito trabalhoso. Calos, só conheci o de escrivão -e chegou.. . Faroleiro, não era mau. Andar de lanterna de cores na mão e limpar os cristais das lentes rotativas, para garantir a nitidez e a força do foco nocturno que vara as águas e faz dizer aos pares na amurada dos paquetes (porque eu queria que o meu farol encandeasse alguns beijos): -Olha... vês? Aquela luz, ali, é a ponta de São Lourenço. Mas eu não presto para nada! Nunca hei-de ser nada neste mundo! (Escreve Mateus Queimado.) A costa da Madeira é uma maravilha. Não há propriamente aldeias, a não ser um ou outro aglomerado mais denso que se aninha junto ao mar. O casario espalha-se pelas encostas da ilha corno na cortiça de um presépio, a que o verde das culturas e o almagre das terras peladas dão colorido e relevo. Aquela povoação recatada, atalaia meridiana, é Machico; e lembramo-nos logo do casal feliz que a lenda aninhou naquela brecha de rocha, novos Tristão e Iseu da Floresta e do Filtro... Decididamente! Tudo convida aqui à solidão de amor. É urna ilusão de quem costeia isto – este jardim verde, de cabanas brancas, dependurado no mar? Que importa! Enquanto a abordagem dura, vamos vivendo destes fumos... consumindo a nossa porção côngrua de sonho e de utopia, poetizando gratuitamente as costas da Madeira. Da velha espessura florestal que deu o nome à ilha já quase nada resta. Onde chega o homem com os seus dentes e unhas chega logo a machada, o fogo, o alvião. Estas encostas vestiram-se de cana-doce e de batata. Os lenhos foram precisos para os chavecos dos pescadores, as traves da casa, as alfaias da lavra do pão. Mas o madeirense, se desbastou as matas da colonização, aprendeu a ajeitar a copa das fruteiras e a cortar o cabelo à cepa de verdelho e de cerceal. Já não vamos encontrar no mercado do Funchal as cataratas de uva, de maracujá, de anona, de pêra e de papaia, que faziam o encanto do viajante de há dez anos. Uma vereação empreendedora construiu um mercado monumental e higiénico, cheio de sábias divisões, de andares racionais, de escadas com direito e esquerdo. Foi um grande progresso. Mas é pena que se não tenha arranjado um outro dispositivo às frutas, mantendo a impressão semitropical que davam antigamente os cestos planturosos, as chapadas de cachos ainda com enxames agarrados ao mel dos bagos de oiro e a nota estridente das réstias dos pimentos, dos araçás, dos abrunhos, por cima dos quais gralhavam as araras e se espenujavam os periquitos. E lembra-me a delícia, a beatitude com que Raul Brandão, meu companheiro de viagem em Julho de 1924, fez o Zarco dessa Madeira da fruta de gigo, hoje metida na ordem. As cadernetas de papel quadriculado que ele encheu com aquilo! Há escritores que fazem com os bicos da pena o que os pintores conseguem com pêlo de pincel e espátula. Raul Brandão era desses. Levava uma hora, e mais, diante de paisagens, a notar cores e reflexos, tons e matizes de matizes... Assim descansava dos seus solilóquios de poeta e de filósofo do espanto e do sonho. (Mais uma cruz de pau na história dos viajantes e peregrinos literários da Madeira: Raul Brandão…1924, Ilhas Desconhecidas.) Deixo a amurada de estibordo e o jovem madeirense que amavelmente se presta a pilotar-me nos acidentes da sua ilha. Até à ponta do Garajau só verdadeiramente me interessa aquela povoaçãozinha de pescadores que quebra a aspereza e a escuridão da ponta de São Lourenço. O ideal da Guarda Fiscal... A tolice de querer sei' faroleiro... Como o outro que diz: <<És velho e tolo, rapaz!>> Mas que havemos de fazer diante de terra firme, senão vogar? Eu quero bem aos mares e às ilhas. Nunca passei em nenhum recife de coral, mas sei a história da ilha Sabrina, que apareceu e desapareceu junto de São Miguel depois de os ingleses lhe terem cravado uma bandeirola inútil. Também gosto de furnas, de pombos bravos, de perrexil e de bacelo. Um continente é uma coisa muito grande e incerta para mim. A ilha é mais curta. Sai melhor das águas. De longe parece um pão. Ao perto é o que é: uma rocha com casas; gente dentro. Em geral há muito peixe, alguma caça e pastagens. Como há pastagens, há carneiros e, havendo carneiros, há lã para a gente se vestir. Pode-se morrer descansado numa ilha. A cova nem por isso é mais curta. Já ali vem a canoa da Saúde. -Força à ré! V. O Primeiro Cagarro 14 de Ago6to de 1946 Enfim... Depois de umas vinte e quatro horas de céus azuis carregados, destes que engastam os dorsos subtropicais da Madeira -vinte e quatro horas mais de céu e mar, mas já pálidos e cínzeos, adivinhando as primeiras paragens dos Açores. O mar, sim!, que é escuro, azul-ferrete. Mas o céu, onde pairam aqui e além, junto ao horizonte, pequenos nimbos cor de pérola, esse ganha um tom desmaiado, que o pôr do Sol alaranja e tamisa. Ainda se não vê terra, e já o faro do açoriano regista a vizinhança da lava, palpita as primeiras rochas pela primeira bandada de gaivotas que vêm tentear a gávea do navio. Mas já um binóculo mais aplicado descobriu uma massa escura, uma espécie de pão à boca do forno. Santa Maria! Os primeiros cagarros -o simpático palmípede que deu a alcunha aos Marienses -desenham nos seus voos de reconhecimento os primeiros debruns de costa. Já se distingue a ponta de São Lourenço com o seu farol alteroso, e uma cadeia de montanhas que a nossa imaginação exacerbada supunha arrasada (ou pouco menos…) pelas obras do grande aeródromo. Mas, devagar!. .. O mecanismo pré-atómico não vai tão longe como isso. Apesar das pistas, dos hangares, das balizas, a ilha de Santa Maria ainda tem espaço para um cagarro pousar e fundura de solo bastante para uma mancheia de pasto. E, se não tem mais vegetação, a culpa não é dos americanos, que estão a largar a ilha depois de terem feito dela uma base moderna e bem apetrechada. É que esta terra sempre foi pobre de chorume, mal segurando umas pastagens dispersas pelas encostas e alguns mimos semeados no sainte da vila, em direcção a Valverde. O pão, e até hortaliça e fruta, vão-lhe de São Miguel. O seu aspecto, tirando-se-lhe os viçosos vales de além da serra e os vinhedos de Santo Amaro, é bastante desolado e áspero. A vila é um cordão de casario na eminência do porto. Construiu-a ali a gente de Gonçalo Velho, temendo os assaltos da pirataria argelina -e talvez de corsários como eu. .. Do varadoiro até ao alto urbanizado vai uma faixa de caminho que os americanos da base regularizaram e encheram de betão. De antes, era uma vereda turtuosa, ladeada de giestais, por onde o carro do senhor José Leandro Chaves -que todos nós, ilhéus, reconhecemos una voce capitão-mor de Santa Maria -generosamente nos levava a ver a Vila do Povoador. E lembro outra vez a viagem de Julho de 1924, com Raul Brandão empenhado no seu inquérito às Ilhas Desconhecidas, e a impressão de grandeza telúrica e de tristeza insanável que se tirava dali. Tão calcinados eram os terrenos fronteiros à Vila do Porto, que Raul Brandão chamou a Santa Maria <>. Que diria agora o poeta, se, na falta do providencial automóvel do senhor Leandro, tivesse de trepar, como nós, a pé, os primeiros duzentos ou trezentos metros de calvário para o alto onde se ergue o aeródromo? Trabalhado pelas britadeiras, o chão está rasgado, terraplenado, fusco. Um material de rocha poroso e negro -a bagacina -invade as bermas da estrada de acesso às pistas. E, debaixo dos nossos sapatinhos frágeis, de trottoir e de deck, os seus torrões esboroam-se deixando as solas picadas de esquírolas de pedra, tão regulares e miúdas que até parecem dentes... Felizmente que uma camioneta do campo passa para cima vazia. O fragor da carroçaria abala a estrada aos torcicolos. O condutor -um mariense indumentado largamente à americana, com over-all cruzado numa camisinha de algodão -convida-nos a saltar. Podemos enfim visitar o campo sem uma estafa prévia. À entrada, a um gesto do nosso amável condutor, o soldado americano de plantão relanceia-nos, sorri e estende o braço. Portugueses ... Podemos passar. Alguns companheiros mais felizes destes milhares de milhas atlânticas vão largar num aparelho militar para a Terceira. Aproximamo-nos da imensa pista, onde, como albatrozes, poisam quadrimotores gigantescos. Um automovelzinho de capota de caqui, pressuroso e caricato no meio dos monstruosos aparelhos, larga em direcção ao mar, manso como um cordeiro. É o prático da descolagem, que traça o caminho de partida ao avião português. Já as quatro hélices, postas uma a uma em giro, vibram ao sol abafado e fosco da ilha dos cagarros. Daqui a pouco aquele charuto metálico perde-se nos céus de nordeste. Há, nos que ficam, um relance de ciúme e de espanto. Poucos ali receberam o baptismo dos ares e, bem consultadinhos, pouquíssimos se atreveriam talvez à largada. Por grande que seja a confiança que estes monstros aéreos começam a inspirar, ainda prevalece a velha e rotineira impressão de que quanto mais perto se está do centro de gravidade da Terra, nossa mãe, menos perigo se corre de vir parar cá a baixo. Como a questão de voar não se punha, todos quereriam voar ... Mas já o aparelho militar desprende as rodas do solo; já se perde nas nuvens, firme, belo e vibrante. O seu zumbido é um murmúrio. A sua sombra já é menos que a nuvenzinha. Vamos correr o campo. Santa Maria. Azores. Population 7988; Sp. miles 70. Paris 1614 mi. New York 2776 mi. A sinalização gráfica é previdente e profusa. Por toda a parte assomam os mecânicos, os guardas, os chauffeurs. As barracas cor de azeitona escondem cantinas fartas, dormitórios cómodos, pequenos parques de material e postos de vigia. Mas desde a entrega do campo ao Governo português que o pessoal americano diminuiu. Aqueles homenzinhos vestidos de caqui, com bastos botões metálicos e suspensórios diversos, são ilhéus de Santa Maria que, trabalhando no campo desde as primeiras terraplenagens, se adaptaram ao modo de vida americano a ponto de vestirem como netos de Tio Sam ... Soldados portugueses guardam a saída das pistas sobre o caminho da vila. De regresso, na camioneta de favor, entramos em Vila do Porto pelo lado de Valverde. Não há que esconder de ninguém uma realidade viva: a povoação é pobre, longa e triste. São duas filas de casas à borda do caminho que leva ao interior da ilha; e, se não fosse um ou outro letreiro luso-inglês, e meia dúzia de fachadas alindadas modernamente, dir-se-ia estarmos nos tempos de Gonçalo Velho e do negro de olhos de lince que viu pela primeira vez as lombadas de São Miguel... Sorumbática e espalmada, a Vila do Porto assiste ao prodígio do seu aeródromo-monstro com olhos antiquíssimos. Lá está a típica araucária das cidades e vilas insulares. Lá está a casa que foi do donatário e povoador. E as igrejas velhas, acaçapadas, misto de pombal e de casa de Deus ... O casario alvo de neve (Santa Maria é uma ilha dos Açores que tem pedra e cal) foi agora barrado de almagre, de vermelhão, de verde, a fim de receber a besuntadela bilingue dos letreiros cosmopolitas. Este que diz <>: Nós garantimos inteira satisfação, diz em inglês, abaixo: We guarantee you entire satisfaction... E realmente quem lá vai vem bem servido. Jantamos num restaurantinho moderno, forrado de madeira, a nossa porção côngrua de peixe, carne, vinho e fruta. Descemos ao porto. É tarde. Uma luz de cripta doura os telhados marienses, mostra os cobertos dos abarracados do campo ao longe. Às janelas das casas seculares assomam algumas raparigas. Parecem arrancadas a tábuas de igreja ou não sei a que matéria abolida ... Feias? Bonitas? A tarde parece exumá-las de um herbário. Vêem-se para lá das vidraças de guilhotina as folhas peludas das begónias que as avós legam às netas e as netas às mães das bisnetas ... Por quanto tempo o motor do avião vai deixar tranquilas as plantas de estufa às senhoras marienses? Desaparecerá em breve esta vila de sonho, perdida no tempo e no calcanhar do Atlântico, substituída por este monstruoso porta-aviões de rocha, imóvel no mar? Ou, pelo contrário, são as soberbas mecânicas o condenado à morte? Entretanto, no portozinho secular, a casa da Guarda Fiscal, humilde paradeiro de tudo o que é para entrar ou sair, ainda se levanta à medida da breve e pacata população de outrora. Ali ainda ninguém mexeu. Ali, e no largozinho sobranceiro ao porto, onde está uma ermida, um muro de defesa e uma casa de tectos amolgados, de janelas de vidros miudinhos, com um balcão e uma chaminé: o bastante para morar. Good-bye, Santa Maria! Nossa Senhora da Assunção de Vila do Porto te conserve em boa paz ... VI. Corisco… 31 de Julho de 1946 As cidades dos Açores não foram urbes traçadas a rego de arado, nem empórios crescidos em embocaduras de rios férteis, nem aglomerados feitos em arraiais de feiras ou em grandes nós de comunicações terrestres naturais. De nove ilhas que conta o arquipélago só duas tiveram durante quatro séculos o timbre de cidade: a Terceira e São Miguel. Angra e Ponta Delgada cresceram primeiro como fixadores das populações dotadas de maior área insular, e logo como chaves de situações geográficas mais acessíveis e demandadas. Das ilhas maiores só uma -o Pico -não chegou a atingir densidade citadina. O seu dispositivo montanhoso maciço (inútil farol de noite lhe chamou Chateaubriand), a porosidade do seu solo pouco propício à agricultura e impróprio para a pastorícia de prados especializaram-na na pesca, no vinho e nas frutas -três géneros de actividade que, por si sós, dificilmente geram mesteirais e mercadores, ou seja, o húmus dessa coisa febril e às vezes monstruosa que se chama uma cidade. E foi preciso que a crise baleeira de meados do século XIX acossasse os veleiros americanos para o médio Atlântico e aí os fizesse refrescar, para que o Pico, apoiando-se no Faial e o Faial no Pico como ilhas satélites alternas, ajudasse a fazer a Horta carvoeira núcleo de desvio de excedentes demóticos para a América, privilegiado em moderno foral por um marinheiro nato que navegara nas ilhas: o rei D. Luís. Também Ponta Delgada tardou em ser o importante porto comercial e estratégico que hoje é. O comércio açoriano do século XVI dividia-se quase equitativamente entre ela e Angra, a sua irmã de noroeste, praticamente reduzido aos mimos e manufacturas que entravam e ao pastel que saía. Assim continuaram sensivelmente as coisas até que a produção e a exportação laranjeira, fomentadas em São Miguel principalmente pelo prussiano Schõltz e por um emigrado político do continente, Vicente Ferreira Cardoso, começaram a inclinar a balança para o lado da ilha principal. Dois motivos geográficos decidiram por pouco mais de dois séculos a questão da importância relativa entre Angra e Ponta Delgada: a centralidade da ilha Terceira e a configuração da sua Angra, inóspita aos ventos de sudeste (o temido <> da minha infância), mas maneirinha e de fundos convenientes aos curtos calados das naus de bordada grossa que o Monte Brasil -septo natural entre dois abrigos naturais -apoiava e defendia. Um motivo histórico mais dinâmico que a donataria sedentária e setentrional dos Câmaras em São Miguel -as capitanias limítrofes e concorrentes dos Corte-Reais e dos Martins Homens, gente de mar e de aventuras -favoreceu a ilha Terceira, fazendo de Angra, em circunstâncias ainda hoje mais ou menos obscuras, estaleiro de cascos de longo curso dos mares de oeste, e portanto centro de atracção e de gravitação marítima. Os Espanhóis achavam ali uma tradição derroteira, uma defesa natural fortificável, e talvez também uma unidade agro-pecuária mais concentrada e útil, como interlande de recurso, ao portinho sombrio e aristocrático, cujo carácter de chave dos portões açorianos a toponímia do ocupante consagrou no plural las Terceras. As ilhas grandes não tinham conhecido até 1582 nenhuma forma de ópido, a não ser as eminências a que trepavam as suas tímidas e escassas populações quando eram surpreendidas pelos piratas de Argel e do Noroeste europeu, e a que alguma cortina ou fosso rudimentares davam a aparência de fortes. Assim nasceram as pobres barbacãs de Vila do Porto -hoje hangar e bar de uma espécie de porta-aviões construído em calcário –; assim surgiram os pequenos altos fortificados de Ponta Delgada e o Castelo dos Moinhos de Angra, cuja designação alude patriarcalmente à origem quase caseira de uma cidade feita com uma simples ribeira e com meia dúzia de mós. As palavras corsairinho e corsaira, cada uma em seu extremo semântico de ternura e de aviltamento, ainda lá estão, no vocabulário dialectal, a atestar a resistência do primitivo ilhéu à solidariedade transatlântica. É certo que, nos casos do corso, solidariedade bastante arisca e indiscreta... Mas (ai de nós, enjoados do Carvalho Araújo e ex-passageiros do vapor Funchal!) a rebelião açoriana contra o mar alto, nosso cordeiro e nosso lobo, foi cedo sufocada. Instalou-se em Angra a Provedoria-Mor das Armadas que regressavam da Índia e procuravam naquele desvio a segurança das suas cargas. Paulo da Gama lá dorme, ao pé dos navegadores da Terra do Bacalhau e da Terra do Labrador. E os Espanhóis, paradoxais inventores da Invencível Armada, temendo o conde de Essex e os seus implacáveis almirantes, tiraram o sossego às ilhas: fizeram de Angra um porto militar, adivinharam o porto aéreo das Lajes e o de Santa Maria, antes que Roosevelt pronunciasse estas graves e talvez fecundas palavras: hemisfério ocidental. Sigamos o <> que os Açores aceitando o símbolo miniatural das ilhotas adjacentes a São Miguel -perfazem humilde e corajosamente junto do Atlântico abissal. Eles lá estão cerrados, vulcânicos, navegando em patrulha, de atalaia à linha hemisférica que tanto divide o Norte e o Sul atlânticos como equilibra os continentes do Leste e do Oeste da Terra. É no centro radial dessa rosa geométrica que se aninham as pequenas cidades açorianas, cheias de sentido marítimo, de trabalho recluso e calmo, de comunhão humana pelo isolamento e pela longitude -enfim destas coisas sérias e sem nome que são a vida e que o estilo arredonda e esquadria arbitrariamente, como o cartógrafo ... Infelizmente, não há mapa de cores -e muito menos cor-de-rosa ... -para os sentimentos que compõem a nossa existência variável como o vento, e apenas firme numa teimosa referência a alguns torrões de lava semeados no mar. Arrisco-me, pois, como puro armador de navios imaginários, a fazer, dos leitores, passageiros sem segurança nem rumo certo, numa viagem que sinto poder durar meses num quarto de hora, e em que lhes dou, sob pretexto de um rápido turismo evocativo, um mísero rancho de proa, e portos enevoados ... Arribamos já a Ponta Delgada, embandeirada na sua arcaria de honra, fechada nos palácios e nos parques que abrem, por excepção, a grade e a gelosia. Apesar de exultar ainda há pouco nos seus quatrocentos anos de nobreza civil, a cidade está ainda meio amodorrada nas suas nuvens perpétuas e nas cores mortas das casas. O alto da Mãe de Deus é como que o registo da ilha séria e aldeã do Senhor da Pedra. O Senhor Santo Cristo dos Milagres está dolorido e fechado na Esperança; é o sudário da ilha dos trabalhadores pobres e honrados, que falam cerrado, tangem o asno das lombas, estrumam as estufas, talham os blocos da doca. A primeira presença da ilha é a deles nas lanchas do tráfego. O arcanjo São Miguel couraça-se nos seus chapeuzinhos furados, tem o lume da espada nos pobres cigarros que lhes vão crestando os dedos. Pelo menos para nós, ilhéus das ilhas de Baixo, a alma de São Miguel é neles que assoma e se revela à chegada. A solidez da terra está naqueles calos de remo, naqueles antigos bigodes que são o divertimento das mãos sem tempo para mimos, e nos olhos compridos de verem o fundo à rasa do milho e o fundo ao mar da doca. Eles arrotearam os baldios; cavaram com a enxada de ferro mais longo que se emprega nas ilhas o fértil Campo da Vila; plantaram o chá e o tabaco que as filhas de xale e lenço enrolam picado nos cigarros; escolheram o ananás emalotado por suas mãos; carregaram-no a bordo; chegaram carvão às caldeiras que o transportam ao Havre e a Londres. Aquele ninguém que esbraceja em direcção ao portaló do nosso paquete, e quer ser o primeiro a lançar o croque à escada, larga uma praga – <> –, que ficou de brasão ao povo micaelense na linguagem das ilhas de Baixo. E quem sabe se a alma daquela gente de honra e de nervo não foi feita do raio que abrasa os preguiçosos e os hipócritas? ... As camadas médias da humanidade de São Miguel levaram muito tempo a aflorar; mas hoje já quase submergem uma nobreza territorial que, cumprida no século passado, por alguns dos seus membros, a missão de reestruturar a civilização demasiado rendeira da ilha, se tem dispersado pouco a pouco no absentismo sumptuário, engrossando a olhos vistos as fileiras burguesas e até os quadros proletários do trabalho. Pois não é simbólica a conversão moral de Antero, descendente de navegadores e quase grande proprietário, no efémero tipógrafo asceta e socialista de Paris? E o recurso de Teófilo Braga, filho de agenciário e de fidalga, ao trabalho assalariado de que surgiu letrado e self-made man? Em meados do século XIX a aristocracia fundiária de São Miguel dá a sua flor de esforço num grande homem modesto -José do Canto -, cujas actividades mecenáticas estão na base da grandeza cívica e laboriosa da ilha. É ele que aclimata o chá e o tabaco industrializado por José Bensaúde, expoente da alta burguesia de Ponta Delgada e chefe da família que ajudou a comercializar o seu porto, ramificou na Horta mobilizando o carvão e os refrescos, acelerou as comunicações insulanas, dedicando-se ao artesanato de violinos, à etnografia, à reforma do ensino superior técnico em Portugal, à alta cirurgia, à história dos Descobrimentos, à fitopatologia... Refiro-me principalmente aos nomes de Alfredo, Raul, Joaquim e Matilde Bensaúde. Os irmãos Canto, outra célula familiar da estrutura do povo micaelense, passaram a vida: um a povoar a sua ilha de árvores e de flores, José do Canto; os outros -Ernesto e Eugénio -e o próprio José do Canto a enchê-la de bibliotecas em que se toma consciência do passado açoriano, dos descobrimentos portugueses e do génio de Camões. Roberto Ivens, com a sua carabina e a sua tenda de explorador, paga o honrado tributo da população adventícia de Ponta Delgada, oriunda dos estrangeiros que lhe europeizaram o comércio, numa vida de pioneiro, soldado prático do Império, ilhéu corredor de latitudes. O padre Sena Freitas salda em prosa a sua dívida patriótica de filho de continental acolhido à grei açoriana. Assim a biografia, género aparentemente tão individual e anedótico, nos vai ensinando que a história não é um tecido luxuoso e abstracto de acções militares e políticas, mas a vicissitude familiar, a tradição vivida, o mistério da vocação. Devemos a José Bensaúde o precioso testemunho das últimas horas de vida de Antero de Quental: as suas disposições aparentes, o estado do tempo na sua ilha natal e mortal, o mistério tremendo das palavras banais que uma pessoa diz quando o destino já vai fechando as portas da morte e tapando as saídas do último apego de um <>. E devemos a Ernesto do Canto da Maia, escultor, a definitiva atitude desse mesmo Antero na paz da sua cidade, já calmo e de mármore, que é a tradução da substância da eternidade no nosso pobre vocabulário de simples sobreviventes. Assim os tecidos mais vivos do povo micaelense se organizam de modo a dar ao historiador sociólogo o dispositivo simbólico da humanidade da ilha, que abre na flor imarcescível de um poeta e filósofo europeu: Antero de Quental. Mas a nossa viagem está no fim. Levo afinal os leitores a porto de salvamento ... Tenho pena de lhes não ter mostrado, a estibordo, os muros de Angra, a sua cruz apostólica, os pastos dormentes da Terceira, os Ilhéus e o Fanal -que ainda hoje (mesmo apagado) me não deixa perder a certeza da terra e do sangue. Também gostava de vos meter no canal do Faial e de surpreender a Horta no seu sonho de cidade telegráfica e de ramo verde estendido para que os grandes pássaros intercontinentais pousem um pouco ... Mas, na pequena e perfeita democracia das cidades açorianas, hoje falo de uma só. O relógio de Ponta Delgada olha o Atlântico insulano e comanda-lhe todos os rumos. São cerca de três horas da tarde para o carregador da doca, para o cavador das Furnas, para o oleiro da Lagoa. Já se ouve tropicar o asno da Ribeira Grande de volta a casa. Daqui a pouco as camionetas de Vila Franca e da Povoação arrancam do Largo da Matriz. E uma janela que não tarda a brilhar na paz das Capelas, outra em Rosto de Cão -além do farol exacto da ponta dos Mosteiros, a primeira luzinha longínqua das minhas andadas por este mundo. Um <> dos Arrifes, meu humilde irmão do berço e do cárcere atlânticos, saúda-me com o étnico e levemente incorrecto nome de <>. Mas eu gosto; eu compreendo ... Entendemo-nos bem com estas pequenas liberdades caseiras, expressivas dos nossos seres e das nossas coisas, das cóleras sagradas dele e do meu <> terceirense pelos toiros, pela hegemonia histórica, pelo pão-de-leite com uma flor na cabeça e por não sei que mais. Eu, achando-o um pouco taciturno, invejo-lhe a energia e a paz de alma, a pobreza popular que nutre a riqueza pública, e aquele falar cavernoso que me deixa tocar-lhe nas entranhas. Amigo sã-miguel, desdenhoso de ociosos -boa tarde! Como há poucos ganhos nos Arrifes, vieste para Ponta Delgada e agora trabalhas na lanchinha. Eu fiz-me piloto e explorador de metáforas... VII. Uma Pista de Aviões Numa eira 1 de Novembro de 1946 A Terceira é uma ilha de carácter agro-pecuário, a que a guerra deu subitamente grande importância estratégica como nó transatlântico de comunicações aéreas. A sua grande eira, o Ramo Grande, tornou-se de repente uma pista colossal de aviões. A pesca, outrora abundante e variada, encontra-se ali hoje extremamente reduzida, apesar de uma recente indústria conserveira, que arma ela própria algumas embarcações que vão ao bonito e à albacora. Assim, da velha cintura de portinhos de pesca que enchiam o mercado local de tanto e tão fino <<peixe de caldo>> (abróteas, garoupas, rocazes, bocas-negras), resta, apenas, a quebrar a pasmaceira e a deserção dos varadoiros, a gritaria à rede do chicharrinho de Verão (o carapau do continente) e à rara e prateada cavala do alto. Porquê, esta fuga a uma actividade tão tipicamente insulana, consubstanciada com a índole e a experiência do ilhéu e tão necessária para lhe condutar o pão-nosso de cada dia? A explicação está, em parte, na maior procura de mão-de-obra desde que portugueses, americanos e ingleses alargaram e ocuparam o campo de aviação das Lajes, pagando aos mais variados tipos de trabalhador e suscitando empregos e fontes de ganho várias. POI' exemplo: na Praia da Vitória, testa marítima e centro urbano do aeroporto, e outrora um dos mais povoados portos de pesca da ilha, foi a classe piscatória (a Ribeira do Mar, como lá dizem) que forneceu o pessoal que, com um machinho ou um garrano engatado nos varais da carrocinha, ia buscar e levar ao campo os soldados e marujos de folga. Para eles se abriram cafés, bares, restaurantes, na antiga e plácida cabeça de capitania e de comarca, cujos belos e largos arruamentos de grande vila morta jamais haviam sido acidentados, a não ser por escassos magotes de testemunhas em inventário orfanológico ou em polícia correccional, que, chegados do <>, se dessedentavam com <> nas vendas, depois de terem engolido uma bucha de <> e uma <>, queijo de São Jorge... Agora, na vila histórica, aerodinamizada, toda vibrante das asas dos Dakota e dos Skymaster, os filhos e netos dos velhos lobos do mar da minha infância são grooms, cocheiros de carrocinha, engraxadores, criados de café, caixeiros de estanco e, até, donos de restaurante, de <> e de vendola. Noutros portos de pesca mais modestos, como São Mateus, Porto Judeu, Vila Nova, Biscoitos, Porto Novo, se o pescador se não mesteiraliza ou emburguesa, troca no entanto o caniço e a malha do enxalavar pela marreta e a pá do campo. Os salários, ali, são compensadores e seguros. Come-se e veste-se bem. De manhã chega o camião à freguesia de um fulano: Okay! Saltou e andou... Ao anoitecer: Come back pa'trás! Lá vem dormir a casa, a três ou quatro léguas de distância do campo, onde trabalhou e ganhou bem, sem grandes canseiras nem sustos, sem nortadas, sem molhas ... Mas a expressão da ilha, apesar desta reviravolta da fortuna que a fez um dos mais gigantescos poisos aéreos do mundo, continuou a ser uma expressão agrária e pastoril, de costumes castiços e de tarefas periódicas. Duas notas traduzem para mim, desde a infância, a presença e o viver da Terceira: o barulho e a brancura do mar desfeito nas rochas, e o mugido do gado nos cerrados e bebedoiros. Na estrada litoral passa-se neste duplo aro: a lambugem e o rumor da maré cheia e o cordão de gado que anda à canga ou, solto, vai beber. Ilha de terras lavradias quadriculadas em <> de dois, três, cinco alqueires (de cerca de dez ares cada um), e de vastas pastagens que sobem para o interior deserto de população, até às relvas delgadas onde só pasce o gado bravo, e aos <> baldios, cínzeos e pedregosos, em que mal desponta uma fêvera para dente de ovelha ou de cabra. Mas os pastos, que ocupam talvez mais de um terço da área da ilha, e onde predominam a trevinha e a erva da casta, grande parte do ano molhadas pelos nevoeiros e engordadas pela quente humidade dos nevoeiros <>, são excelentes, úberes, prodigiosos. Faltam-lhes certamente muitas coisas: melhoria de sementes herbáceas, charruamentos, abrigos de gado; mas, no próprio estado actual, em que tais progressos se esboçam apenas por parte de alguns proprietários mais abastados ou esclarecidos e a exemplo e ensino da Estação Agrária, constituem sem dúvida a principal riqueza da ilha. A criação de gado leiteiro é raro fazer-se em estábulo. O gado sustenta-se de palhas e verdes semeados no aro da casa agrícola, ou <> de altitude e de interior: uma parte do ano para o baldio ou para as <>, se o dono é pobre ou quando se trata apenas de <> a invernia antes de criar boa arrobagem. No resto do tempo, vive nas pastagens grossas, mimosas, como as dos Cinco Picos, as do Paul da Praia, ou conforme cada freguesia as tem e cada lavrador as possui. Mas o tipo de pascigo preferido pelo pequeno lavrador, que em regra não tem pastos próprios, é o cerrado de luzerna, forragem vivaz onde o gado come à estaca e que lhe vai rebentando e crescendo na a1catra ... A sementeira da luzerna, há anos importada da América, pode apresentar-se como o símbolo da feracidade da ilha e da consequente brandura e facilidade da vida do campo ali. Mas tudo tem contras neste mundo ... Se a luzerna é a mina do criador de gado leiteiro, é a peste do lavrador que pensa na rotação das suas culturas, pois diminui consideravelmente a área cultivável de cereais, de leguminosas, etc. -área já de si encurtada pela abundância de prados naturais, pelas culturas industriais da batata-doce, do tabaco e da chicória, pela entrega dos fertilíssimos campos do Ramo Grande à terraplenagem do aeródromo das Lajes. Felizmente uma autarquia local de largos recursos e experiência -a Junta Geral do Distrito Autónomo de Angra -, procurou compensar essa falta arroteando algumas dezenas de hectares (à moda da ilha: moios de campo) de baldios do Norte da Terceira: a Queimada dos Altares e outros tratos de terreno em projecto. Com tais características, a fisionomia da Terceira é profundamente rural. Angra levanta ao sul, na falda do Monte Brasil, as suas torres históricas; mas a densidade do casario, a perfeição do roteiro, a nobreza das linhas urbanas são um simples parêntese na vasta quadrícula de <> que é a cintura da ilha, toda bordada de casas ao longo da estrada litoral. A própria cidade, se, vista das eminências da baía, surge como um porto fortificado e como capital histórica de toda uma província insular considerada no sentido interior do seu desenvolvimento aparece logo como o assento de uma população de terra-tenentes, de lavradores e de criadores de gado. As suas casas continuam muito para cima da linha transversal e cêntrica dos arruamentos, onde ficam a Sé, os Paços do Concelho e os do Governo. Sobem a grande vertente da velha Ribeira dos Moinhos (núcleo da vila de Angra), estendendo-se radialmente ao longo das várias vias de acesso às pastagens do interior, onde formam pequenos aglomerados suburbanos: Pereira, Pateira, Desterro, São Luís, Lameirinho, Vinha Brava, Pico Redondo, Posto Santo, Figueiras Pretas ... Os antigos e actuais <> do Lameirinho e da Vinha Brava atestam -estrategicamente, por assim dizer esse carácter pastoril e leiteiro que é o sólido complemento económico de Angra e que tão subtilmente se insinua na sua expressão urbana. A praça de toiros, na raiz da Canada Nova, é o coliseu da terra. Os leiteiros, de camisão branco e de carapuça de meia, são, com os vendilhões de fruta e de peixe, os despertadores da cidade. As carrocinhas e charretes que demandam, de travão apertado, a Praça Velha, acusam por alguma forma a omnipotência e a omnipresença local do leite e do gado: alguma malheta de rama na boleia; uma lata que vai a consertar; o bordão levantado do pastor que vai prestar contas a <>, Ainda mais marcadamente rural do que a expressão de Angra é a da Praia da Vitória -e não porque lhe faltem primores urbanísticos no amplo traçado citadino, cuja vida decuplicou com o movimento do aeroporto das Lajes: mas porque as suas saídas, o seu dispositivo espraiado, ao fundo da encosta fortemente rural da serra do Paul e à entrada da planície cerealífera do Ramo Grande, lhe dão uma textura de assento de lavoura. Angra como que é mais pastoril; a Praia da Vitória mais agrícola. Quase pelada de árvores, com um relevo abatido e de cotas arredondadas, a ilha Terceira abre ao viajante as suas fortes veias de fertilidade e de trabalho. A estrada litoral debrua-se de casas de lavoura, apenas mais densas nas abas da igreja paroquial. porque a área de fogos, por assim dizer, não se interrompe senão para deixar que a área agricultável respire de traça humana. Vamos cingindo, com as voltas do nosso carro, as paredes de pedra solta, o cai aço branco do casario avivado de barras multicores, a <> e o <> de milho escorados nos pátios domésticos, a cevadilha ou espirradeira (laurier rose), como na Palestina, que, alternando com o girassol, o cardeal ou o malvão, alegram a entrada de casas e perfumam o traço da porta, com uma fiada de mogangos. De onde em onde, um álamo ou dois acusam a ponte da ribeira que fez nascer o povoado ou deu cruzamento aos caminhos. Até os álamos se aproveitam para arrumar o milho! Com altos anéis de zinco, como galinhas calçadas de retrós, essas árvores suportam nas pernadas mais fortes os <> -pequenos montes de espigas (<>) ligadas pela camada exterior das suas capas de palha, que se arrepiam e atam com fibra de espadana ou de vime. E do Outono ao Inverno, à roda da ilha, as freguesias da Terceira parecem falar-nos de dentro do bioco branco e roxo-rei das suas casas coroadas de mogangos e de milho. Terra abundante, que cheira por toda a parte a lava e a pêlo de boi, com água a cantar nas bicas privadas e públicas, grandes chafarizes e bebedoiros cheios de gado lavrado, saro, picardo, estrelo, lagarto, fusco, mulato ... Terra planturosa, de palhas imensas ajoujando as chedas dos carros no Verão e no Outono; de verdes perpétuos que arrelvam as suas desoladas extensões interiores: o mato, o mofedo, o <>. Na Primavera, sobretudo, os nevoeiros cobrem as pastagens de uma nuvem húmida e volante, que chega a embebedar. É o <>, propício à trevinha e à erva-da-casta que enchem os amojos às vacas, mas desfavorável ao homem, a quem não deixa ver um palmo adiante do nariz… Vamos à primeira tourada à corda desde que chegámos à ilha. Agualva. É uma das raras freguesias interiores e montanhosas. A serra da Agualva negreja de longe aos olhos de quem, atravessando o descampado e húmido interior, demanda os ramais norte e leste da estrada central. Uma tourada à corda é um divertimento incrível... Os caminhos coalham-se de gente. Ranchos de rapazes, de bordão às costas, arredam-se à passagem das carrocinhas típicas da ilha: dois curtos assentos perpendiculares ao da boleia, anteparos laterais e portinhola atrás. O exterior da caixa é sarapintado de cores vivas. O machinho ou o garrano, enfiados nos varais e sacudindo as guizeiras, avivam o trote tropicado. Mas também há éguas e cavalos de rompante que, ajaezados de amarelo, fazem arredar a fila compassada e sendeira. Lá vão, nas carrocinhas a1ceiras, as seis pessoas da praxe: o pai, a mãe, as duas ou três raparigas, os dois irmãos ou o irmão e o vizinho de mais perto. Parece milagre que caiba em tão escassa boceta tão complicada família. Mas cabe .. . E às vezes ainda se arranja lugar para um inesperado ou intrometido ... No arraial compacto, junto do largo da igreja, abre-se uma clareira de pânico. É o toiro que assomou na ponta de uma corda comprida, embolado e amarrado pelo pescoço. Uns seis pastores de camisola branca acocoram-se na estrada empunhando o outro extremo. Com a força do impulso, são projectados alguns metros adiante; mas o toiro quebra de ímpeto. Isto é <>. Então os engraçados vêm abrir e agitar diante do boi os guarda-chuvas, os casacos, os chapéus, as verdasquinhas... Uma atmosfera de assuada e de pó envolve tudo -até que, ao bombão que anuncia a recolha do último toiro, começa o desfile da retirada. A alma da Terceira encontrou mais uma vez no toiro preso o pretexto para a sua expansão ruidosa e pueril. Dois chocalhos ao longe e uma guizalhada perto marcam este búcio fim de festa. O farol verde do campo de aviação das Lajes, à margem deste mundo castiço e labroste que retira, pilota outro mundo que avança a quatro motores e que o matará. VIII. As Derrotas de Oeste 18 de Setembro de 1946 Quando pensava fixar-me na minha pátria Terceira os dois meses de férias e de aventura insulana a que me atrevi, eis que um convite instante de amigos das ilhas de oeste vem quebrar o meu primeiro torpor de falso turista. Intimam-me que parta. As sereias antigas, da Graciosa para baixo, aliciam-me. A próxima partida de um rebocador de alto mar faz o resto. Não há nada que desenhe tão bem o emparedamento do ilhéu como esta constante referenciação do seu mundo abreviado aos outros pequenos universos rodeados de água salgada: esta preocupação, sobretudo estival, de não perder contacto com o semelhante remoto. Uma cabotagem de barcos do Pico assegura de Verão, nos Açores, as comunicações entre as ilhas centrais e orientais. Só as Flores e o Corvo, separadas por muitas dezenas de milhas do grupo maior do arquipélago, estão excluídas da recovagem. Por isso são elas as freiras exemplares da comunidade atlântica: as que vêm raramente ao locutório; as que se fecham nas celas com mais gosto de paz e amor de solidão. O barco do Pico é um cavername aberto, nada elegante, de pouco mais de meio cento de toneladas, que arma duas velas latinas e singra de porto em porto e de canal em canal, carregando telha, leitões, cestos de fruta, chapéus de palha, e uma reduzida humanidade habituada à rebentação da costa e à vaga de través. Nunes Brothers, o hábil e afoito construtor de não sei onde na Califórnia, mas filho legítimo e fiel da freguesia de Santo Amaro da ilha do Pico, está encarreirando, na dita freguesia, onde se encontra a férias, um casco de cem toneladas, <>, filha do engenho nativo de Nunes Brothers enxertado na boa tradição calafate de Santo Amaro, com uns pozinhos de técnica ianque. Essa unidade caboteira virá revolucionar a navegação dos mares das ilhas. Mas, por enquanto, vigoram os velhos modelos do Ribeirense e do Santo Amaro, <> e a motor pobre, onde o cevado pode alternar com o passageiro e o atado de galochas fazer concorrência à mala de state room. Já meio resolvido a tentar a aventura a bordo de um desses transcanais, sou avisado da chegada de um navio-motor da praça de Ponta Delgada, miniatura de paquete que acorda a baía de Angra com os três fracos silvos da sua pacata sereia. Que saudades aquilo me faz dos tempos em que os vapores da carreira não entravam nem saíam dos portos sem aquele tríplice urro -grito de júbilo ao ancorar, puro gemido ao partir! Os antigos ilhéus choravam o proscrito tiro de peça do Insulano e do Açor... Eu choro o suspiro da sereia do San Miguel!... Já lá diz Fernando Pessoa (que tinha ascendência terceirense e veio de visita a Angra): Oh mar, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Marcadas as passagens na agência como se fosse para a América (com número de bilhete de identidade, filiação, profissão, estado e sinais particulares), contamos uma hora de atraso no cais, debaixo de um sol ardente. Embarcam ao mesmo tempo, mas num barco do Pico, alguns sacerdotes que vieram à sede da diocese, aos exercícios espirituais. Reconheço dificilmente no azulado das barbas feitas e no alvadio dos casacos de Verão alguns antigos companheiros de estudo, do tempo em que os seminaristas de Angra faziam os seus preparatórios no liceu. E, assim, o tempo começa a ter uma consistência física, feita de brancas, de voltas apertadas, de curva abdominal... Do velho e simpático rancho negro das escadas de São Francisco já saíram alguns mortos, dezenas de párocos, um arcebispo e patriarca... Domine, quid me vis facere? Por agora, tomar a lancha do Chalandra e abordar ao rebocador! ... E aqui começa, meus senhores, a mais bela rota transoceânica que se tem feito no mundo! E porque não?! Está ali o convés, de borda a borda; a casa de navegação com as <> precisas; um quadrante à Cardan; um timoneiro e um piloto. Está ali o mar ilhéu com o seu azul de veludo, a certas horas e costas o seu rolo manso e plúmbeo... a outras a sua vaga verde salpicada de cristas brancas. E estão ali ao longe as primeiras ilhas visíveis, seus amplos dorsos cinzentos ou verde-verdete ... o perfil testarudo das suas falésias a pique. Um amigo geógrafo, arribado como eu aqui à plaga insulana, nossa mãe e madrinha, observa-me que estas rochas a prumo, como que partidas a cutelo, devem ter resultado de desabamentos progressivos, devidos à sapa constante e paciente do mar. Noutro ponto, porém, as costas apresentam-se lisas e arredondadas da erupção. Cobre-as uma pastagem rente e densa, que toma do mar e do céu, alternativamente, uma das quatro cores do extremo do espectro. E, neste mundo da sombra, da velatura e da penumbra, vamos vogando a alguns nós, costeando ainda a Terceira na sua orla sudoeste. Digo um íntimo adeus à curva do Fanal, à torre de São Mateus da Calheta, às poucas araucárias que deste lado da ilha atalaiam as rotas de oeste. Passados os primeiros três ou quatro quilómetros a oeste de Angra, vai-se toda a graça e beleza do habitat dos arredores. Caminho de Baixo e S. Carlos são núcleos de bairros residenciais do termo de Angra, cujas quintas e casas rivalizam, em regra, com o que há de mais requintado no urbanismo de arrabalde em qualquer parte do mundo. Agora, porém, o nosso estibordo só mostra um litoral inacessível, não muito abrupto, fracamente recortado. A vinte metros de <> já a ilha tem um aspecto francamente rural, ou (melhor) pastoril. Um cordão de casas brancas, cuidadosamente caiadas, vai acusando os meandros da estrada litoral. De cinco em cinco quilómetros ergue-se a igreja rústica. As freguesias, aqui, são designadas pelo nome do orago e pelo número de ribeiras que as separam da cidade: Nossa Senhora do Pilar das Cinco Ribeiras, Santa Bárbara das Nove Ribeiras, S. Jorge das Doze Ribeiras. Mas há outros lugares cuja toponímia acusa esses teóricos cursos de água que serviram à <> dos primeiros topógrafos da ilha: Duas Ribeiras, Sete Ribeiras, Cartoze Ribeiras ... (O que vulgarmente se abrevia em: as Duas, as Sete, as Catorze ... ) Ribeiras!...Quem ouve isto vê água a correr, lavadeiras a lavar, amores hidrográficos à margem... Nada disso! Tirando a Ribeira dos Moinhos de Angra, a da Cruz da Vila e a da Agualva (tudo mós), os lugares da Terceira com esse nome são simples sulcos de pedra que descem das encostas centrais, onde os riscos sombrios de uma vegetação mais densa acusam o fio de água. São cedros anões, hortênsias, coquilhos, roqueiras, algum rebento de robinia pseudo-acacia, que conseguem viçar a alguns quilómetros das aldeias e da rocha do mal'. Ressequidas de Verão, e até de Inverno, só algum ciclone outoniço ou as chuvas constantes da Primavera as fazem rebentar. Arrastam então consigo cepos arrancados e troncos, pedaços de alfaias agrícolas e até alguma rês surpreendida nos pastos a beber. Já a ponta da Serreta nos lembra que a costa da Terceira está no fim e que começamos a navegar desabrigados dela. A ilha Graciosa desenha-se ao longe como dois bocados de pão mal partidos. E logo estas extensões insulares, que de terra parecem tão curtas, vão cobrando no mar a realidade das suas milhas e a noção de perigo que, a bordo de pequenas tonelagens, de um momento para o outro podem ter. Já o navieco vibra ã nortada que se levanta, e as suas bordadas tentam alternadamente a flor de água. Mas porta-se bem. Tem aparentemente tudo o que comporta um paquete: convés, camarotes, beliches, porão, casa de máquinas, etc. Na casa de navegação o jovem capitão do Furnas, em camisola de rede, comanda: -Mais estibordo! Digo adeus à calheta longínqua onde sei que são os Biscoitos e onde ainda há poucos dias saudei as companhas baleeiras de um armador meu amigo. Evoco o perfil das canoas varadas, elegantíssimas, que parecem não ter proa nem ré, tão indiferentes e velozes são os seus topos de quilha. Que lindas embarcações, cheias de precisão como relógios, com o lagaiete pronto a receber as voltas da linha enrolada sem coca nas selhas, os arpões a postos, as pazinhas prontas a substituir os remos ruidosos à aproximação do leviatã. Navego agora cada vez mais no rumo dos mares do cachalote, numa embarcação condigna destes canais e destes portos, própria para meter a proa entre um ilhéu e a terra ou entre um paquete e um ilhéu. Não enjoo, mas percebo como um estômago se pode virar do avesso nestes tombos. As portas do camarote batem: as caçarolas da cozinha andam num polvaró; um galo, enriçado, bate as asas à popa. Não tenho medo (nem é mar para isso), mas sinto o coração vagamente cerrado e salino. Os biologistas comparam o estado interior das nossas vísceras à implantação de animálculos num meio salgado e tépido feito de linfa e de sangue. Sinto um travo gostoso na boca, que não sei bem se é da água salgada ou do meu próprio sangue. Um velhinho simpático e venerável, prático da Praia da Graciosa e tio de um amigo meu fraterno, marca o lugar preciso ao transitório ferro da minha navegação. IX. Da Graciosa ao Faial 14 de Novembro de 1946 A viagem vai no fim e o coração dá sinal…Não mais ilhas à vista e canais de través! Adeus, céus de borralho, mares de metal, lavas negras! Adeus serenidade, sossego maciço, paz cinzenta! E muitas outras coisas que não me atrevo a dizer, tais como a ausência, e o Escampadoiro ou o Pico da Bagacina, considerados lugares sagrados. Meto porém na ordem a matilha dos meus sentimentos de jornada e entro pacatamente no rebocador de alto mar. Como disse, o cais estava cheio de gente, principalmente de batinas. O clero de oeste recolhia dos exercícios espirituais. Mas eu não quis aquele barco-de-boca-aberta que pasma ali na baía, e que, em meia dúzia de horas, porá na ponta do Pico aqueles respeitáveis sacerdotes. Eu vim cá pelo largo, costeando a Terceira semeada de casario branco, de cerrados torrados pelo Verão, de bois e de vacas que enchem os bebedoiros e os caminhos. Dobrada a ponta da Serreta, em duas ou três horas chegaremos a porto de salvamento. A primeira etapa é a Graciosa, e já sinto na proa do barco o palpite dos remos do prático, direito ao ancoradoiro. Se Chateaubriand tornasse aqui com Tulloch, seria esperado pelo senhor capitão-mor de Santa Cruz fardado de verde-salsa; iria comer ao convento dos franciscanos, ou coisa assim. E o seu faro implacável denunciaria outra vez o cheiro a seara insulana; os seus olhos exactos marcariam a mancha esbranquiçada das narcejas e o olho picado dos figos ... Os tempos, porém, mudaram muito desde que o visconde por aqui passou, direito ao Niágara e ao Mississípi. Agora a Graciosa não tem capitães-mores nem frades: é esta ilha hospitaleira, retirada, benigna, que vindima o verdelho mais dourado do mundo e explora as águas termais mais obscuras e beneméritas da carta hidrológica de Portugal. Carapacho -bonito nome! De bordo mostram-me a dedo o fio de casas da freguesia da Luz, e logo aquela edificação mais comprida, que deve ser o balneário. Tudo pelado e amarelado, a ilha ao longe é por assim dizer inóspita. Todas estas nossas ilhas de Baixo escondem as suas belezas para que lhas não cobicem. Algumas têm o mais belo de si na entranha, como uma mãe que demora na serenidade do regaço a aparição do seu amor: tal é esta Graciosa com a sua furna imensa, catedral de lavas ínvias. Mais uma vez falho a descida prodigiosa (dizem...) à furna que o príncipe Alberto de Mónaco e outros visitantes de crédito tanto têm celebrado, e que é (parece...) uma maravilha de sombras, de estalactites, de estruturas tostadas e brutais. Uns gabam-lhe o cânone dos pilares monstruosos, outros o indefinido e o terrível do que se adivinha no oco, para lá dos bocados acessíveis. Enfim: não vou à furna da Graciosa! Falho sempre o melhor ... Mas, pela minha velha e pacata furna das Quatro Ribeiras, pela da Madre de Deus e por alguns algares quase domésticos da Terceira, sou capaz de dar uma ideia dos prodígios do chão roto e secreto das Ilhas. Uma atmosfera de cripta, vagamente enxofrada, envolve de penumbra quem lá entra. Estamos em geral sob uma abóbada de fogo que o tempo petrificou, e em cima de bicos de pedras que, percutidas, deitam lume de si. Umas são roxas e pretas, outras lilases e cinzentas -todas escuras e bicadas como rebuçados em <>. Ao fundo treme a luz de esmeralda das avencas. Cheira a húmido e a morto. Que mundo é este que se nos revela nestes pedações vulcânicos forrados de um solo magro e cínzeo? Que impressão é esta de apartamento, de alfa e ómega da vida ... aquiescência final e paz para se ficar mesmo ... ? A noite fechou a Graciosa no seu manto estrelado; foscou todas as sombras e acendeu as luzes da ceia nas casinhas. Na vila avultam as moradas nobres, e qualquer ambição de desafogo tem natural saída na ponta altiva e em cruz das araucárias. Deixo-as aqui, gigantescas, em Santa Cruz da Graciosa; deixei-as lá, monumentais, na minha pátria Terceira; vou encontrá-las de todos os tamanhos, e mais numerosas que em nenhures, na Horta da minha adolescência. O rebocador leva a âncora às onze da noite (hora de Greenwich), e eu também levo (se é que não levanto ibidem... ) o ruído baço da proa do gasolina da partida dentro do meu coração. O que a gente consegue cá meter! Quisera ver a costa de São Jorge à medida que lá chegássemos. Mas o homem põe, Deus dispõe e os rumos saíram-me trocados, as horas todas caldeadas... Passaremos a noite bordando a costa abrupta da ilha, sem ver nada senão o palmo adiante do nariz receptivo aos bafos de bordo e felizmente firme ao enjoo. Bela casca de noz com cómodos para tudo! -camarote a dois beliches, sandes chiques, cerveja desrolhada por um groom! Mundo abreviado, como nos grandes paquetes -aqui só falta o mostruário da fauna, como na Arca de Noé. Para Arca de Noé, porém -barco do Pico. Aí, sim, que o porco disputa o palmo de coberta ao passageiro; a galinha cacareja ao ouvido do enjoado; Noé, de arrecada de oiro e barba de rabo de leque, administra a justiça e aguenta a cana do leme. Às seis horas fundeamos na vila da Calheta. E, nesta manhã búcia e chuviscada, em que não apetece desembarcar mas é consolador ver terra através do cendal do aguaceiro, mal sabemos nós que a pobre Calheta está em vésperas de sentir os seus telhados pelo ar, ter o caisinho arrombado, o varadoiro destruído e as casitas esborralhadas. Algumas pessoas amáveis, sabendo-me autor de um livro que tem algo que ver com estes braços de mar e estas ilhas por onde me arrasto agora, gracejam: <> Não. Apenas, como se diz no Pico e à moda da América: tempo rofe ... Antes de partir, alertei os postos, telegrafei a eles todos: Sigo inspecção portos Canal. <> -são os quarenta maiores das ilhas de Baixo, os amigos velhos do tempo do liceu e do tempo de Coimbra, dois dos quais me convidam para esta dissipação: António de Freitas Pimentel e Tibério Ávila Brasil, médicos de peito largo ... A outros, como Manuel Gregório e Nicolau Nunes, médicos também, mal tenho tempo para abraçar, entre o chega e o larga da escala. Vamos deixando chi-corações pelo caminho como quem semeia em terra duvidosa: não aqueles seus arcaboiços, que são firmes e amigos, mas o ladrão do tempo, que bem nos pode lograr, não nos tornando uns aos outros. Este São Jorge é uma ilha e tanto!, com a sua lomba infindável, os seus pastos altos e eternos, as suas fajãs escondidas, os seus incenseiros cheirosos. (Como autor de roteiro, obrigado a uma certa informação, sempre direi que as ilhas mais lindas dos Açores, como mundos abreviados e verdes, são só três: as Flores, São Jorge e o Faial. Mas as mais feias, como Santa Maria, também são mais bonitas por outros motivos que não digo... Aqui, em coisas de Açores, nem tudo se quer assoalhado.) Atravessamos o grande canal, da ponta dos Rosais (São Jorge) à (esquece-me o nome!) do Pico -e aqui é que eles se conhecem, os marinheiros, com o tombo que tudo isto dá na vaga rolada e de través: as caçarolas voando na miniatural cozinha; o galo de bordo todo irritado com o equilíbrio instável... Mas já a Horta assoma; às três da tarde, abrigada à doca deserta. Sente-se ali o vazio deixado pelos Clippers e pela antiga tonelagem que vinha carburar e refrescar noutro tempo. Só os cabos telegráficos internacionais ainda amarram ali, mantendo à cidadezinha em flor o arzito fresco, cosmopolita, de porto apetrechado. Gosto da Horta como de nêsperas! Tinha saudades do que fui, já nem sei bem como, aqui. Todo o imaginado é mais ou menos frustrado quando o realizamos; mas na Horta não, que é excedido. Ao comprido da Rua do Mar desenvolvem-se as casas; sobre a célebre rua única da cidade as travessas que descem da encosta trazem também a sua modesta contribuição de fogos e de trânsito. O Largo do Infante, ao rés do mar, funciona de belveder sobre a massa compacta e aguda da montanha do Pico (três mil metros). E o resto, tudo bem: matriz no alto onde foram as casas do donatário flamengo e que os jesuítas adaptaram, como sempre, cubicular e faustosamente; mais duas ou três igrejas conventuais nos altos; a cada ponta, ou sainte, as paróquias da Conceição e das Angústias; e o mais que é preciso para completar uma cidadezinha airosa, alva como uma noiva. Horta! For ever! Sailors are welcome... Okay! Guardo cá para mim os primores do acolhimento, a hospitalidade patriarcal, a gentileza em tudo e por tudo. A Horta sempre teve na minha mania ou imaginação uma espécie de cara fêmea: não sei quê de donzela, de amor que não se teve, de adolescência sumida. Tudo isto exprime afinal, tolamente, uma coisa bem simples: o muito que eu gosto da terra do Faial e da sua cidadezinha. De manhã passam nas ruas as carripanas do leite e dos ovos, as carrinhas, todos os sinais do acordar. As janelas das casas têm as gelosias por fora. Abrem-se devagar, como pálpebras; e lá aparecem as donas de casa e as raparigas espreitando ou tomando os ares da doca. Ruas mais quietas do que as transversais da Horta nunca eu vi! As calçadas ainda são de pedra grada e boa para as ervas crescerem; ainda há casarões antigos, com cunhais discretos e telhados cobertos de milho de canário; a casa dos Arriagas fala do tempo morto, mas já não tem o clássico castanheiro que dava sombra a quem quer. Já não conheci a senhora D. Cristina, mas li-lhe as Flores de Alma e ainda pude ouvir a outra romântica irmã de Manuel de Arriaga, a senhora D. Mariana, falar do tempo abolido ... O Faial é discreto e feminino. As mulheres do campo deixam o sacho ou a forquilha para pegarem na agulha do crivo ou na farpa do croché. Ali borda-se a fio de palha em tule negro, mais leve que uma nuvem; fio de palha de trigo: de maneira que uma mantilha ou uma blusa parecem ter lume aceso. Os chapéus de palha dos Cedros são magníficos: há a trança de cinco pernas, que já vem dobada em rolos para certas modistas alfacinhas; há os grandes abeiros do Pico, que as rapariguinhas põem com uma fita encarnada (e à minha filha fica bem). E fazem-se flores de escama, prendas de miolo de figueira, toalhas de papel recortado que parecem de espuma. Fui a casa de umas senhoras que trabalham para exportar. Que bom gosto, que compostura antiga nos móveis e nas maneiras!, que sobrados aqueles!, que feições de família aquelas, que rompem o nimbo dos daguerreótipos e das fotografias velhas como borboletas saindo dos casulos de um mundo que morreu! Este meu roteiro não presta para nada, se não é o fio de saudade que o sustenta e que tento lançar ao leitor como um cabo a uma nau desarvorada. Estamos cansados deste singrar sem fim de ilha em ilha: eu, o leitor, as próprias ilhas que são a substância do roteiro. Qualquer dia acabo com isto e ponho-me a falar de outra coisa. Entretanto, como diz Montherland: Encore un instant de bonheur... X. A Cidade do Canal 11 de Outubro de 1951 Prometi uma vez retratar as sete cidades ou burgos em que VIVI por mais tempo, e afinal não passei de umas duas. Tendo começado pela terra onde nasci, esqueci-me por lá em minudências saudosas. Os naturais dos sítios são como os criminosos: voltam ao lugar do delito. Não que eu subscreva àquilo do poeta que diz que sempre o pior mal é ter nascido. O mal ou a culpa de Adão remiu-a Cristo com sangue -e Ele próprio se lustrou nas águas do baptismo, ainda que o Santo Espírito o tenha gerado sem mácula. Fora disso, não há mal algum em cá vir. Se o mal existe independente da consciência que o apreende e do coração que lhe dá campo, tal como o bem impassível. os homens de carne e osso os vivem e padecem -pois que o bem proceder nasce da paixão levantada. Sem suor do rosto, sem alento e outros sinais de existência, como queixar-nos da vida? Isto de mundo é irrecusável. Só há perdão para a repulsa do mundo no anelo da Santa Cidade. Ora, as minhas cidades não seriam santas, decerto que nem Jerusalém nem Roma me couberam –, mas eram as melhores que dar-se podiam a um vivo desenraizado. O mais importante nas memórias de homem um pouco peregrino é esse ponto dorido que o coração acusa quando se lembra do transplante. Partir, arrancar de um lugar, é pagar o preço da viagem, que sempre nos sai da pele. Morei em terras estranhas por largos lapsos de tempo e, apesar de as deixar para voltar às nossas, estremecia sempre. Vamo-nos semeando pelo mundo como um punhado de trigo que só numa única leira daria seara que se visse. E estes semeadores salteados, custa-lhes muito a ceifar… <> -é o lema do morar e possuir. Os pés de barro que tornam o recordar vulnerável são o <>, <>, forçosos na recordação. Mas já me desenganei; pois, como oficial de escrever e de falar, tenho de me agarrar ao pronome antipático e ostensivo: <>, <> a torto e a direito... Como o bom carpinteiro não larga a plaina da mão, o escritor, mais que a pena ou o teclado da máquina de escrever, não pode largar o <>. Que me arrancan mi yo! -gostava Unamuno de gritar, creio que com Michelet. A primeira pessoa do plural, aliás, também não fica bem a quem não apascente ovelhas de redil humano. Oh!, o emprego dos pronomes: a eterna história de O Velho, o Rapaz e o Burro... Mas dizia eu que o arranque do sítio onde vivemos resume o pó da jornada, fá-lo tragado e sufocante como nenhuma outra curva do caminho. Lembro as pequenas torres das igrejas e da Câmara da Praia, na ilha Terceira, que, deixadas ao alto da Boa Vista, me pareciam sepultar nos seus alicerces de tufo as casas dos meus e dos vizinhos, a escola, as ruas do trânsito e da gandaia, o cais e o areal dos sonhos. Eu chegava a Angra e, pouco a pouco, outras torres -maiores e tão duramente históricas, que duas delas, as da igreja do Castelo, campeavam entre torreões que haviam sido estrangeiros, assestando bocas de fogo sobre os naturais da ilha inerme -começavam a organizar em torno de mim a intimidade, a confiança, e dali a bem pouco o apego. Alguns anos bastaram para me naturalizar ali. E confesso até que, apesar de ter feito o meu transplante num palmo redondo de ilha, nunca uma aclimação me custou mais do que essa. As raízes então violentadas eram as mais tenazes, as primeiras. Depois, lentamente, a planta humana vai-se acostumando a que o destino, que é jardineiro, a <> -e acaba por ter o seu sistema de implante como que em estado de alarme. Umas gotas de água de rega chegam para lhe tornar algum viço. Mas dói, custa sempre... Recordo-me mesmo de que a minha segunda transplantação, a de uma ilha para outra, foi que me deu o tema para reviver a terceira -então já um salto grave, quase transoceânico, das ilhas para estas nossas portuguesas paragens, a que nós, os ilhéus, chamamos <>, de um ponto de vista telúrico que deve ter seu sentido em etnopsicologia. E é curioso que a evocação da largada decisiva tenha surgido noutro transe crucial de filho pródigo: a minha primeira fixação no estrangeiro. A sempre-mesma visão da terra deixada, em panorama, parecia levar, com o apartamento, a carne do saudoso aderida! Era outra vez toda a planta arrancada que se retraía e sentia murchar pouco a pouco. Algo assim como estas modestas largadas deve ser o passo do rio de Caronte. A uma perspectiva negra, de eclipse e de fim de mundo, sucederá, mediante a transição adequada, a adesão gradual à perspectiva nova que nos vai convidando e absorvendo. Não custa estar ... ser objecto de censo demográfico, de recolher e de alvorada, de almoço, de sesta e ceia. O que dói é tornarmo-nos de repente sujeitos do mundo concluso e ausente, juízes na própria causa subitamente processada ali diante de nós... naquelas casas do amor e do hábito que fogem ... que se aninham ao longe e é em nós que se comprimem. A Horta de 1918, a seis meses do armistício e da paz de Versalhes, era mais ou menos o que hoje é, apesar do terremoto que em 1926 lhe deitou metade das casas abaixo. Era uma cidadezinha branca, disposta ao longo de duas ruas de trânsito -das quais a Rua do Mar, a mais livre de casas, corre paralela à doca. O resto do roteiro corre em anfiteatro e pende sobre essas artérias mestras, alinhando calçadas que conservam o carácter antigo e suburbano da vila que o duque de Ávila, por lá ter nascido e medrado, promoveu a cidade explorando decerto as boas recordações que o rei D. Luís conservava de uma antiga escala dos seus tempos de capitão-de-corveta. Obscurecida em trato por Angra e Ponta Delgada -a capital política e a capital económica dos Açores -, a Horta ficou secularmente fiel ao pacato destino de ninho de povoamento que lhe marcara Jos de Huertre, o seu primeiro capitão e fundador flamengo. Mas o que a cidadezinha de oeste perdia em importância imediata, ganhava-o como nó de comunicações entre três ilhas centrais -Faial. Pico e São Jorge -e as duas avançadas longínquas do arquipélago sobre a América. Uma dessas atalaias, a ilha das Flores, fora em 1550 a alvíssara que Diogo de Teive merecera, na volta da sua misteriosa expedição ao norte do Novo Continente. A outra, o minúsculo Corvo, ficou sempre nimbada da lenda da estátua geognósica de um cavaleiro que se dizia apontar profeticamente em direcção a noroeste. Chateaubriand deu-lhe voga universal nos Natchez; Mouzinho da Silveira e Raul Brandão consagraram o Corvo como um refúgio de Robinsons. Agora, um jovem romancista luso-americano, Alfred Lewis, faz correr mundo as Flores sob a tentadora divisa: A Minha Casa É Uma Ilha. De guarda a estas sombras, em frente o Pico austero e coroado de nuvens cambiantes, a Horta esperou em silêncio a hora da crise mundial da caça da baleia, e logo o tráfego oceânico carecido de carvão e de cabogramas. De antes, era um modestíssimo assento de capitães-mores e de vinhateiros, vivendo da hortaliça e do leite dos bucólicos vales do Faial e das mercadorias trazidas pelos pequenos veleiros que levavam o vinho do Pico até à Inglaterra e ao Báltico. Apenas a sombra de Martim de Behaim, genro de Huertre, compendiando ali os dados semi-secretos para o globo que engenhou e ofereceu à sua pátria Nuremberga, projectava na Horta dos séculos XVII e XVIII um brilho de chave dos mares. No fim da Grande Guerra fui encontrá-la remoçada, de maillot e de guiga de regata, hospedando galhardamente navios-escolas de todos os pavilhões. As cidades pequenas e isoladas no Atlântico – Las Palmas, Bermudas, Funchal, Angra, Horta -têm um perfume salino e pétreo de fronteira entre o sonho e a realidade. Os ventos do largo levam-lhes o anúncio das orlas continentais nos bandos de gaivotas e cagarros que tentam as gáveas lá aproadas. Os sargaços e as algas flutuantes arrojados às costas são como que mensagens a laço, estranha telegrafia que os garotos ilhéus enrolam nas pernas ao banharem-se e que parecem decifrar com a mesma atenção e alvoroço com que guardam as garrafas misteriosas que a maré vasa lá deixa. Tudo no périplo de uma ilha alude ao possível na distância. Mas a Horta de 1918 já não era a simples cabeça intra-atlântica que espera das aves marinhas, no topo de algum raro mastro, a boa-nova do mundo. Nos seus botequins coloridos de frascos de bebidas esquisitas os monossílabos ingleses respondiam irónicos e benévolos às perguntas dos jovens faialenses feitas pel'O inglês tal qual se fala. No seu relvão da doca vibrava a bola dos onze internacionais improvisados. Depois, a cidade recaía no seu morno e intrínseco silêncio; voltava-se para o Pico sobranceiro; esteiava-se na dúzia de araucárias que, à falta de torres imponentes, lhe acastelavam o vulto espelhado nas águas do canal. O sino da igreja dos Jesuítas dava as horas pausadas. A couraça do Vasco da Gama, comandado por um oficial da escola de Mouzinho -Coriolano da Costa -, refazia-se a tinta cinzenta, abrigada na doca. Dois ou três meses bastam para criar entre um forasteiro e o seu efémero exílio uma acomodação razoável. As raízes cortadas longe pegam perto. Há logo ramaria nova, amigos que se admiram de nos conhecer há tão pouco, ruas que nos parecem reboar de passadas que teríamos ouvido no berço. O acerto não vem logo; o tempo decorrido no exílio é retrospectivo, remitente, mais consagrado ao perdido do que ao que se acaba de ganhar. Mas vem a hora do adeus, e tudo o que parecia violência feita à nossa tendência imóvel, que refere a paz e a felicidade ao primeiro lugar que nos calhou, torna-se <>, o território da lembrança que os faróis da noite vão lentamente dourando e logo remetendo ao escuro . .. Mau Tempo no Canal. XI. Inútil Farol de Noite ... 26 de Fevereiro de 1947 Com mais umas duas singraduras eis-me no Pico, ilha sagrada. Os seus esporões de lava parecem dar assento e estrutura ao arquipélago inteiro. Já dizia Chateaubriand, que passou por lá em moço: Inútil farol de noite, sinal sem testemunha de dia. E não é a melancolia e o estilo do jovem visconde que aqui falam. Na verdade, aproando das Velas (São Jorge) à Horta (Faial), a impressão que tenho, contornando o Pico no rebocador de alto mar que me embala bem mais do que me leva, é que este bom monstro marinho feito de nuvens e de escórias é um puro padrão de utopia -autenticamente um marco levantado em nenhures, como se Plutão quisesse demonstrar a perfeita gratuitidade dos seus movimentos e criações. Eu, o capitão do Furnas, a minha pequena companheira, mais quatro ou cinco passageiros, os poucos tripulantes da nau e o galo de bordo temos, na verdade, olhos na cara; e todos, excepto o galo, damos fé deste grande pão de lava aqui na boca do mar. Mas a grandeza deste cenário marítimo é tal que pedia a constante vigilância e burburinho de um porto, de um golfo, de um canal. Entre o Pico e São Jorge o Atlântico faz a mesma investidura que em certo ponto da Mancha -muito mais, por exemplo, em lançamento e imponência das estruturas de terra laterais, do que no Passo de Calais. Mas não. Escusamos de esperar, a um bordo ou a outro, a silva de sinais verdes, encarnados, amarelos, que se vai compondo com os penachos de fumo dos carvoeiros transientes, de algum cruzador ou simples torpedeiro da Home F1eet -em suma, dos mil e um acidentes próprios de uma artéria por onde passa vida e mais vida humana. A boa farolização das costas açorianas é certo que já não dá toda a força à frase do desconsolado e nobre autor das Memórias de Além-Túmulo. Mas, lente a mais, foco a menos, a impressão dominante de extrema solidão não se desfaz. Não é esta, porém, ainda a minha entrada no Pico. Uma coisa é sondá-lo dos canais, bordejar a sua enigmática e oblonga carcaça vulcânica coroada a sul pelo monte que o nomeia, e outra é penetrá-lo até onde ele se deixa intimar -pois sempre a coroa de neve do pico do Pico sobrepujará incomovível o atrevimento do viajante, afastando-o de si como a um verme da terra. O Pico, para os civilizados que vão direitos à Horta telegráfica e carvoeira, atinge-se pelo norte, nas lanchinhas que da cidade aproam aos ilhéus da Madalena. Este seu cais de cabotagem (o outro, o cais do Pico, é a vila de S. Roque, a meio canal de São Jorge) é uma vilazinha inventada por esta espécie de navegação, mancha de casario tanto ou menos importante que qualquer das freguesias que lhe integram o concelho, assim artificial. E o caso é que, mesmo pequenina, reduzida a um largo de camionetas e às agulhas das torres ousadas de uma matriz cristã, a Madalena é um dos portos de mar portugueses que maior movimento diário de passageiros regista. Daqui ao cais, onde me espera a santa hospitalidade, sigo em transporte colectivo na melhor companhia do mundo. Vão aqui bravos picarotos de todas as condições e feitios, e alguns faialenses que o volante, retendo-se, vai distribuindo patriarcalmente pelos casais e povoações de veraneio, que são mais ou menos todos e todas que não distem exageradamente do nó de comunicações com a cidade da Horta. Aqui nas Bandeiras deixo logo uma amizade nova que fiz em seis dias de Faial. Como a vida enriquece e amplia a vida, com não mais que deixá-la correr e deslocar-se um pouco! Hora a hora Deus melhora. E é-me agradável ver que só por me ter entregue a uma rota árdua e longínqua como esta das ilhas atlânticas, duma das quais sou filhote, melhorei, ampliei e variei a minha vida, sem nunca perder de vista os rumos iniciais. Ao longo destas aldeias apinhadas em volta da igreja paroquial e de costas para a lombra do Pico sentimo-nos embeber a fundo nesta natureza ao mesmo tempo solene e parca, feita de monte e mar. As casas são construídas a seco e de pedregulho à vista. São cubos negros que se levantam na estrada, com seu balcão anexo e uma cevadilha ou espirradeira em flor ao pé da porta. Mas a sucessão destes pobres habitáculos não dá nada a impressão de uma população primitiva. O próprio negrume do casario é atenuado pelas barras de cal que lhe debruam janelas e portas. Sente-se nisto tudo o dedo de um construtor antigo, sempre o mesmo aprendiz fiel aos materiais da ilha e à estrita tradição dos primeiros ocupantes. Não há propriamente alvenaria; o canteiro também não tem cá que fazer. Tudo se passa entre o dono da casa que a encomenda e o tapador que a executa. Nem é preciso tirar a pedra a fogo dos caboucos. Ela está ali, pródiga e avulsa, derramada por toda a velha área das vinhas do Pico, que deram um dos vinhos mais generosos e afamados do mundo e hoje estão desgraçados pela filoxera, pela incúria, pelo desnaturado gosto açoriano do <> (morangueiro ou isabel), etc… Garrett, que decerto o bebeu da frasqueira do tio, bispo de Angra, faialense legítimo, chamou-lhe numa ode da Lírica de João Mínimo <>. E na verdade o autêntico vinho de cheiro é este falerno branco que Tibério Brasil, o meu anfitrião do cais, passa trabalhos para desencantar das raríssimas adegas da ilha onde ainda se lhe sabe o gosto, o aroma e o rasto. Na corte da Rússia bebiam-no levado por veleiros ingleses pela via do Báltico. Eu fui prová-lo pela última vez, vai já para vinte anos, no Alto da Nespereira, no Minho em casa de Raul Brandão, que ostentava aquele lacre como um troféu da sua pessoal descoberta das Ilhas Desconhecidas. Agora, queimadas as vinhas pela moléstia, os currais de lava onde ela abraçava o pedregulho estão em parte cobertos, sobretudo nesta banda do concelho da Madalena, pelas figueiras anainhas que o picaroto deixa espontâneas e cujo figo come, vende e destila. Instalo-me no Cais por uns quatro dias. A vila é um composto de pequenos grupos de casas: o Cais, mais ribeirinho; São Roque, mais interior, e comandado por um convento onde está instalada a Câmara e funcionam todas as repartições públicas. Porque esta vila de São Roque, cabeça judicial da ilha do Pico, é relativamente moderna. São Roque e Madalena são posições geográficas de ligação numa ilha grande e demasiado periférica na distribuição do seu povo, sem nenhuma espécie de comunicações transversais, e que portanto teve de hierarquizar os seus agregados demóticos pelo processo um pouco artificial de vilas-testas. Dada a orientação e posição relativa às ilhas mais vizinhas, as costas do canal de São Jorge e do canal do Faial determinaram, muito depois da ocupação da ilha, a criação de pontos preferidos, nós de tráfico sem a correspondente e necessária preponderância ou superioridade absoluta sobre as demais povoações. Só a vila das Lajes, capitania e assento dos primeiros povoadores, conserva no seu traçado e na massa do seu casario os sinais de uma capitalidade e desaparecida. Era, além disso, a capital baleeira -e a baleia ainda é a grande fonte de riqueza da ilha. Mas até essa importância se deslocou para São Roque -ou melhor, para o Cais, que é como por lá se diz. Do Cais vou a São Miguel Arcanjo, onde pára por ora a estrada de circuito que vem desde as Lajes, num percurso superior a oitenta quilómetros, e a que se deve somar o ramal Lajes-Piedade, na ponta da ilha. Faltam uns dezassete quilómetros ao todo para que se possa falar de um périplo estradístico do Pico. E é precisamente esse troço, que só pode fazer-se a cavalo ou de barco, o que me fica em branco. Falho pois Santo Amaro, o coração do Pico, com os seus estaleiros de iates e as suas manufacturas típicas. Paciência... Não creio, aliás, que uma ilha tão densa de casticismo e de tradição nos reserve ainda mais surpresas e motivos de espanto do que os que a Piedade, as Lajes, São João, a Candelária ou não importa que terra picarota nos dão. A impressão dominante em quem visita esta gente é a de que aportou a um mundo abolido, onde uma civilização de meio milénio persevera e onde uma cultura com âncora em Cristo e na companha do lago de Tiberíade ostenta a maravilha da sua unidade e da sua íntima coerência. Não é o superficial pitoresco que apreciamos nas terras mais ou menos apartadas, e que se resolve numa ou duas peças do trajo e em mais não sei quê de ambiência. É o milagre da organização do trabalho e da estrutura social ao mesmo tempo inflexível e extraordinariamente plástica: o pescador não pesca apenas -também lavra. O lavrador não trabalha só nas terras: vai ao mar. Mas tão-pouco um lavrador do Pico é só isso e pescador. Como a ilha tem pouca terra lavradia, o trabalho do campo é compósito. Quem amanha, amanha indiferentemente a pequena seara, a horta, o figueiral, o pomar, a vinha, o mato. O picaroto corre da serra, aonde foi à lenha, ao alto mar, onde o espera o cardume da baleia; e larga a lançadeira do tear, a trança da palha de chapéu ou a agulha da rede pelo croque da lancha e o remo da canoa. Dou a volta ao Pico majestoso e espraiado, num dia inolvidável. Um amigo me leva pelo aro de estrada da ilha, outros me dão de comer à sombra da montanha, em São Mateus, na região das vinhas. Passo os <> zonas de lava cínzea onde mal brota a urze e medra algum recente e benéfico punhado de penisco. Contorno os pesqueiros sem conta, as praiazinhas inóspitas, as pontas cravadas num mar sanhudo e azul como nenhum. À esquerda ou à direita, na ida ou na volta, o Pico não me deixa. São três mil metros de lavas acasteladas que atalaiam as grandes solidões insulares onde abri os olhos ao mundo. Dá que pensar, esta altura severa a que sempre me lembro de ver (da Horta ou de Angra) alguma forma de neve ou nuvem agarrada. Aquele cabide de estratos me fez nefelibata ... Por isso a sombra do pai das nuvens ilhoas cai no meu coração de volta ao Cais, onde me espera uma Lua enorme, redonda e alta nas águas, e onde um vago cheirinho a baleia derretida atenua, enquanto passeio nas ruas com o meu <> e anfitrião, o que há de excessivo e de remontado nestas recordações. XII. Encontro de Angra 7 de Novembro de 1946 Recém-chegado à Terceira, passo uns dias na Praia, para ver os parentes, e logo volto a Angra, onde me instalo uma semana, em casa de família também. Venho achar tudo intacto: a ilha perpetuamente redonda e cinzenta no horizonte (verificação de bordo); os montes, carnudos e cínzeos, embrulhados num eterno pano de névoa; e os campos, quietos, agora da cor da palha que o Verão amadureceu, talhados aos quadradinhos nas achadas e nos vales. Mas a maior constância (muito nobre, leal e sempre constante chamou Garrett a Angra, num decreto armorial que Passos Manuel lhe encomendou) ... a estrita fidelidade guardada ao tempo e ao filho pródigo é a das pessoas, a dos hábitos, a das coisas e casas. Apesar da aviação, das tropas de atalaia à guerra, dos dez e vinte anos volvidos, de tudo o mais que corre e se transforma, destes anglo-saxões que enxameiam nas ruas da cidade e da Praia o corpo da ilha e a sua alma estão concordes comigo. Nada aqui se alterou. Tomado de uma espécie de medo de que tudo isto, tão querido e exacto, seja falso, levanto-me muito cedo e vou por aí verificar. Moro ao lado da Sé. Na casa sossegada, imensa para as quatro pessoas que somos, os passos têm uma intimidade profunda; mesmo com cada qual numa ponta da casa e a contas com os seus cuidados, são passos que aproximam. Um amigo médico que cá vem c1inicar chama a isto -o Convento! É aqui, sim, que posso representar o drama do filho pródigo com guarda-roupa e cenário: Eleázaro roto e faminto, intonso (corto o cabelo na barbearia ao lado, onde o cortava há vinte anos), sorrindo só quando se avistava o telhado e o fumo da chaminé. E, se não há aqui o pai com a sua barba e a fala grave, no suave reproche do regresso, há quem o tenha tão vivo e presente como eu mesmo -mais, até, pois mo evocam com as suas feições e ditos de menino, as suas predilecções e singularidades. Assim reaclimatado à atmosfera doméstica, resta-me ver se a outra me deixa respirar um pouco... Na rua, tudo idêntico. As calçadas têm a mesma nitidez desimpedida de outrora. Acordam devagar, ao bater da galocha matutina do cocheiro que ainda dá água à besta. Só agora não há trens de praça, e portanto quase não há muares nem cavalos de tiro. Sigo maquinalmente o traçado urbano todo: primeiro um bairro, depois outro, e outro. Duas ou três manhãs chegam para este reconhecimento piedoso. Primeiro, S. Pedro, que olha a oeste, que me acabou de criar e ajudou a crescer o coração. O Alto das Covas descobre toda a extensão residencial dos arrabaldes de Angra, e, para lá das duas ou três araucárias gigantescas que torreiam a saída da cidade, a negaça de uma ilha ao longe, que espreita por trás de outra ilha: é o cone do Pico, barrado pela faixa gris e lilás de S. Jorge. Umas vezes vê-se muito bem aquele chapéu de neves e de nuvens e o seu formidável anteparo; outras vezes é tudo duvidoso, fosco e falso. A ilha é a nuvem ou a nuvem a ilha? Veremos ... Mas já o bairro se deixou penetrar dos meus passos e me mostrou os antigos segredos bem guardados. Esquina por esquina, vi as sombras; horta por horta (ao Caminho Novo) reconheci o meloal.. . As casas solarengas têm as mesmas pessoas às portas. Lá está o relojoeiro, a padaria, o sapateiro, o Império e a flor de estufa. Só o amigo Maranhão, com os velhos potes de barro no escaparate do muro, não dá sinais de me suspeitar sequer. Começamos a ser estrangeiros onde nascemos, ou como?! Agora é o coração que se constrange. Vivi aqui e ali. Uma, duas, três casas, que abrigaram o adolescente e parecem olhar o homem maduro com olhos cegos, janelas ocas ... Tudo isto do sonho e da saudade é uma mentira arranjada, um embuste literário, ou o quê? Então não é verdade que aquela vidraça era minha?, aquele ferrolho o descanso da mão de minha mãe?, aquela beira e sobeira as telhas que choraram os aguaceiros que eu vi? E a nossa melancolia nasceu ou não destes céus tristes, baixos, burros? Porque nos não conhecem e festejam as janelas, as begónias dos <> e as pedras das calçadas? Mas passamos ao largo de tudo e tudo fica incólume. Aqui só há uma coisa que se comove -o coração que vai passando. As coisas chegam às vezes a um ponto de saturação no regresso e no amor que não há lágrimas vivas que sejam dignas de nós! Desaforo expressivo…Excesso confissional... Vou-me conter. Não digo mais nada desta jornada matinal das ruas de Angra e dos seus portões ultrapassados em peregrinação recôndita. Tudo isto é turismo baldado, roteiro inerte ... Para quê teimar em recolher coisas talvez mal passadas pela memória, e só aí?...A maior parte da matéria do mundo interior que levamos é dessa qualidade intransferível: tem essa só realidade unilateral. mesmo quando empenha dois lados, como por exemplo o amor. Aqui da Canada Nova vê-se o Fanai recortado e coberto das sombras do Monte. Não quero mais paisagens. Vou ao Mercado ver os melões do Trovão e os torresmos do Facelita. Entro no Jardim (e recaí...). Mas é a navegação da paisagem o que eu aqui procuro! Reconheço os lugares, as relações das pedras -mais nada! Ali é a furna das avencas, que até humedece a alma! Ali o quiosque da música, a magnólia desatada em carne branca e aroma, a roseira enxertada, o feto arbóreo, a palmeira emplumada e cabeluda. Já cá não está o Salvador com a sua barba branca de guardião paradisíaco; já se não ouvem lá em cima as tacadas do cróquete nas tabelas e o António dos Santos, quixotesco, esfregando as mãos: <> A alma do Jardim é esta ... O segredo da vida aqui está! Ali foi o caramanchãozinho das gueixas e o mais que se mudou; acolá sentavam-se o senhor Vilar, o senhor Picanço ... O senhor Vilar, que, pigarreando, proclamava de quarto em quarto de hora contra a inanidade ilhoa: -No continente, sim! Isso é que são terras! Evoco. Uma bengala de castão de prata risca a areia. O repuxo central tece ao vento as suas gerbes de Boémia. Há peixes vermelhos, peixes de prata, um peixe com um cancro ou uma flor na barbatana. Lodo de chumbo e arquinhos de ferro a toda a orla do lago. Uma menina de trança e laço encarnado pára e vê-se... Também eu vejo ao espelho do tempo que se foi o que me custa a envelhecer. Vamos lá ver o preto. O preto é de pedra e vomita água por um canudo: foi a primeira escultura profana que em minha vida vi! Subo mais, e oiço a velha levada dos moinhos: oiço cantar a água pura, valente, que desce das entranhas da ilha. A deusa tem no peito um calor qualquer que dá desta água... Isto não pode ser senão um sinal de Cíbele. Mas Cíbele quem é? Vagueio por toda a velha cidade, de lés a lés. Madruguei, e por isso pude apanhar este sol íntimo e leve, que parece um pinto de oiro que acaba de furar a casca de ovo. Vim até à Memória (o antigo Castelo dos Moinhos), que é o ponto mais alto da cidade. Memória! Que isto se chame como o meu sustento parece-me coincidência de mais! Daqui abranjo e tenho tudo o que um dia foi meu ou que talhei para isso no "pano para mangas>> do sonho. À vontadinha... Dos ilhéus das Cabras poderia ser o donatário; dos Fradinhos o foreiro, mas que é do Facho do Monte Brasil? Quem já faz sinais aos navios entrados? Quem iça o cesto?... A oeste ficam-nos as torres de São Mateus e a igrejinha velha, desbancada, que as vagas de Inverno ameaçavam cobrir e despejar. E atrás de mim São João de Deus, a Pateira, o Reguinho -as avançadas do mundo do pasto e da galhada. Quero perder-me neste Pisão, nesta Pereira, neste Desterro -nestas casinhas dos bairros populares e forâneos desta cidade histórica, que combina tão bem o seu orgulho torreado com o dom burguês da alegria. Terra de festanças, comida a rodos; como se diz por cá: cheia de carniça e da panzoada. O Corpo Santo é o solar dos pescadores e dos remadores da baía; mas em vão procuro às portas a cara do Castanheta ou do Chico Gorjita, meus camaradas da recruta de Infantaria 25. perfeitos exemplares desta boa e manhosa lábia de Angra. A Rua do Castelinho é silenciosa e expressiva. quase miserável. Na do Cardoso moram costureirinhas. pequenos empregados e operários. Tudo com janelas de vidraça miudinha e de batente verde. Tudo escaiolado: há cortinas de cassa em todos os postigos e uma begónia de folha lesmada e caule peludo que espreita o passante. Como tudo isto respira o ar de quem não vejo! Como estes telhados, estes balcões, estes girassóis dos quintais se parecem com a ausente! Agora, é a cavalo que. na volta de um passeio por Pico da Urze e São Carlos. faço o périplo de Angra. O cavalo é um grande cicerone: levanta-nos e dá-nos o que está para lá dos muros -a perspectiva de um arredor. Eu e o meu amigo Virgínio Ávila, cavaleiro tauromáquico e equitador, vamos de nosso vagar recolhendo a tarde adiantada, afagando as montadas à vista dos camiões, <>, discorrendo... Que descanso me dá este bicho de pescoço em sifão e de olhos de pedra-de-lua, que obedece a toques de perna e a contactos de rédea e cujos nervos mimosos acusam não só a presença das éguas mas a vizinhança das sombras! Tanto ele como eu esquecemo-nos do seu honesto mas duro ofício de factor do crescei e multiplicai-vos que também obriga os cavalos, preservados na Arca de Noé... Vamos por aqui fora distrair-nos um pouco, ver as velhas presenças e marcar as faltas inefáveis às pessoas e às coisas. Mas a volta vai no fim. Um tratador leva o cavalo enxuto e cabisbaixo. Angra cobre-se lentamente de luzes, da Carreirinha ao Relvão. É a hora dos cafés e do fresco no Pátio da Alfândega, a hora do cinema (mas eu tenho horror à tarracha do fauteuil!). Sentamo-nos junto dos degraus da Sé, eu e velhos amigos. E, como no grupo há um meteorologista, penso que somos aparelhos graduados para marcar o espessar dos negrumes da noite. Todos nós, porém, estamos ali desenfadados. Esta é a tertúlia do sossego, do desinteresse, do tempo perdido... Está-se aqui com a serenidade do jazigo e a bonomia do Sector I... Já o relógio da Sé avança no terceiro quarto post meridium. Que finas e belas badaladas, mais puras que as do Big-Ben! -Meus senhores!... -e levanto-me. Entro no Convento como se tocasse a Completas. E, realmente, nada me falta -senão o que sempre me faltou!...