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Mulheres

by Raul Brandão

Mulheres

Raul Brandão

Foz do Douro, Palheiros de Mira e Mulheres, aqui publicados, foram extraídos do livro Os Pescadores.

© 1998, Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8396-48-1

Lisboa, Abril de 1998

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

***

MULHERES

À memória

de meu avô

morto no mar

FOZ DO DOURO

A cantareira

Abril – 1920

A Foz é para mim a Corguinha, o Castelo e o Monte com o rio da Vila a atravessá-lo, e a Rua da Cerca até ao Farol. O que está para lá não existe... Só me interessa a vila de pescadores e marítimos que cresceu naturalmente como um ser, adaptando-se pouco e pouco à vida do mar largo. E ainda essa Foz se reduz cada vez mais na minha alma a um cantinho -a meia dúzia de casas e de tipos que conheci em pequeno, e que retenho na memória com raízes cada vez mais fundas na saudade, e mais vivas à medida que me entranho na morte. O mundo que não existe é o meu verdadeiro mundo.

Esta vila adormecida estava a cem léguas do Porto e da vida. Ali moravam alguns pescadores e marítimos, o António Luís, a Poveira, as senhoras Ferreiras, a D. Ana da Botica e as Capazorias. E, na Foz e na pensativa Leça, uma gente desaparecida com os navios de vela, os embarcadiços que iam ao Brasil em longas viagens de três meses. As casas, limpas como o convés do navio, espreitavam para o mar, umas por cima das outras. Todas tinham um grande óculo de engonços, para ver o iate ou a barca que partia, ou para procurar ansiosamente, lá no fundo, o navio que trazia a bordo o marido ou o filho ausente, e um mastro no quintal para lhes acenar pela derradeira vez. Meu avô materno partiu um dia no seu lugre; minha avó Margarida esperou-o desde os vinte anos até à morte, desde os cabelos loiros que lhe chegavam aos pés até aos cabelos brancos com que foi para o túmulo. Quando os rolos de espuma rebramiam no Cabedelo, apertavam-se os corações no peito, e à luz da candeia rezavam horas esquecidas «pelos que andavam sobre as águas do mar».

Conheço ainda, tão bem como ontem, todos os cantos da casa de minha avó: as escadas com um cabo de navio a servir de corrimão, a sala da frente com dois painéis escuros nas paredes, Jesus crucificado e S. João Baptista, e o estrado onde ela e a tia Iria, todo o dia sentadas, trabalhavam nas almofadas de bilros. A renda de bilros é uma indústria da beira-mar, destas mulheres loiras, de olhos azuis e rosto comprido -as da Foz, as de Leça e as de Vila do Conde -que passavam a vida à espera dos homens, enquanto as mãos ágeis iam tecendo ternura e espuma do mar... Nesta sala abriam-se duas portas, uma para os quartos interiores e outra para o corredor onde os rapazes dormiam num armário com beliches.

Ao lado da casa, que subia em socalcos pelo monte, subia também uma escada de pedra em patamares até lá acima. Do quintal, mais alto que os telhados, via-se o mundo. Era dali, saltando o muro, que eu partia para excursões maravilhosas, através do pinheiral do Laje...

Costumes muito simples, muito outros. Uma pescada custava seis vinténs, e minha avó gemia da carestia da vida, falando com saudade «do tempo do arroz de quinze». Tinham-se calado as marteladas nos estaleiros de Miragaia e do Ouro, onde os calafates, os ferreiros e os carpinteiros de machado erguiam outrora, entre clarões de forja e cheiro a pinho descascado, as carcaças dos palhabotes, das barcas e dos iates -mas eu ainda conheci alguns tipos curiosos de capitães aposentados, no americano que se inaugurara e que levava a gente ao Porto numa hora, alumiado à noite por uma luzinha de petróleo, e com reforço de mulas em Massarelos. Nesses carros andava sempre a mesma meia dúzia de pessoas para baixo e para cima, e o serviço era dirigido com ferocidade por um major de pêra pintada com esmero, que mantinha a disciplina numa gaiola do Ouro. Ora, entre as pessoas que faziam comigo a travessia, quando a Aninhas do Jeremias me levava pela mão ao colégio, nunca mais esquecerei o capitão Bernardes, um do Carvalho que chegou a almirante, o tio Bento, o irascível capitão Sena, de quem se contava c0'!l terror que fora apanhado no mar alto por uma trovoada -as faíscas como chuva -, levando os porões carregados de pólvora, o alegre capitão Serrabulho, casado com uma mulher fantasmática: homem prodigioso, com uma grande barriga sacudida de risadas: -Acaba-se aqui o mundo com uma ceia de peixe! -e que fez andar num corropio até à morte a Foz do Douro e a Baía, e entre todos eles, principalmente, o capitão Celestino, que, tendo começado a vida como pirata, a acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me não lembro sem inveja. Falava pouco. Sorria sempre numa satisfação interior, completa, perfeita, com uma cara de páscoas rosada e inocente, enquadrada pela barba de passa-piolho toda branca. A sua vida anterior fora misteriosa e feroz. De uma vez, com sacos de cal despejados no porão sufocara uma revolta de pretos, que ia buscar à costa de África para vender no Brasil. Outras coisas piores se diziam do capitão Celestino... Mas o que eu sei com exactidão a seu respeito é que para alporques de cravos não havia outro no mundo. Todo o dia um fio de água escorrendo por condutos invisíveis, de que só ele sabia o segredo, caía pingue-que-pingue nos alegretes caiados de branco; todo o dia o velho corsário, com mãos delicadas de mulher, tratava embevecido as flores cultivadas como filhas. E acabou assim a vida mondando e podando, sem uma dúvida na consciência tranquila...

Maio – 1921

Sonolência doirada com dois ou três acontecimentos: as catraias que chegam da pesca, um grande paquete que entra majestosamente a barra, os batéis que despejam na praia os montões de sardinha. Vêm os dias de névoa, quando o sino da igreja tange chamando os homens perdidos na cerração, o tempo do sável no rio, a pesca da lampreia com um fogaréu no bico do cabedelo e, em Dezembro, a safra da sardinha. O senhor piloto-mor passeia no cais com as mãos atrás das costas, ralhando aos velhos da Pensão, e três marítimos conversam acolá naquele banco de pedra, ao pé da torre dos pilotos, onde já meu avô se sentava.

Um dia lança-se a nossa catraia ao mar. Os calafates, com estopa embreada, tomam-lhe as juntas de pinheiro por pintar. Alguns homens dão-lhe uma mão de piche e um desenha-lhe nas tábuas do costado: Senhora dos Navegantes. Chega da Póvoa o Manuel Serrão, homem de poucas falas e calças de lona branca, e talha-lhe a vela estendida na areia. Corta-se o mastro no pinheiral do Laje. O senhor abade -toca o sino -asperge-a de água benta e a companha, com os barretes na mão e fatos de ver a Deus, espera o último latim para a lançar sobre roletes ensebados pela lingueta abaixo. São quinze homens como torres com o arrais e o moço. É o Jeremias, alto, de barbas de sargaço, o Bilé e o Mandum, o Joaquim Sota, o meu compadre Matias, o José das Facadas, o Mouco e o Bexiga, queimados pelo ar do largo, aquele velho de cachimbo nos dentes, que de tanto remar ficou curvado para sempre, o Manuel Arrais, grisalho e calado, e o moço, o Nel, de olhos inocentes de bicho, que vai pela primeira vez ao mar.

-Agora!

As mulheres da fonte deixam os cântaros e deitam a correr, e a companha mete o ombro ao costado do barco e -oupa! -, retesando os músculos, empurra a Senhora dos Navegantes, que desliza nas pedras e entra no rio. Dois homens saltam dentro e levam-na para as amarras.

Estes factos insignificantes impressionaram-me para sempre a retina e a alma. Muito tempo perdi-os no tropel da vida, impõem-se-me hoje com um relevo extraordinário. Vejo outra vez tudo; as fisionomias, as coisas, a cor e a luz. Vejo os barcos encalhados com as letras mal feitas, escritas a piche no costado, Vai com Deus, Senhora da Ajuda, Deus te Guie, as redes nos varais e os pescadores de agulha na mão a remendá-las, as catraias e os batéis nas linguetas. Vejo as mulheres sentadas nos degraus, a Maria da Viela, as Papeiras e as Bexigas. Manhã de não sei quando, manhã que não existe e vou desenterrá-la tal qual, azul e névoa, névoa e mar... Alarido nos tanques: chegam os batéis da sardinha. Em sobreiras, as mulheres arrastam os quartos do sável, metidas na água até à cinta... Quem quer ganhar um quinhão?... Além é o cabedelo e o mar desfeito em pó azul, e a Outra Banda inteiramente verde. Conheço aquele grande pinheiro manso sobre a casa gótica desde que me conheço, os areais e o largo rio, onde dois ou três barcos da Afurada pescam a tainha. O homem atira a rede e a mulher, num gesto rítmico, bate com o bicheiro na água para assustar os peixes, que se vão lançar na malha.

São nadas que farão sorrir os outros. São efectivamente nadas... E no entanto reconheço que essa foi a melhor parte da minha existência, minuto único de saudade em que a luz se suspende e o universo se entranha para sempre na alma. É a própria vida com um encanto que não torna, é o abrir dos olhos para uma manhã deliciosa, quando se salta pela primeira vez do ninho e se sente ainda o calor do ninho. Tudo é novo e esplêndido. Embriaga o ar que se respira e o primeiro sonho que sonhamos. É novo e cheio de surpresas o Verão, quando os grandes barcos rabelos, a vela latina cheia de vento e o homem em ceroulas no alto da caranguejola, carregados de achas que cheiram a bravio, descem devagar as águas; é novo o Inverno quando a grande toalha líquida das cheias brilha e o sol reluz com mais gosto, ou quando aquela voz rude engrossa, começa a pregar e a lufada não cessa de bater nas vidraças. -Está alguém fora da barra? -E as vigas do travejamento rangem como as quilhas dos navios, e a noite trágica, em que suponho ouvir gritos, nunca mais acaba.

A voz cresce... Ouço-a agora perto, ouço-a melhor. O que foi eco quase extinto aumenta num clamor cada vez mais alto, chamando de novo por mim...

Junho -1921

É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida extraordinária; um ser esplêndido, o rio, a que me entrego dentro de quatro tábuas; o cabedelo cheio de mistério, onde ponho os pés com terror; o largo, o profundo mar, que me levou alguns dos meus, constante preocupação desta gente e que de quando em quando os mata à minha vista. As figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim, estendendo-me outra vez as mãos... E é sonhando também que me recordo de certas coisas sem importância: do jeito que era preciso dar às portas manhosas, para as poder abrir, de uma expressão de que me separam léguas de esquecimento, de pequenos nadas que duram um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura. Acontece que às vezes acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra...

Os meus mortos estão cada vez mais vivos.

É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos são guiados por mãos desaparecidas e a minha convivência é com fantasmas. Este cheiro a alcatrão vou levá-lo nas narinas para a cova; esta paisagem -mar, rio e céu -entranhou-se-me na alma, não como paisagem, mas como sentimento. Ressuscito as horas que perdi debruçado no velho muro e sinto o grão da pedra onde punha as mãos quando contemplava a engenhoca do meu vizinho António Luís, que com escorros de água, dois arames e um bocado de cortiça, fazia manobrar uma azenha, O moleiro e o competente burro com os sacos de farinha, de uma maneira mais absorvente que todas as mágicas a que assisti mais tarde nos teatros de Londres. Ressuscito as primeiras impressões.

A Foz está viva! Tenho-a diante de mim, a Foz de outrora, a Foz que já não existe, a Foz dos mortos, com o movimento, os tipos e a paisagem. Lá em cima, o Monte tinge-se de sol, cá em baixo, o rio tinge-se de azul. A Cantareira, num cantinho, adormece - a grande fonte de granito doirado, a casa do António Luís, a nossa velha casa com os degraus de pedra, os varais das redes até à Corguinha lajeada de grossos burgos -e ao largo o farol. O mar embala o cabedelo. Uma luz como não há outra e que estremece com o movimento e os reflexos da água, um ar como não há outro e que ainda hoje respiro como a própria vida! Silêncio... A Foz vai doirando lentamente, ano atrás de ano, crestada pelo ar da barra, camada de sol, camada de salitre...

O que revivo mais profundamente? Revivo a expressão de uns olhos húmidos que me seguiam sempre, e compreendo que toda esta cor e este oiro que desapareceram e teimam em reluzir correspondem a um momento único da vida em que se descobre o mundo que vai morrer e que se fixa por fim em saudade e ternura. É o que tenho mais pena de deixar quando sinto que me levam não sei para onde e cada vez mais longe. Agita-se então em sonhos o mundo que não existe, e os mortos adquirem uma expressão que é a da minha própria alma. Se isto é ternura, a ternura é o que há de melhor no mundo; se é saudade, a morte é o que há de melhor na vida.

A própria paisagem só depois que a perdi é que a entendi bem, talvez porque a amo mais. Diante de mim têm desfilado as maiores e as mais belas, mas há uma humilde que faz parte integrante do meu ser.

A vida passa e um momento da vida não passa mais transforma-se. E a aproximação da morte reveste-o de outra cor. Por isso agora vejo tudo cada vez mais nítido... Vejo os buracos nos muros e os reflexos ao lume de água, que duram um momento e se renovam sempre. É o sol que lhes dá vida e os ilumina. São instantâneos. Movem-se, somem-se e dão lugar a outros. São agitados e doirados, Uma aparência, um jogo de luz, como as existências efémeras que passam e o sonho que não deixa vestígios e só um instante se desenha à superfície da vida...

Tudo dura o que duram os reflexos agitados. Só este rio imenso segue o seu curso inalterável e incessante para aquele mar profundo.

Ida ao mar

5 de Setembro

Se fecho os olhos, sinto logo esta mão áspera e enorme que me leva na noite húmida e cerrada. Não vejo o mar, mas envolve-me e penetra-me o hálito salgado e ouço-lhe ao longe o clamor. No primeiro plano ecoa o desabar ininterrupto, depois, lá ao fundo distingo outra voz mais rouca e para além um lamento que não cessa, donde irrompe de quando em quando um grito. De noite apaga-se o mundo e só esta voz enche o mundo... São três horas. O moço anda de porta em porta batendo com um seixo. E vai chamando na cerração Ó sê Manuel, cá pra baixo prò mar! -E, mais afastado, toma outra vez a sair do escuro o apelo prolongado, como se fosse o mar que os chamasse um a um: -Ó sê José... cá pra baixo prò mar! -O arrais leva-me pela mão até à lingueta viscosa e salto dentro da catraia. Rumor. Vultos. Alguns homens ajeitam-se nos bancos, outros fincam os remos nas pedras para afastarem o barco.

Mais perto, sempre mais perto, o bafo salgado... Uma lufada, uma onda -um ah monstruoso -, o clamor negro e espesso -e saímos a barra. Chego-me para o arrais, que não larga da mão a cana do leme, imóvel e atento. Mete-me medo o negrume que não tem limites de escuridão e de vida e de que me separa a espessura de uma tábua. A maré vaza. O arrais manda:

-Iça a vela!

Os homens saltam nos bancos e o pano bate no escuro.

-Ó iça! ó iça!...

A escota range no moitão e a grande vela triangular sobe, debate-se, enche-se de vento. A catraia mete a borda. Uma hesitação na marcha e logo nos entranhamos na agitação infinita, na noite infinita. À luz da lanterna remexem sombras indecisas. São os homens que se deitam nos bancos ou no fundo do cavername entre os baldes, os batedores e o grande cabo do mar de oitenta braças, que serve para largar o ancorote quando a barra se fecha à entrada. Só o arrais continua agarrado ao leme, de olhos fixos na agulha de marear. Chego-me mais para ele... Água negra, respiração negra. Um frémito de vida, uma humidade que se cola à boca e às mãos e a escuridão, mas a escuridão como um ser imenso que não distingo e de que sinto o contacto -um fôlego cego e vivo que remexe lá ao longe, cheio de mistério, de u-u-u desordenado e que desaba em montanhas e salpicos amargos. Vem até mim. Rodeia-me. Quase lhe vejo as mãos enormes. Escuto o negrume cheio de rumores, de vozes, de sombras movediças, que se debruçam para nós como um che... che... mais alto, mais baixo, que não cessa. Um grito parece vir de muito longe, da vida monstruosa e profunda em que me entranho. Mas já me não mete medo o mar. O lampião ilumina a cara do arrais, rude e grave, serena. E a meu lado a água escorrega no costado, chape-que-chape, sempre com o mesmo ruído monótono que adormece e embala.

É da terra que vem a luz. Um livor indeciso e depois um chuveiro.

-A chuva sangra o vento -diz o sota baixinho.

Para acolá, a nódoa anda à tona da água como um olhar sem expressão: esparralha-se no céu. Mas para o largo a noite imensa que nos traga redobra de espessura: o negrume aumenta. Só no nascente a claridade se dilui em neblinas, em farrapos e névoas esparsas que flutuam. Sobem, deixam-se cair em véus moles sobre as águas. Escondem o mar. Durante um momento, um fio azul estremece à superfície, e logo a cortina vaporosa se mistura à exalação das águas e cerra-se de todo. Esperem... Uma vaga, uma ondulação verde, outra ainda... Mais névoa... luz... um grande farrapo desgrenhado... O estertor não cessa, mas sente-se que a névoa se adelgaça pouco e pouco, enquanto o negrume se concentra e recua mais para longe e o ar adquire uma transparência azulada. Tenho diante de mim só matéria imponderável, cheia de frescura e de vida, donde vai sair a nova criação. O mar não se vê ainda, mas a voz vem das profundas cada vez mais alta, e adivinham-se na espessura da neblina, entre velas despedaçadas que se debatem nos ares, colunas de fantasmas que fogem na cerração dispersa. Só um, maior, teima, quer fixar-se, debate-se com a luz e desaparece enfim entre clamores no horizonte ilimitado. Uma paragem sufocada -luz a jorros -e o mar em ondulações verdes, cada vez mais transparentes e com reflexos metálicos.

Vejo agora o barco adornado com o vento, a vela metida nos rizes e os homens estendidos nos bancos. A água diante de mim ondula como um véu diáfano, só frescura e transparência, só poeira verde que desmaia toda arrepiada... Fios delicados de algas bóiam ao sabor da onda e ao meu lado corre um veio mais escuro e profundo, quase negro, onde um bando de toninhas persegue, logo de manhã, a manta da sardinha. Os grandes dorsos azulados irrompem das águas, afundam-se e tornam a aparecer e a reluzir ao longe, todos molhados, num resto de névoa a dissolver-se... Não há cor como este verde, que é hálito puro ao mesmo tempo; nem vida como esta vida, que surge intacta diante dos meus olhos deslumbrados. Reluz a esteira do sol e o primeiro voo das gaivotas corta o céu.

Um homem da companha, de pé à proa, procura a bóia das redes com a mão sobre os olhos. O sota, debruçado na amurada, deita a sonda.

-Quarenta braças, é o mar do peixe.

-As bóias!... -exclama outro.

-Arreia! -é a voz do arrais.

Solta-se a escota e a verga cai sobre os bancos. Os homens remam. Estamos à vista da caça, que no Verão se deixa ficar no mar de um dia para o outro. Prepara-se a polé e um grupo à proa tira as bóias e depois os cadoiros.

-A ver a fortuna que Deus nos dá.

-Ala! ala!

As redes alastram o fundo e dois homens e o moço, de batedor em punho, deitam a água fora. -Olhem esses cabos! -Atirem para cá o bicheiro. -Enrodilham-se no escuro dos fios coisas viscosas, debatem-se as pescadas e os ruivos. A todo o momento as atitudes, os gestos e os grupos se modificam. Cresce o alarido: -Agora! agora! -Só o velho de cachimbo nos dentes golpeia, inalterável, os peixes. -Ala! ala! -Eh rapazes! oupa! -Pela borda fora, de navalha em punho, a companha marca os peixes no cachaço e no lombo e atira-os ainda vivos para a caverna. Cada pescador tem a sua marca: salé ao atravessar do rabo; salé e risco; pé de galinha; galha, risco cortado na patola do rabo; duas galhas, dois riscos no mesmo sítio; um lombo, o mesmo risco no rabo, da banda do lombo; dois lombos, dois riscos; do lado, um risco e dois riscos; um cachaço, um risco no cachaço; dois cachaços, dois riscos; uma cruz no cachaço; um papo, um risco no papo; dois papos, dois riscos; cruz ao papo e meio rabo. As cortiças das redes têm também os seus sinais, para o dono as distinguir: signo salimão; grelhas; grelhas e cruz; grelhas e um risco; grelhas e dois riscos; lampião e outros.

Saltam no fundo as pescadas de lombo preto, os bonitos, as raias, os capatões e uma toninha reluzente, que os homens matam com os bicheiros. São ruivos de dorso vermelho e doirado e grande cabeçorra cartilaginosa, um peixe-rei e cações acinzentados. E algas, algas emaranhadas como cabelos verdes, nos peixes-sapos, na tremelga cor de vinho e na espalmada raia, que abre a boca sufocada; nos peixes-lixas cheios de pique e nas carapaças de caranguejos desajeitados, que correm com os ferrões abertos no ar. E os homens, encharcados e de perna nua, continuam a meter as redes a escorrer para dentro do barco. O fundo da catraia escorrega cheio de água e daquela vida que se debate, misturada e calcada, cheirando a frescum. É uma mescla de dorsos, de escamas, de peles com reflexos molhados, de tons escorregadios e metálicos das savelhas, de ventres esbranquiçados dos linguados que se voltam e mostram uma pele quase humana, de viscosidades e de prata movediça. E as redes continuam a subir, e o peixe preso pelas guelras a debater-se enquanto os homens de navalha em punho o golpeiam. Alguns, de braços arregaçados e mãos viscosas, lavam-se no mar. Outros juntam-se ao moço com batedores, deitando a água fora, e à proa separam os solhões, os rodovalhos e o peixe chato do fundo, que vem envolvido em areia.

-Está a caça dentro.

-Quanto?

-Pra aí dois centos.

É a pescada; o outro peixe não se conta.

Vamos voltar à bolina para aproveitar o vento. Outra vez a vela e o ruído do mar manso que me embala.

Atrás de nós fica uma larga estrada de prata. Na poalha de oiro que cai do céu descubro um risco indeciso: é a terra. Primeiro, nuvem distante. Um momento e acentuam-se os traços deslavados da areia. Mais cor agora…É a terra, a princípio desvanecida e roxa e depois verde nos eternos pinheirais. Um areal doirado, um ponto branco que estremece -o Senhor da Pedra. O vendo enche a vela e, pouco a pouco, todo o panorama transparente sai do mar a escorrer tinta. No fundo ergue-se a costa com manchas escuras dos pinheiros, que não se distinguem ainda. Faísca envolta em névoa a brancura das casas e toda a larga paisagem renasce diante de mim com cores fracas de aguarela. A terra voluptuosa -cabedelo de oiro, montes pálidos, que saem da água como seios -entreabre-se para nos acolher. Eis os gigantescos braços de Leixões, tão leves que a luz os trespassa, a penedia afiada -de Carreiros, onde o mar escachoa, e o pontilhão coberto de espuma. Ao sul Lavadores, o areal de Espinho, bruma afastada e cor de cinza. Cai a tarde, vamos entrar a barra. Quase toco de um lado no velho castelo roído de salitre e do outro no bico do cabedelo, onde as gaivotas apanham o último sol, com os pés metidos na água. Vem a vaga e alastra-se, vai a vaga e a espuma referve na areia molhada, de um oca mais escuro.

As mulheres correm pelo cais:

-Quantas dúzias? quantas dúzias?

Mas os homens não respondem. De pé, nos bancos, com os barretes na mão, entoam o Bendito. Escurece. É o momento em que a luz desmaia, em que a cor é tansparência e a natureza se esvai entontecida. As tintas são pó de tinta, os montes são fantasmas e o rio um grande lago azul. Já sei: o mundo é azul... Fios de oiro perdidos na Outra Banda estremecem e vão desaparecer. Nas lanchas arribadas alaridos de poveiros. O grande pano sem vento cai sobre os bancos e o último impulso que nos traz, no jorro da enchente, que entra pela barra cheio de espumas. O rio não tem consciência -voltou-se o céu e nós vogamos numa poeira roxa que a todo o momento se transforma. Agora é lilás o mundo, é violeta, é um sonho que se some pouco e pouco e que a noite vai tragar.

O peixe é atirado aos montões para as pedras, e as mulheres da lingueta, os homens de dentro do barco, cada um segura pela ponta as suas redes, lavando-as no rio.

Olho... A Outra Banda, violeta, desapareceu na noite. O rio azul, depois diáfano e cor de cinza, desfez-se em violeta, um resto de poalha vai sumir-se na bruma, onde só a jóia do farolim cintila. Os tons violetas afogaram tudo e a paisagem desfalece. O mundo não existe -o mundo é a luz.

PALHEIROS DE MIRA

A pesca

Julho de 1922

Em todo o vasto areal que se estende de Espinho ao cabo Mondego, a pesca é de arrasto e a grande abundância de sardinha, grande, média e pequena ou, por outra, vareirinha, como lhe chamam no interior das terras. O areal e o mar ensinam e exigem a pesca colectiva -um grande barco, uma grande rede e uma forte companha. A saída é perigosa e, de um momento para o outro, a onda cresce e o barco não pode abicar. Daí as enormes embarcações, as redes, as cordas e os bois para as puxar. Para o sul, até Pedrogos, em Lavos, em Buarcos, a pesca é também costeira e de arrasto. Depois, o pescador muda de barco e de processos.

Durante a safra, que dura oito meses, de Abril ao Natal, leva-se o peixe em cargas pelas estradas da região, a dorso de cavalgadura -a sardinha que sabe a lombo de burro dizem que é a melhor -ou em pequenos carros de bois que o carreiro guia pela fala, sem se servir de aguilhada: -Vamos lá... Então... Eixe... E o boizinho paciente lá retoma o trilho a voz conhecida e amiga que o guia e encaminha. Sai para a Bairrada, para a Anadia, para os hotéis do Buçaco e para as terras longínquas. A todo o momento se encontra um macho com dois ceirões em perfeito equilíbrio e ao lado o homem tisnado e seco, ou a mulher de chapéu redondo e xaile, correndo pelo areal e pela estrada, com a saia ensacada até ao joelho.

15 de Julho

De Cantanhede a Mira são quatro horas de caminho. Pinheiros, sempre pinheiros, e um cantar desabalado de cigarras como nunca ouvi na minha vida. Depois, num carro de bois, a travessia do areal, sob a reverberação do sol, e por fim Mira, terra de pescadores, palheiros de madeira estacados na ondulação da duna, que sobe como uma vaga até ao alto. De um lado uma poça, do outro, lá no fundo, o mar levantando a areia com o bater compassado e eterno. Atravesso o charco por um pontilhão. Subo uma rua. Escurece. Palheiros, tábuas podres, estábulos de cavalgaduras e armazéns de salga. Mulheres, crianças, porcos. Subo sempre entre barracas velhas, algumas com os pés metidos na água; outras, lá em cima, derreadas e cambadas, defendendo-se da areia que as subverte com paliçadas de pinheiro. Sombras, confusão de ruelas fedorentas e escuras, falatório nas tabernas. Restos de peixe por toda a parte e de ceirões velhos que apodrecem, entre a vida que pulula e ao ar do mar que vem do largo e tudo varre e purifica. Com a noite a confusão redobra: a terra parece maior e mais escura. Continuo a subir e lá no alto descubro enfim o mar, mais palheiros esparsos no esplêndido areal e alguns barcos estranhos e arcaicos, que erguem até ao céu as proas e as popas desmedidas.

Tudo isto foi um areal e um charco. O charco secou, reduzido à Barrinha; o areal, que vem do norte até onde a vista alcança, estaca no traço lilás do cabo Mondego. Só três cores dominam na amplidão do mar e na extensão da areia -o azul, o verde e o oca. É muito grande e muito simples.

Manhã. Primeira ida ao mar das quatro e quarenta e cinco minutos. Um serouqueiro do sul que envolveu de bruma a noite acaba de desaparecer. Mas da névoa ficou névoa misturando-se ao azul e à frescura que dilata os pulmões e inebria. Um rapaz, no alto da duna, sopra o búzio com as bochechas cheias, chamando a companha para a pesca. O barco está pronto. Uma esteira de varas, duas juntas de bois para o puxar, homens nus metidos na água e agarrados às cordas, e a onda que os salpica e os alaga. Entra para dentro a companha. Refervem as ondas que o sacodem lá no alto... Os fortes rapagões agarram-se aos quatro remos, a proa alvora... É este o momento angustioso, enquanto se não safam da cova do mar.

Eh, arrais, carago, a maré é agora! -diz o João Custódio, revezeiro.

O arrais segura a corda, que é o único leme deste barco. Tudo consiste em saber «ferrar a volta na ré» para o livrar do vagalhão -tudo consiste em destreza e pulso, senão o barco sacudido enche-se de água e vira. Dois homens, os caladores, ajudam-no a soltar o extenso cabo enrolado à popa, que nunca mais larga da mão. Num instante se livra da onda que quebra, mas a manobra é complicada. O barco tem quatro remos nos quatro bancos: o do castelo da proa, o do remo da proa, o do remo da ré e o do castelo da ré. A cada um destes pesadíssimos remos se agarram quatro homens de pé nas estorveitas, que ficam nos intervalos dos bancos, seis sentados e ainda outros, os camboeiros, puxando os cambões -todos ao mesmo tempo, todos com o mesmo ritmo. O reveze iro, que ordena a saída para o mar, manda também em cada remo. Na parte mais delgada remam os caneiros, que trilham o remo e fazem a voga, ajudados pelos segundos.

O barco vai largando o grosso cabo com nós, que se chamam balizas, até ao momento em que o arrais sente o peixe mais à terra, a aguagem, pela mudança da cor, ou distingue o alcatraz que nas águas lúzias cai a pique sobre a manta da sardinha. Outras vezes é a fervença ou gorgolhido que lhe indica onde está o peixe -pequenas bolhas de ar que ascendem à superfície –, ou mesmo a ardentia com que os grandes bancos de sardinha iluminam o mar. Então o arrais, de pé, dá o sinal dizendo: -Em nome do Santíssimo Sacramento, saco ao mar! -Toda a companha se descobre. Larga-se a cuada de malha mais miúda, a manga, peça mais grossa, e por fim o cabo, que se desenrola até à terra.

Voltam e o momento dramático repete-se. O barco vem no alto da ressaca. -Larga! larga! -Os homens remam cantando. Inunda-os um jorro mais impetuoso. Agora é o arrais que na pancada do mar traz a corda na mão guiando o barco. Um vagalhão de espuma vai despedaçá-lo e arrasta-o num último impulso pelo areal acima. Dois rapazes, metidos na água, enfiam logo nas argolas do costado duas ganchorras de ferro. Salpicos. Alarido. A companha salta em terra, jungem-se os bois às cordas, lança-se o estrado de varais pela areia; sobre os varais, roletes; e, puxado pelos bois e pelos homens, o barco enorme sobe, de proa voltada para o mar e pronto para nova arremetida.

O espraiado imenso... A areia de oiro sem fim, desmaiada pouco e pouco e envolta no fundo em pó das ondas -o mar infinito, verde-escuro, verde-claro, rolos sobre rolos, e por fim, num côncavo junto ao cabo, desfazendo-se em espuma e brancura. Ao norte, névoa leitosa e viva, que sobe ao ar como um grande clarão branco. Água sem limites -céu sem limites -areia sem limites e a voz imensa, o lamento eterno, dia e noite, mais baixo, mais alto, mas que nunca cessa de pregar...

Tenho diante de mim o fulvo areal, a agitação do mar até onde a vista alcança e a agitação humana num quadro mais restrito. São quatro companhas e cada companha tem noventa e seis partes, entre homens que vão ao mar, homens da terra e mulherio para os cestos. Junta-se mais gente que acode à venda, regatões e almocreves, mulheres de saia arregaçada, chapéu e xaile, com as xalavaras e os baldes à cabeça. E este movimento repete-se e redobra, à medida que os barcos entram e saem, porque fazem três e quatro lanços cada dia. Aumenta a labuta com o lavar das redes no mar, com a sua condução pelo areal, suspensas em bambinelas, às costas de cinquenta raparigas, em cordão e aos pares, com um carro de bois à frente que traz o saco encharcado. E sempre, num vaivém, sobem e descem a rampa de areia as juntas de bois, seis por corda, que vão puxando os intermináveis cabos durante quatro longas horas, até o saco chegar a terra. Gritos. Homens passam a correr, conduzindo cordas atravessadas num espeque.

São três horas da tarde. No mar, grandes chapadas de prata na esteira do sol, que no areal reverbera e ofusca. Julho. Nortada rija enchendo a boca de areia e de salpicos de espuma amarga. Doirado e verde. O quadro é tão largo que se perdem as minúcias: concentro-me neste pedaço de areia de uns poucos de quilómetros afogado em luz e agitado de vida, no azul do céu e na onda que enconcha e estoira, repercutindo-se em som e espalhando-se em pó esverdeado. Reverberação de sol, poeira de água luminosa que vibra e estremece. Alarido de mulheres que saem aos cardumes dos palheiros. Içam-se os pendões, chamando mais gente para o peixe. Grupos, cordões humanos, gente das aldeias que acode à catraia. Um barco sai no alto da onda, outro regressa. É agora! é agora! E os bois ajoelham sob o peso. Outros, mais longe, vagarosamente vão puxando sempre a grande rede para a terra, agarrados às balizas pelas cordas. Sobem ao alto do areal, tornam ao fundo, descem ao mar, entram no mar... Um rapaz agita o barrete, e outro, ao longe, responde ao sinal regulando o andamento dos bois: -Arriba! Arriba! No alto, o azul. no fundo, o mar que desmaia e se dissolve em oiro no horizonte. A brasa do sol ao mergulhar vai fazer explosão. Não há uma nuvem no céu; temos hoje o raio verde com certeza. No areal, os eternos rolos brancos espraiam-se e sucedem-se da Costa Nova ao cabo Mondego. Já se vêem ao lume de água as primeiras bóias da rede, os arinques, e a faina não cessa pela areia fora. Grupos enovelam-se. Muito longe, os bois puxam outras redes. Uma junta foge e aumenta a confusão. Lá em cima, no dorso do monte doirado, os carpinteiros de machado remendam dois esqueletos de barcaças... Vêem-se agora as pandas: juntam-se os cabos e a boca da rede cada vez se aperta mais. A vida atinge o auge. -Arriba! Arriba! -Todos deitam as mãos às cordas. Corre o mulherio. Rapazes quase nus metem-se à espuma e agarram a rede. Os bois, espicaçados, parecem compreender que o momento é decisivo: -Eixe! Eixe! -E lá em cima retesam os músculos no último esforço. Depois largam o cabo, correm ao fundo, entram na água, que esguicha, guiados pelas cachopas de aguilhada no ar e salpicados de espuma. Aí vêm os outros: desligam-nos e tornam logo arriba. Mais depressa! Mais depressa sempre! A onda enconcha, com um friso refervendo-lhe na crista a desabar -e bois, cachopas, homens quase nus, agarram o saco, inundados de espuma que os envolve o último esforço... Dois rapazes saltam na água e apertam a boca do saco com uma corda para o peixe não fugir. -Eh! Eh! -Mais gritos. O mar, cada vez mais impetuoso, rebenta sobre o areal, rolo atrás de rolo, e os homens e os bois saem a correr do vagalhão de espuma... Foi diante de um quadro assim que Ferdinand Denis exclamou, assombrado:

-Que estranho país é este onde os bois vão lavrar o próprio oceano?!...

As mulheres e os almocreves excitados deitam mão à rede e o saco sai da água, a rasto pela areia, entre laivos verdes que escorrem...

Já o Sol desapareceu e não vi o raio verde. Só reparei nas atitudes para um escultor fixar, nos movimentos admiráveis de presteza e vida, nas grandes linhas gerais. A cuada está em seco, escorrendo babas de um verde-náufrago. Iça-se um pendão num mastro -cortiça, farrapo ou cesto, e as mulheres acodem lá de cima à chamada, de gigo à cabeça. Um último berro ecoa: -É o saco que vem cheio... -Viva! Viva! -Uma mulher desdentada grita ao pé de mim: -Viva o homem e morra o peixe! -E dois velhotes desatam a dançar.

O movimento mais apaixonado da pesca é sempre o alar das redes, que em Mira se faz na areia -largo quadro para pintores que dessem em pochade o movimento, a cor e a luz.

O grande saco negro estremece de vida, cheio de estalidos. Rodeiam-no as mulheres com os cabazes no chão. Um homem de navalha em punho abre-o a todo o comprimento e aquela prata remexe e ferve: carapau e lavadinha, mais escura, debatem-se misturados, com reflexos de oiro e fogo nas escamas. Saltam-lhe em cima homens de tanga e tiram-no para fora com o redenho. Separam o mexo alho e coisas gelatinosas (medusas) de um azul-da-prússia carregado e de um verde suspeito e transparente. Aparta-se o peixe da renda, o linguado, a tainha e a raveta; o negrão, parecido com a tainha, mas que se distingue por uma pinta doirada na cabeça e porque dá só um salto fora de água, quando a tainha chega a sete; a faneca, de um verde-transparente; a esplêndida corvina, de um azul-metálico na cabeça e com reflexos de oiro pelo lombo; a listrada sarda; a azevia, mais chata e mais larga que o linguado; a lacraia, pequeno peixe, com dois espinhos acerados, um na guelra, outro no dorso, que enervam e adormecem a mão e o braço que se picam; os chocos e as lulas, fios verdes emaranhados saindo de dentro de um saco e com dois olhos embaciados e fixos de fantasmas. E as mulheres despejam nos gigos os montões de sardinha ou de chicharro grande, que se chama charréu e é de um tom baço de prata antiga. O rapazio, ágil, por entre as filas de mulheres, mete a mão e rouba dois carapaus, uma chavelha, seis sardinhas -o que pode.

Faz-se a praça. Os gigos estão em linha -Trinta mil réis! Quarenta mil réis! -Outro barco abica ao longe. Vai repetir-se o quadro. Mulheres lavam os gigos. Grande algazarra lá no fundo. Foi um saco que rebentou ao chegar à terra. O peixe foge e todos acodem à catraia. Homens, mulheres, velhos e cachopos saltam ao mar e empurram-se, caem na água, gritam, barafustam. O peixe é de quem mais apanha. Com as xalavaras ou à unha, metem os braços na água, num coro de gritos e risos, quando a onda vem, desaba e os inunda entre a apupada, deixando-os encharcados e felizes...

Anoitece. Volto-me e quase grito de aflição. A Lua cheia e enorme, toda branca, surge sobre o areal avermelhado, e já no mar começa a desenrolar-se o grande mistério da noite...

Lá no fundo ficou uma poça de água represada, onde a luz se demora. Para além -e sempre! sempre! -a grande toalha de espuma, espraiando-se e sumindo-se na areia molhada mas escura, onde os fios de luar vão reluzindo. Névoa -quase nada. O grande areal indeciso desmaia. Ao sul o cabo escurece... Amplidão embaciada, frescura e mar, onde apetece a gente mergulhar, entranhar-se, morrer e dissolver-se...

O barco

Vai cair a tarde. O azul desmaia sobre o areal doirado. Mais pó esbranquiçado lá ao fundo, para o norte -névoa ou luz que nasce, não sei bem; para o sul, o morro transparente que entra pelo mar... Três grandes barcos decorativos estão num grupo, de proa à água, que a toda a hora esmorece. Somem-se as casas denegridas, a agitação e os homens; só o barco se me afigura cada vez maior, sobre a vaga imensa do areal, sob o resplendor imaculado do Sol, enchendo o céu e a terra com as suas grandes linhas decorativas. À primeira vista parece uma coisa teatral, prestes a desconjuntar-se, só cenário e mais nada, com quatro patas desajeitadas de bicho, sem o alicerce da quilha a sustentá-lo, impróprio para o mar e para a terra -obra de lavradores que resolveram um dia ir à sardinha. Os quatro remos pesadíssimos, com uma grande parte mais grossa e reforçada, que se chama cágado, são coevos do alfange, e estes bicos aguçados, que tão bem ficam no areal e no céu, não tem solidez nenhuma. Na realidade, um barco destes, que parece inútil, é um produto de engenho secular. Como não há porto nem abrigo e a embarcação tem de passar logo do areal para a onda que escachoa, atravessando a arrebentação para sair ao largo ou para regressar à terra, era necessário oferecer à onda a menor resistência e saltar-lhe no dorso: -por isso ergueu a proa. E como a dança das ondas se sucede durante alguns minutos, era forçoso também que, mal assentasse na água, lhe andasse ao de cima: -e a popa fugiu-lhe para o céu. O barco tem exactamente o feitio côncavo do espaço que vai de vaga em vaga, com um pouco de espuma figurada nas duas extremidades.

Estas grandes embarcações constroem-se na Lagoa, onde só carpinteiros especiais lhe sabem dar o estaleiro necessário, e vêm em carros de bois puxados por doze juntas até à Barrinha. São levantadas à proa, castelo da proa, e aguçadas até à ponta, bica; e levantada à ré com a sua bica na extremidade. No castelo da proa têm duas mãozinhas salientes para as ligar à terra por uma corda chamada rangedeira, não as deixando descair, quando o vento as impele e elas esguelham, e quatro escalamões de ferro onde entram os buracos dos quatro grandes remos.

Hoje só há em Mira quatro companhas, com os seguintes arrais: Manuel Maria Patrão, Manuel Fé, Manuel Mirão e Gabriel Janeiro; mas já houve onze, comandadas por José Patrão, Manuel Cera, Arraizinho, Tito Marrete, etc., todos mortos.

Os pescadores

Tudo aqui é pobre e humilde, mas não grosseiro. Os homens trigueiros, secos e fortes e as mulheres bem lançadas. Mesmo as feias têm um ar de distinção. A família é sagrada. O contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça. Quando saem do barco e o encalham, os pescadores não fazem mais nada -deitam-se na areia. O resto compete à mulher: é ela que lava as redes e o peixe, que o salga e carrega e que faz a lavoura da Barrinha. A sorte destas famílias numerosas melhorou muito desde que a Câmara lhes aforou terrenos no areal para cultivo. São as mulheres também que, depois da sardinha disputada a lanço, a levam à cabeça para a casa da salga, grandes barracões de madeira com manjedouras encostadas às paredes para as bestas e um depósito de sal branco de Aveiro. É ali que o almocreve a salpica de fresco antes de se meter a caminho, ou as mulheres a lavam em água ensossa. Só em Mira há vinte desses barracões, onde, quando é muita, ou não tem comprador, a metem em lagares de madeira e em domas, ficando de salmoura até chegar o Inverno -quando o homem esfaimado a estende num pedaço de pão sabendo-lhe a mais...

Como vive esta gente? Vive com simplicidade nos palheiros, casa ideal para pescadores ou para um velho filósofo como eu. É construída sobre espeques na areia, com tábuas de pinho e um forro por dentro aplainado. Duram tanto ou mais que a vida: cheiram que consolam, quando novas, a resina, a árvore descascada e a monte; ressoam como um velho búzio e são leves, agasalhadas, transparentes. Por fora escurecem logo e, envelhecendo, caem para o lado ou para a frente; por dentro conservam uma frescura extraordinária, e quando se abre uma janela, abre-se para o infinito. No chão, dois tijolos para o lume, em esteiras alguns peixes a secar. Do Natal até Maio não há pesca: vão cavar para o Alentejo ou para mais longe, e as mulheres ficam em casa com os filhos. Além da jorna, que regula de quatro mil réis a dois mil e quinhentos por dia, todos têm o seu quinhão nos dias de fartura -alguns punhados de sardinha ou de chicharros. Felizes ou infelizes? Não sei bem. Apesar de abandonados pelo Estado, que os rouba, cobrando-lhes de fisco uma exorbitância, quatrocentos contos o ano passado e quase o dobro este ano, não lhes dando em troca uma maternidade, uma pequena biblioteca que os instrua, um médico, uma botica, uma estrada; apesar de abandonados pelos homens, sem organização nem instrução, sem um padre que lhes fale em Deus ou nas coisas eternas (a capelinha de madeira está fechada) -esta gente é tão fundamentalmente boa que há cinquenta anos para cá não consta de um roubo, de um crime ou de um delito. Pode-se dormir com a porta aberta. Eu nunca fechei a minha.

Quando chegam a velhos e não podem trabalhar, como não há um simulacro de cooperativa e a lei do seguro os não abrange, lá se socorrem uns aos outros como podem. A miséria é quase desconhecida neste pequeno povo de mais de duzentos fogos e de cerca de mil habitantes. Mira, punhado de casebres a apodrecer -é um mundo. A vida aqui não é uma mentira. E todos os dias a arriscam, porque quase todos os dias ouço as mulheres implorando Deus, quando o barco vai ao mar e se enche de água. E também não é uma exploração -esta vida pobre e humilde, sob a abóbada do céu no grande areal deserto, com Deus e o mar.

Até aos últimos anos ninguém enriqueceu em Mira com a pesca. A pesca é como um jogo, uma questão de sorte, e as despesas muito grandes com os barcos, os armazéns e as companhas. Já disse que cada companha emprega noventa e seis partes e doze juntas de bois, que ganham cada uma catorze mil réis por dia. A companha despende por ano cento e cinquenta contos e até há pouco só constava de um proprietário que tivesse lucrado com o negócio, o Figueiredo, que passa por forreta. Os outros empobreceram e ainda hoje se fala no Carradas, grande lavrador, que se meteu a proprietário e acabou a pedir. Mas agora, com os preços excessivos do peixe, tudo mudou de figura. Já o ano passado se ganhou muito dinheiro, quando o cabaz de sardinha dava vinte mil réis. Que fará este ano, que regula entre cinquenta e sessenta? Há lanços de cinco contos, e já se diz que alguns se sentam em libras sobre os buracos que abrem na areia para as esconder. As casas de salga fazem também um grande negócio. Enriquece o almocreve, o patrão e o negociante; só o pescador continua pobre e despreocupado. O mar nunca acaba e o mar é deles...

Donde veio esta gente para o areal? É a mesma raça prolífica da beira-mar, que nos enobrece e que eu conheço da Afurada até Leiria, os homens graves e serenos diante do perigo, e as mulheres trabalhadeiras, sempre de chape linho redondo e xaile. Levantam-se de chapéu, trabalham de chapéu, deitam-se de chapéu e cuido que dormem com ele na cabeça. Nunca deixam a beira-mar, como se a respiração do mar lhes fosse indispensável à vida, e foram-se estendendo sempre pela costa até ao Algarve, onde fundaram uma colónia em Olhão.

Estes, de Mira, vieram das proximidades, de Mira vila, de Porto-Mor, etc. Ainda há memória de só existirem aqui meia dúzia de palheiros -o do tio Soldado, o do tio Domingos Rabita e poucos mais. Na época da pesca acode gente do Seixo, Cabeça e outras povoações dos arredores.

Além dos barcos grandes, usa-se em Mira a robaleira e a manhosa, todos do mesmo feitio, mas mais pequenos. A robaleira leva rede de arrasto e doze homens de companha e a manhosa seis homens e rede de emalhe, com três panos, os exteriores, albitanos, um de cada lado do pano de dentro. A robaleira vai também ligada à terra por um cabo, mas a manhosa não leva cabo. É para a tainha. Cerca-se e bate-se.

Há cinquenta anos que não lembra que morresse aqui ninguém de desastre no mar. Às vezes a onda vira o barco, envolve os homens e deixa-os sem sentidos. Quando os tiram por mortos, para fora do mar, metem-nos no sal como as sardinhas, «para lhes apertar os ossos». É grande remédio, dizem. Ano passado houve um que, depois de estar no sal quarenta e oito horas, ainda tornou a si...

MULHERES

Foz do Douro. Esta velha, crestada pela desgraça e pelo tempo, com sulcos de velhice e de lágrimas na cara, é que os impele para o mar. E o mar tem-lhos levado todos. Dobra-se-lhe o corpo exausto, rodilha gasta pela vida. Mas, quando o Inverno chega e a fome aperta, é ela que os injuria:

-Má raios partam o mar! Então quereis morrer à fome e os mininos?

Se os batéis estão em perigo, corre a costa, açoitada pelo vento, bebendo as lágrimas e o cuspo do mar e contendo o coração em farrapos, com as mãos negras apertadas sobre a tábua rasa do peito.

-Quem lhe falta, tiazinha?

-O meu filho, o meu neto. Já o maldito me levou o pai, leva-me agora os filhos!

Andou toda a vida de luto. Viu-os despedaçados nas pedras e deitou toda a ternura que tinha para deitar. Mas incita-os, pragueja, empurra-os, para que não haja fome em casa. Só o mar dá o sustento e a morte. Há mais de um mês que dura o Inverno.

-Má raios partam o mar!

E corre com as redes à cabeça, a cesta no braço e os soluços represados na garganta, levando o neto atrás de si a rasto para o barco.

-Tenho chorado tantas lágrimas como aquele mar salgado!...

Ao escurecer, na Cantareira, passam da fonte as raparigas, com o cântaro à cabeça e as mãos na cinta. É a hora do namoro. Param a conversar com os rapazes, que as esperam nos varais. Em Mira e à clara luz do Sol: elas sentadas, eles deitados de bruços, atiram-se de quando em quando punhados de areia. Em Matosinhos, os pares vão de mãos dadas pelo areal fora, enquanto a velha cautelosa espreita à porta e ralha:

-Olha lá se perdes a cortiça da marca, rapariga!

-Não há-de ter dúvida... -E sorri, envergonhada.

-Vai com ele para a praia e depois põe-te a barregar: «Ó tio, ó tio, deite para cá o batel.»

Há muitos traços que só descortino em sonho: uma velha com a boca desdentada sempre a rir-se para mim quando eu passava. Esqueci a figura e a fisionomia varreu-se-me de todo -mas a boca, só com um dente a escorrer ternura, levo-a comigo para a cova. Outros pequenos quadros me recordam. Nadas. Ranchos de raparigas que andam na maré à gravalha, de perna fina, curvadas e puxando para si restos de lenha. Os tipos mais grosseiros das moças ruivas e sardentas, molhadas, trespassadas de sol e de salitre, que correm as estradas de Matosinhos, como as de calcanhar rachado que pisam os caminhos de Esposende e as ruas de Gontinhães, cheirando a peixe, a alga e a sargaço, com a canastra à cabeça e a perna nua à mostra. E entre todas elas, uma de pele doirada, com um pique a maresia, que dava um instantâneo: esvoaçavam-lhe os cabelos loiros e o riso aflorava-lhe à boca sem querer, como se toda ela fosse riso: -Viva da Costa!

A sanjoaneira calca todo o dia a estrada ribeirinha, a vender peixe ou a fazer carretos. Às vezes trazem os pequenos ao colo. A Papeira é mãe e avó de homens louros, grandes como torres, dispersos pelo Brasil e pelo mar, e ainda ganha para comer com a canastra. A Joaquina das Coxas não sei dela... A sanjoaneira traz a casa lavada, e melhor do que lavada, trá-la asseada. É o hábito antigo, do navio. É esperta. Governa o homem e dirige o negócio. Vende, apregoa e remenda. Não se deixa dominar pela desgraça. Conserva as redes lavadas e encasca-as. Trabalham tanto e mais que os pescadores. Conheci muitas que, ficando com os filhos por criar, aguentaram a família numerosa vendendo peixe nas estradas.

Sento-me nos degraus da minha velha casa e sei a vida toda desta gente. Ali defronte são os tanques, onde vinte, trinta mulheres de saias arregaçadas lavam a roupa suja. Gritos, rixas, alarido. Um momento de silêncio e ouve-se o bater compassado da maré que vai, vem e lhes molha as pernas nuas. Pegada à minha casa fica a do Moutinho viela escura, trapos, peixe e dez famílias numerosas. E do outro lado a fonte de granito, para onde passam as raparigas com as mãos na cinta e o cântaro de barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha.

Sei tudo. A vida vem para a rua a cada passo. Gritos de mulheres, descomposturas... E depois de se atirarem os podres à cara umas das outras, acabam por se engalfinhar pelos cabelos, enquanto o rapazio forma roda e as açula. Separam-nas. E desgrenhadas, excitadas, é o momento em que dizem os últimos palavrões... Saibam todos... -Sejam muito boas testemunhas... -Acodem as do tanque e as da fonte. A vida é ali exposta. Mais gritos. Enrodilham-se atirando os braços ao ar. Ninguém se entende já. Vai haver mortes, com certeza -e cada um parte para seu lado, com os filhos agarrados às saias. Daí a bocado começam a passar as amigas, para casa duma e doutra, com a caneca do café debaixo do avental...

Outra vez rebuliço -agora é na fonte. Balbúrdia. Algumas são desbocadas, e aquela, no auge da fúria, curva-se e bate palmadas em certo sítio, sobre as saias -quando não faz pior e o mostra... Então o barulho ensurdece. -Bateste no meu filho, grande porca! -Arrolada! -diz a outra. Arrolada é a pior de todas as injúrias... Dois cântaros partidos nas cabeças. A água inunda-as e refresca-as. E tudo volta ao silêncio. Só se ouve cantar nos tanques e o bater compassado da onda no cais. Aí tornam a passar as raparigas, com o cântaro à cabeça, a mão na cinta, e um fio húmido a escorrer-lhes pela cara, apesar da cortiça que usam à superfície da água, para não se espalhar o líquido...

A Afurada fica da outra banda do Douro, casas apinhadas em duas ou três ruas cheirando mal. Tripas de peixe pelo chão e uma vida que formiga nas tabernas, nos buracos e nas crianças que se enrodilham nas pernas de quem passa. O tipo é de Ílhavo, de Ovar ou da Murtosa, não sei bem, que fundou uma colónia neste recanto do Douro. O homem percorre incessantemente o rio ou o mar rapando-o, até ao fundo, do mexoalho com que se adubam as terras, da solha nas areias, da faneca ou da sardinha na boca da barra e do sável quando ele vem à desova. As mulheres, altas, airosas e trigueiras, trabalham como mouras. Tenho-as visto lançar as redes e remar naqueles lindos barcos feitos com duas cascas de tábua, bateiras ou saveiras, com que os homens atravessam a terrível barra do Douro, morrendo muitas vezes, volteados pelas ondas, quando regressam com a borda metida na água. Mulheres que têm filhos às ninhadas e que nem por isso deixam de correr as ruas da cidade, com a canastra à cabeça e o pé descalço, o pregão na boca e o mais novo ao colo ou deitado no fundo do cesto com um resto das sardinhas à mistura. Andam léguas, são infatigáveis e já as vi lançar sozinhas as redes do sável, puxá-las para a terra e dividir o quinhão.

A de Mira, feia mas esbelta, tem um ar grave e senhoril quase sempre. Lava as redes, puxa os cabos, carrega os gigos, cozinha no lar enfumado com dois tijolos e faz a lavoura - «o prazo». Em resumo, a mulher trabalha mais do que o homem -trabalha o dobro do homem. Não sai de Mira, não vende o peixe, mas anda empregada na companha, por conta do proprietário, ou salga, por conta do almocreve. No interior de tábuas possui um cântaro, dois potes, alguns farrapos nas paredes e uma enxerga sobre os bancos. Vejo-as aos grupos, à espera que saia a rede ou à roda de um fogaréu onde assam as batatas. Vejo-as, num carreiro de formigas, subindo e descendo o areal, altas e direitas, do hábito de carregar o gigo à cabeça, ou à volta do saco, haste bem lançada para o céu, sempre vestidas de escuro e o lindo chape linho sobre o lenço. A Florinda Rabita senta-se ao pé de mim e conta-me a sua vida de desgraça. Traz um pequeno ao colo, com o olhar inexprimível das crianças que sofrem, e mais dois se chegam para ela. Sem espalhafatos, com uma dor contida e um ar modesto, fala do homem morto e de três filhos para sustentar com alguns tostões por dia. Deita sangue pela boca e todo o dia, empregada na companha, percorre o areal, para baixo e para cima. Aguenta-se como pode. É um tipo dorido, destes que vivem e morrem com dignidade, sem ninguém lhes ouvir uma queixa. De quando em quando vem-me à ideia esta figura de doente, com três filhos agarrados às saias, a carregar até ao fim, até cuspir o último farrapo de pulmão.

Quando passei na Gafanha, vi as cachopas da beira-rio, todas molhadas, sempre metidas na água a rapar o moliço. Feias e ingénuas. A uma calculei-lhe: -Tem para aí treze ou catorze anos. -Tenho vinte e um e três filhos, respondeu. -Outra tinha ficado a olhar para mim com olhos inocentes de bicho e as mãos postas sobre os seios redondinhos -sobre aquilo, como diz a Ti Ana, que o Senhor lhe deu e ela precisa ...

A Ti Ana Arneira, com cuja amizade me honro, é um dos meus melhores conhecimentos da Gafanha. Mulher capazona, como por lá se diz. Acompanha-me pelo areal e conta-me logo à primeira a sua vida. Tipo atarracado e forte, de grossos quadris, vestida de escuro, chapéu na cabeça e aguilhada em punho. O homem foi para o Brasil há muitos anos (-É o rei dos homes!... -), ficou ela e os filhos por criar. Criou-os todos. Netos, doenças, lutos. Nunca desanimou. A força que a sustenta é admirável, profunda e radicada, como a de quase todas as mulheres do povo que conheço. Deitou-se à vida -lavrou os campos. Vieram mais aflições e outras mortes.

-Então de que lhe morreram os filhos?

-Sei lá, a morte não se quer culpada. Era preciso sustentar a família. Pegou nos bois e no carrinho e começou a transportar sal da Gafanha para Mira. Fez mais: antigamente, no Arião também havia campanhas e, quando faltava um pescador, a Ti Ana agarrava-se ao remo como um homem e ia ao mar no barco. -Nem do Diabo tenho medo. Só tenho medo aos cães loucos. -A extensa planície, que atravessa, duas, três vezes por dia, é um deserto. A Ti Ana vai e vem de noite, sozinha, com os bois que lhe fazem companhia. Agora tem um campo, barcos para o moliço, novos netos para criar -e olha cara a cara o destino sem esmorecer. A sua vida é uma grande lição de energia.

A mulher da Murtosa, dizem os entendidos, não se confunde com a de Ílhavo e de Ovar: é baixa e atarracada, e a de Ovar delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia de predicados domésticos e morais. As de Ílhavo passam por as mais lindas, pelo sorriso que encanta, pelo olhar e pela magia que exalam. Que o agradeçam à ria. Todas as mulheres da beira marinha são postas em destaque pela luz carinhosa que as envolve e protege. Criam-se nesta esplêndida paisagem de água e cor, ao mesmo tempo pacífica e delicada. No meu entender, a luz é o grande agente da beleza. A ria tem uma luz como nunca vi em parte nenhuma. É doirada e viva, sem ser forte. É feita de água azul trespassada de sol. Nem mesmo em pleno Verão senti que fosse dura. Abre como um sorriso -morre quase sempre enternecida. É sã sem chegar à saúde exuberante. É sã e delicada. Envolve os seres e as coisas do mesmo tom carinhoso e meigo. As mulheres desenvolvem neste ambiente uma alma serena e respondem ao sorriso da luz com um sorriso de ternura. São como certas flores, criadas num momento feliz, que atingem a perfeição. O que aqui fica bem é o vestido escuro e a limpidez de sentimentos. Esta luz inteligente sabe muito bem que a arte é o encanto da vida e a mulher a suprema criação da arte.

A poveira, a bem dizer, é um homem. Feia e rude, pernas como trancas. Já se tem atirado para dentro das lanchas, obrigando os homens a arrostar com o temporal. Ou eles, ou elas. São mães extremosas e grandes parideiras de filhos para o mar. Quando lhes chega o tempo, metem-se na cama, com um casaco ou uma calça dos homens pelos ombros, esperando a hora com paciência. Só têm o cuidado de que a luz da graxa fique acesa todo o dia e toda a noite no casebre, para que o minino tenha alminha.

O seu noivado dura pouco -o que dura sempre é a amarga vida trabalhosa. Dantes o moço, em vésperas de casório, atava o lenço da noiva, como bandeira, à proa do barco. Duas lanchas, as enviadas, iam apanhar-lhe o peixe para a boda. E elas fiavam durante meses o ticum para as redes do casal!...

Eternas sacrificadas, tiram-no à boca para aparelhar o cesto dos homens: vendem, carregam as redes, lavam-nas, sem um fio enxuto no corpo, metem o ombro aos barcos para os deitar ao mar. Acabada a pesca, todo o trabalho cabe à mulher, que fabrica a graxa, que trata dos filhos, que faz redes, as lava e as conserta e que vai vender por esses caminhos fora.

E ainda o pior para todas estas mulheres não é serem bestas de carga, dias atrás de dias encharcadas e escorrendo salmoura... A mocidade dura-lhes o que duram as rosas. Quase sempre de uma beleza delicada, a mulher da beira-mar, com excepção da do Algarve, que é «a prenda da casa», logo que casa carrega com quase todo o peso do lar, cresta-se e envelhece. Acusam-na de imprevidência. Imprevidente é o homem, que gasta na taberna tudo o que ganha. O lavrador é avaro: tira o pão da arca a medo, como quem sabe o que ele lhe custa de esforços persistentes -o pescador, num dia de fartura, enche a casa de pão. E o mar inesgotável não lhe foge... Mas ela não. Ela, remenda, poupa e vai arrancá-lo à taberna. Conheço-lhes desde pequeno os extremos de dedicação e de força diante da desgraça. Esta pobre mulher -terra virgem de ternura -merecia um lugar à parte na nossa terra, pela sua abnegação, pela sua energia, e até pela distinção de sentimentos. Em Mira, o lar é sagrado. É-o em todas as povoações da costa portuguesa que ficam longe dos centros corruptores.

Mas o trabalho pesado não é ainda o pior -o pior é o sobressalto constante da sua vida. A da lavoura tem o lar seguro. Vem o Inverno temeroso e a noite que não tem fim. Fechada no casebre, à roda do lar, ela, o homem e a moça, com o filho no berço (ao lado, na corte, os bois fartos esmoem) -sente-se tranquila: sabe que na arca puída há meio carro de pão, o suor do seu rosto e algumas moedas juntas. Pode o temporal abalar o tecto de colmo e o nevão cair lá fora. Ardem os raizeiros no lume e as traves de castanho são eternas. O buraco tem alicerces de granito até ao fundo do globo. Quanto ao pescador, esse há-de ir ao mar, único campo que lavra, ainda que arrisque a vida. Os pequenos pedem-lhe pão e ele não tem outro ofício. O tempo está mau e dias atrás de dias passam. -Sempre vou... -Ela sente o coração oprimido, mas cala-se. Sabe perfeitamente pelas outras o futuro que a espera. Quantas conheci sempre de luto, sem ir muito longe da minha casal... Por fim diz: -Pois vai... As redes, a cesta e ele embarca. Fica sozinha na noite que não tem fim. Fica com ela um bando de pequenos, e, com o coração aos saltos, põe o ouvido à escuta... A onda brame no cabedelo com um eco prolongado. -Não tem dúvida, é o mal que chama o leste. -Mas agora a voz é outra, mais funda, o vento mudou para sul e a barra cerra-se. -Irão arribar a Leixões?... -Que tempo no mar alto, na noite trágica, e só negrume em roda! Nas mãos de Deus!, nas mãos de Deus!

Cabe-lhes sempre o pior quinhão da negra vida. Trabalham o dobro dos homens e vivem mais do que eles, porque sofrem muito mais.

Conheço na Foz esta mulher a quem chamam a Rata, corcovada, com uma saia pelos ombros, a apanhar peixe roído que lhe atiram por esmola -um cação, uma raia ou uns punhados de sardinha em dias de fartura. Velha, dura e negra, cheirando a peixe entranhado nos farrapos e a sal de sardinha, vive na Corguinha, entre pedaços de rede e de tábuas que o mar atira à costa. Passa o Inverno na ressaca a apanhar o moliço com as mãos. Não tem ninguém. Não fala nem pede. É a Rata, que corre a linguetas mal chegam as catraias e os batéis. Uma vez perguntei a um velho meu amigo, que está sempre de cachimbo na boca, quem era ela.

-Não sei, é a Rata.

Morou muito tempo em Sobreiras -e era a Rata das Sobreiras. Depois mudou para a Corguinha, onde vive num buraco que empesta a graxa de peixe e a raias escaladas. Passam-se às vezes semanas que ninguém vê essa figura descarnada, suja, com a saia de remendos pelos ombros. Mas chega o Inverno, e nos dias de perigo a Rata é a primeira a aparecer. No céu lívido, espumas que o temporal atira à costa. O camaroeiro içado. Nos penedos, os grandes rolos coléricos despedaçam-se em ribombos que ecoam, erguendo até ao céu esguichos de água com laivos amarelos dos fundos. A voz é temerosa. Os homens estão em perigo. Aparecem as mulheres desesperadas. já se sabe que vai morrer alguém.

Não se suporta o vento acolá no farolim, ou nos penedos da praia. Só a Rata está de pé, no meio do temporal, ignora o clamor; não dá pela água que a açoita, nem ouve os gritos das mulheres. Parece uma estátua sob o céu de chumbo. Todas as outras rezam. Um momento de ansiedade. Corre-se ao salva-vidas. Vida ou morte? Todas ajoelham com os braços atirados para o céu -e a Rata continua impassível como o destino; seus olhos fixos não se despegam daquele espectáculo tremendo. Nem um estremeção, nem um gesto.

-O estupor da velha!... - murmurei.

E então aquele homem calado, de cachimbo na boca, disse-me baixinho, ao ouvido:

-O mar levou-lhos todos...