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Naufrágio da Medusa
Versão de Maximiano Lemos Júnior
Actualização de texto de António Alves Martins
Naufrágio da Medusa e Naufrágio do Colibri foram extraídos do livro Naufrágios Célebres, cuja compilação de textos é da autoria de Zurcher e Margollé.
© 1997, Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8127-98-7
Lisboa, Julho de 1997
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
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NAUFRÁGIO DA MEDUSA
Segundo a relação dos senhores Correard
e Savigny, náufragos da jangada
Tendo os tratados de 1815 restituído o Senegal à França, foi enviada uma expedição para tomar posse da nova colónia. Levava o governador a bordo com tropas, e compunha-se de quatro navios: a fragata Medusa, de quarenta e quatro canhões, a corveta Echo, a gaharra Loire e o brigue Argus. O comandante-em-chefe era o Sr. Duroys de Chaumareys que, tenente de Marinha antes da Revolução, tinha emigrado e deixado, havia mais de vinte e cinco anos, de exercer a sua profissão. À ignorância juntava um espírito ligeiro e um egoísmo que o fez faltar a todos os seus deveres. Tinha-se feito acompanhar por um oficial estranho ao Estado-Maior, chamado Richefort, cujo conselho recebia para não estar exposto a deixar transparecer a sua inexperiência diante dos seus subordinados, e esse oficial era também tão vaidoso como incapaz.
A flotilha partiu de Rochefort em 17 de Junho de 1816 e o começo da navegação não apresentou incidente de importância. A marcha da Medusa era superior à dos outros navios. O Sr. De Chaumareys, cansando-se de ir a pouco pano para os esperar, deixou-os e lançou-se, a toda a velocidade que podia atingir, para o fim da expedição, faltando assim, em princípio, a um dever importante.
No 1.º de Julho, passou-se o cabo Bojador, e festejou-se a passagem da linha. «A nossa tripulação, diz o Sr. Correard, passageiro da Medusa, cuja relação seguimos em grande parte?, entregou-se, segundo o costume, às burlescas cerimónias do “baptismo” e à distribuição dos confeitos do “bom homem Trópico”. Este uso extravagante tem por fim principal fornecer aos marinheiros, diversamente disfarçados em deuses marítimos, a ocasião de recolherem dinheiro dos passageiros e das pessoas da tripulação que se resgatam assim da imersão. Foi durante estes divertimentos, que duraram três horas que bem se podem chamar mortais, que corremos a nossa perda. O Sr. De Chaumareys entretanto presidia a esta farça com uma rara simplicidade, enquanto que o oficial que tinha captado a sua confiança passeava na proa da fragata e lançava um olhar indiferente para uma costa eriçada de perigos cujo número e iminência escapavam sem dúvida à sua penetração.
As instruções do ministro prescreviam reconhecer o cabo Branco, correr vinte e duas léguas para o largo e voltar depois para terra com as maiores precauções e com a sonda na mão. Foi o que fizeram os outros navios da expedição que chegaram sem acidente a São Luís. Mas o Sr. De Chaumareys, com a ideia de chegar mais depressa, tomou a rota do sul, depois de ter andado só dez léguas para oeste a partir do cabo Branco, cujo reconhecimento se fez muito imperfeitamente.
Muitos passageiros que conheciam os perigos destas costas, começaram a assustar-se, pensando que a derrota seguida aproximava muito a fragata do banco de Arguim, mas os seus conselhos foram desprezados. Sondava-se de duas em duas horas caminhando a todo o pano, e como se julgavam, na manhã de 2 de Julho, por mais de cem braças de água, pôs-se a proa a su-sudeste, o que levava o navio mais directamente para a terra.
Ao meio-dia, um guarda-marinha, depois de ter marcado a derrota, assegurava acharem-se na ponta do banco, e deu parte da sua observação ao oficial que de há muitos dias dava conselhos ao comandante sobre o caminho a seguir. «Não se importe, respondeu este, temos oitenta braças.» «A cor da água tinha mudado completamente, diz Correard; numerosas ervas apareciam ao longo do bordo e agarrava-se muito peixe. Todos estes factos provavam, de modo a não deixar dúvida, que estávamos num baixio; a sonda anunciou efectivamente apenas dezoito braças. O oficial de quarto mandou imediatamente prevenir o comandante que deu ordem de meter um pouco mais a barlavento. Íamos à larga, com os papa-figos a bombordo. Amainaram-se logo estas velas; a sonda foi lançada de novo e deu seis braças. O capitão foi prevenido disto, e a toda a pressa mandou colher todo o vento, mas infelizmente já não era tempo. A fragata, vindo ao vento, deu quase logo uma pancada, correu ainda um pouco e deu segunda, e enfim uma terceira. Parou num sítio em que a sonda só deu cinco metros e sessenta centímetros de água e era o instante da maré-cheia. Achámo-nos nesta posição fatal precisamente na época das marés vivas, tempo que nos era o mais desfavorável possível, porque elas iam desaparecer e nós encalhámos enquanto a água estava mais elevada.»
O naufrágio teve lugar no dia 4 às três horas e um quarto da tarde. Este acontecimento espalhou na fragata a mais sombria consternação. Quiseram-se tomar as disposições ordinárias para safar o navio; depois de o terem aliviado, fundearam-se sucessivamente as âncoras em diversas direcções e viraram sobre os calabrotes, mas estas manobras, prolongadas durante dois dias inteiros, foram infrutuosas.
Na previsão da perda do navio, reuniu-se o conselho para resolver sobre a maneira de assegurar um refúgio à tripulação. O governador do Senegal deu o plano de uma jangada que julgou susceptível de levar duzentos homens com provisões. Foi-se obrigado a recorrer a um meio desta natureza, porque as seis embarcações de bordo foram julgadas incapazes de se carregarem com os quatrocentos homens presentes. As provisões de boca deviam ser colocadas na jangada, e às horas da comida os tripulantes das canoas viriam buscar as suas rações. Desembarcando nas costas arenosas do deserto, dirigir-se-iam em caravana para São Luís. Os acontecimentos que tiveram lugar depois provaram que este plano era perfeitamente concebido, e que teria sido coroado de bom resultado, se, infelizmente, a execução destas decisões não fosse prejudicada pelas lamentáveis sugestões do egoísmo.
Num momento, a Medusa começou a mover-se de uma maneira sensível; estava quase a nado e na maré alta apenas a popa batia em terra; mas na noite de 4 para 5 o céu escureceu, levantou-se o vento, o mar engrossou, e a fragata foi cada vez mais agitada. «Começou, diz o Sr. Correard, a dar frequentes culapadas que se multiplic avam, aumentando de violência. A cada instante, esperávamos vê-la despedaçar-se; a consternação tornou-se de novo geral, e adquirimos em breve a certeza cruel de que a embarcação estava irremediavelmente perdida. Rebentou pelo meio da noite; a quilha partiu-se em duas partes, o leme desmontou-se e apenas ficou preso à popa pelas cadeias, o que fez causar um mal espantoso. Produziu o efeito de um aríete horizontal que, impelido com violência pelas vagas, feria a golpes repetidos a popa do navio. Assim, uma parte do soalho da câmara do comandante estava levantada; a água entrava de uma maneira espantosa. Dentro em pouco, aos perigos do mar vieram juntar-se as primeiras ameaças do perigo das paixões despertadas pelo desespero e livres de todo o freio pelo sentimento imperioso da conservação pessoal. Pelas onze horas, rebentou uma espécie de revolta, suscitada por alguns militares, que persuadiram os seus camaradas de que os queriam abandonar. Muitos soldados tinham tomado armas e tinham-se colocado na coberta de que ocuparam todas as passagens; mas a presença do governador e dos oficiais bastou para acalmar os espíritos e restabelecer a ordem.
«Logo depois, a jangada, arrastada pela força da corrente e do mar, partiu as amarras que a prendiam à fragata, e foi-se desviando dela. Foi isto anunciado por gritos, e mandou-se imediatamente uma chalupa que a conduziu a bordo. Esta noite foi extremamente penosa. Atormentados pela ideia de que o nosso navio estava imediatamente perdido, sacudidos pelos fortes movimentos que lhe imprimiam as vagas, não pudemos ter um único momento de descanso. No dia seguinte, 5, ao romper da manhã, havia perto de três metros de água no porão e as bombas não podiam dar-lhe saída; decidiu-se que era preciso evacuar o navio, o mais depressa possível.»
A jangada tinha vinte metros de comprido e sete de largura. Era composta dos mastros de gávea da fragata, das antenas, e suas coberturas, vigas, etc. Estas diferentes peças estavam juntas umas às outras por amarras. Dois mastros de gávea formavam as peças principais e estavam colocados dos lados; outros quatro mastros estavam reunidos dois a dois no centro do aparelho. Tábuas pregadas por cima deste primeiro plano formavam uma espécie de soalho. Todavia, esta construção muito imperfeita não estava ainda acabada. Mandaram-se descer cento e vinte e dois militares, vinte e três marinheiros e passageiros. A canoa grande recebeu trinta e cinco pessoas, a lancha maior quarenta e duas, a canoa do comandante vinte e oito, a chalupa oitenta e oito; um escaler de oito remos vinte e cinco e a embarcação mais pequena quinze. Deviam embarcar-se, na jangada e nos barcos, provisões, vinho e pipas de água, mas fez-se tudo com tal confusão que estes objectos, essenciais, foram mal repartidos e uma grande quantidade deles foi deixada no convés do navio ou lançada ao mar durante o tumulto da evacuação.
A lei da honra prescreve ao comandante, de um navio naufragado, ser ele o último a deixá-lo; o Sr. De Chaumareys faltou a esta obrigação, embarcando-se na sua canoa quando havia ainda uns sessenta homens na fragata. Deixaram-se definitivamente dezassete que não puderam embarcar na chalupa muito carregada e em mau estado para resistir ao mar. Teria havido ainda possibilidade, segundo uma relação, de os colocar em outras embarcações e sobretudo na que levava o governador e a sua família.
No momento da partida, quando a jangada levada a reboque pelas seis embarcações se afastou da fragata aos gritos de «Viva o rei!», tinham todos bastante coragem. Os chefes destas embarca&