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O Mar

by Ramalho Ortigão

O Mar

Ramalho Ortigão

O Mar foi extraído do livro As Praias de Portugal - Guia do Banhista e do Viajante.

© 1996, Parque EXPO 98. S.A.

ISBN 972-8127-74

Lisboa, Fevereiro de 1997

Versão para dispositivos móveis:

2009, Instituto Camões, I.P.

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O MAR

Assim como quatro quintas partes do corpo humano são água, assim quatro quintas partes da grande corpulência do globo são mar. Parecendo separar os homens, o belo destino eterno do mar é reuni-los.

A bacia do Mediterrâneo confinava o mundo antigo habitado pelos Gregos, pelos Fenícios e pelos Egípcios. Foi pelo Mediterrâneo que partiram as primeiras colónias que povoaram a África e a Ásia, estabelecendo o princípio das nossas relações com o mundo novo. No Egipto, na Pentapotâmia e na China as primitivas civilizações seguiram, segundo Humboldt, o curso dos rios e baixaram dos montes ao litoral. Na Fenícia e na Grécia as primeiras expedições marítimas iniciaram os nossos domínios sobre as forças da Natureza.

De tal modo, o mar foi o primeiro guia da humanidade.

Amorável e austero, foi ele que primeiro embalou o berço do homem e que em seguida o acordou para os nobres trabalhos, sugerindo-lhe as primeiras noções do Universo.

O desenvolvimento dos estudos naturais tem progressivamente modificado a opinião inculta, supersticiosa e aterrada de que o mar é o insondável abismo tenebroso e deserto.

Naturalistas americanos têm unicamente explorado o mar a profundidades de dois mil e setecentos metros. Huxley, o sábio zoologista inglês, penetrou com a sonda e com a dragagem até quatro mil metros no fundo do alto mar.

As explorações do leito do oceano, feitas por ocasião de ser colocado o cabo transatlântico e o cabo destinado a ligar a costa de Argel com a Itália pelo vale submarino situado entre Cagliani e Bône, os trabalhos encetados com o mesmo fim no mar das Antilhas, no oceano Pacífico, no Gulf Stream, provam que o fundo do mar é habitado na sua maior profundeza, que o interior das águas mais afastadas das costas tem a sua fauna.

A pressão dos mais extraordinários volumes de água e o sucessivo rebaixamento termométrico não esmagam a vida nos corpos que encerram líquidos em vez de ar.

Os animais extraídos dos mais fundos recessos aquáticos a que desceu a draga ostentam as cores mais vivas, em que predominam o roxo, o amarelo e o verde. Essas diferentes espécies, analisadas e reduzidas, têm perfeitamente conformados os órgãos da visão.

Como os animais que vivem na obscuridade são de cor sombria, com os olhos atrofiados, é claro que, em vez das trevas, uma estranha luz desconhecida penetra os vales, os despenhos, as cavernas mais íntimas do grande leito do mar e alumia a intensa vitalidade de um novo mundo animal, revelado apenas aos estudiosos pelos mais recentes trabalhos de zoologistas como os Srs. Agassiz, Pourtalés, WyviJIe, Thomson e Jeffryes.

Guia dos homens, promotor das civilizações, revelador do Universo, progenitor das ideias que determinaram o abraço fraterno da humanidade em todo o mundo, o mar é ainda o mais poderoso foco, o mais abundante manancial da vida.

É inumerável a quantidade de animálculos microscópicos que habitam o mar. O fenómeno da fosforescência é principalmente produzido por um infusório luminoso chamado noctiluca miliaris, de cuja espécie existem vinte e cinco mil indivíduos em cada trinta centímetros cúbicos de água!

Os foraminíferos são tão infinitamente pequenos e tão infinitamente abundantes que d'Orbigny contou perto de quatro milhões desses indivíduos numa só onça de areia. Enormes tratos de terra firme são formados dos despojos de foraminíferos antediluvianos. Desta natureza é o solo em que nasce o vinho de Champanhe; têm igual formação os rochedos que no Egipto servem de alicerce às pirâmides, e bem assim as montanhas do Chile e a cordilheira dos Apeninos.

As maravilhosas ilhas de coral, que sobressaem como miragens à superfície do oceano, são verdadeiras eflorescências da vida animal submarina. Essas ilhas são formadas, segundo Darwin, de enormes aglomerações de pólipos. Idêntica origem têm os vastíssimos recifes dos mares da Austrália, da Nova Caledónia e do oceano Índico. De pólipos antediluvianos são ainda compostas algumas regiões continentais, como por exemplo a cordilheira do Jura, sepulcro enorme de miríades de habitantes de um mar extinto, cujas águas desapareceram da Europa como de um esqueleto humano desapareceu vaporizada a porção de água que constituía com ele os elementos vitais de um antigo organismo.

Fora da legião desses pequeninos entes, só perceptíveis ao microscópio, e de cuja aglomeração se fazem as ilhas, os recifes e as montanhas, não é menos assombrosa a fertilidade imensa do oceano.

Cada arenque tem sessenta mil ovos. Entre a Escócia, a Holanda e a Noruega a superfície do mar cobre-se inteiramente com os arenques que vêm na Primavera amar-se à luz do sol. Em certas passagens estreitas conta Michelet que o mar se torna sólido, que é impossível remar. Perto do Havre um pescador encontra na sua rede oitenta mil peixes. Em uma parte da Escócia, numa só noite, enchem-se de arenques onze mil barricas. Em Portugal, na costa de Espinho, no tempo da sardinha, uma só rede produz 900 mil réis. Na Póvoa de Varzim a importância das transacções feitas em uma só praça eleva-se a 20 contos. Na praia da Nazaré ainda este ano referia um periódico que se vendeu a carrada de sardinhas por 240 réis -para estrumar a terra.

Diante da areia húmida e fremente, abandonada pela onda que recolhe, um sábio professor alemão, prematuramente arrebatado pela morte aos grandes estudos da vida no mar, Edward Forbes, exclamava:

«Que página de hieróglifos! Cada linha de solo e de rochedo tem por caracteres particulares figuras vivas; e cada figura é um mistério. As aparências podem ser precisamente descritas, o sentido íntimo foge à penetração do espírito humano.»

No mar, tanto o vegetal como o animal encerram uma lição profunda. Dizia bem Humboldt que o estudo do oceano era a principal iniciação para o conhecimento do cosmos.

Um pequenino e obscuro animal basta para explicar ao observador instruído a configuração das terras e dos mares. O molusco ou o zoófito, aparecendo em ilhas longínquas, determinam que em certa época estiveram essas ilhas ligadas aos continentes. O caranguejo e o anélide, que habitam regiões distintas, provam a antiga comunicação de dois mares.

O maravilhoso aspecto da praia, na época das marés vivas, quando o Atlântico descobre uma parte do seu leito, é descrito nos seguintes termos pelo naturalista Blanchard:

«Nas primeiras rochas, tocadas apenas pela vaga durante uma parte do dia e da noite, vivem as espécies indiferentes à acção do ar e da chuva; as glandes marinas, completamente fixadas à pedra; as lapas, cujas conchas afectam a forma cónica; os búzios ondados; as anémonas vermelhas. Mais longe, nas partes areentas, saltitam os crustáceos do grupo dos camarões; a morada dos moluscos de concha bivalve é indicada por certos buracos na areia; certos montículos traem a presença de várias espécies de anélides, os arenícolas, de cor azeitonada e delicadas guelras; os cirratúlidas, cuja cabeça é provida de uma multidão de filamentos, que se enovelam, contornam ou arrastam em todas as direcções; as sabelles, encarceradas nos seus tubos. Para além mostra-se muitas vezes uma densa vegetação: é a zona das plantas marinas, designadas pelo nome de laminares. Aqui é maravilhoso o campo das explorações. A vida golfa por toda a parte: os moluscos abundam, os zoófitos, os vermes de todos os géneros pululam. Sobre as algas arrastam-se lentamente moluscos sem concha, que podem ser contados no número dos entes mais belos, como são os dóris e os eólides. Em certos pontos desperta a atenção uma vegetação alvacenta. São os prados de zooteras, em que se acham profusamente disseminados os animais. Mais longe desenha-se uma nova zona, caracterizada pela presença das algas crustáceas chamadas coralinas. No meio destas plantas vivem os pólipos e uma multidão de animais que não aparecem nunca mais perto do litoral.»

Nesta portentosa abundância, quantas variedades de indivíduos, quantas maravilhas na procriação, no organismo e nos costumes dos habitantes do mar!

Alguns viajam em balão, dentro do seu elemento. Dispõem de uma bexiga natatória, que enchem mais ou menos de ar, subindo ou baixando até à camada de água em que desejam ficar, e assim caminham sossegados, adormecidos.

Os mais vorazes têm dentes admiráveis, acerados, finíssimos. Como os podem quebrar facilmente, há uma segunda ordem de dentes para substituir a primeira, uma terceira para substituir a segunda. Em alguns os dentes enchem-lhes a boca, cobrem-lhes a língua, o paladar, a goela: verdadeiro arsenal da voracidade.

Têm as formas mais diversas, segundo as necessidades do seu organismo e as condições do seu meio: uns parecem um cavalo, outos um ouriço, outros um martelo.

Há-os espalmados e chatos, como a solha, que vive arrastando-se na areia.

Há-os finos, esguios e com as barbatanas peitorais tão desenvolvidas que se erguem da água e volitam no ar, como os exocetos, os ruivos e as andorinhas-do-mar.

Uns são temerários, destemidos, como o histióforo, que ataca o homem e faz rombos nos navios, batendo-os com a sua maxila superior, saliente, pontiaguda, sólida como aríete.

Outros têm por arma preferida a traição, como o polvo, de que o Padre António Vieira dá a seguinte descrição, superior talvez à de Victor Hugo:

«O polvo com aquele seu capelo na cabeça parece um monge; com aqueles seus raios estendidos parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, testemunham contestemente S. Basílio e Santo Ambrósio que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores, de todas aquelas cores a que está pegado. As cores que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo; e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui o que sucede? Sucede que o outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente e fá-lo prisioneiro. Fizera mais judas? Não fizera mais, porque nem fez tanto; o judas abraçou o Cristo, mas outros o prenderam: o polvo é o que abraça e mais o que prende. judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante: traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz é à luz, para que não distinga cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade, pois judas em tua comparação já é menos traidor!»

As alforrecas, que apresentam na água a forma de um barrete de dormir, e parecem feitas de geleia, umas transparentes como vidro, outras cor-de-rosa como as conchas do mar do Sul, outras azuis ou opalinas, são tão vorazes que engolem os crustáceos e digerem-nos sem os haverem mastigado.

Do ovo da alforreca sai uma larva que se transforma num pólipo. Deste animal, inteiramente diverso da alforreca, nascem os rebentos que formam a comunidade do polipeiro. Mais tarde, do polipeiro brotam uns gomos que se transformam em alforrecas. De sorte que a alforreca só se reproduz nos netos. Não concebe como mãe -a pobre alforreca! Concebe como avó.

O pólipo tem uma tal força vital que, depois de esquartejado, revive em cada um dos bocadinhos em que foi partido. Tantos bocadinhos, tantos pólipos. Inteiro é um indivíduo: despedaçado é uma família, uma comunidade, uma tribo.

Se o viram com o de dentro para fora, aceita corajosamente esta situação difícil: a sua pele interior, que se virou para fora, começa a respirar; a sua pele exterior, que se virou para dentro, começa a digerir.

Se engole um animal que se não sujeita a ser digerido e procura fugir pela bo.ca por onde entrou, que faz o pólipo? Mete pela boca um braço e segura a presa no estômago. O estômago digere-lhe o animal, mas não lhe digere o braço.

Quando dois pólipos lutam para disputarem a mesma presa, o pólipo mais forte engole o pólipo mais fraco juntamente com a presa que ele tinha agarrada; em seguida digere os despojos óptimos e vomita vivo o adversário vencido.

As estrelas do mar, de cor arroxada, que tantas vezes aparecem na nossa costa, quando não podem engolir um animal que lhes resiste, deitam o estômago fora, e com um suco que ele segrega entorpecem o inimigo e devoram-no depois.

Entre os crustáceos, uma espécie tomada como um símbolo de retrocesso por aqueles que ainda imaginam que ela anda às arrecuas -o caranguejo, o forte e prestante caranguejo, encarregado do importante serviço sanitário da limpeza das praias, representa, pela sua configuração e pela sua estrutura, a mais sólida, a mais poderosa, a mais terrível máquina de guerra que se tem inventado. Ao pé dessa fortaleza ambulante, a força do homem armado, coberto de aço até aos dentes, não é mais que irrisão e miséria.

Devemos agradecer à Natureza, diz Michelet, o ter feito os decápodes tão pequenos. De outro modo quem poderia combatê-los? Nenhuma arma de fogo os morderia. O elefante teria de se esconder. O tigre teria de trepar às árvores. O próprio rinoceronte não teria segura a sua pele tão rija e tão impenetrável. A esbelta elegância do homem, continua o grande escritor, a sua forma longitudinal, dividida em três partes, com quatro grandes apêndices, divergentes, arredados do centro, fazem dele, por mais que se diga em contrário, um ente fraquíssimo. Nas armaduras dos guerreiros, os grandes braços telegráficos, as pesadas pernas pendentes, dão a triste impressão de uma criatura descentralizada, impotente, cambaleante, prestes a tombar ao primeiro encontro. No crustáceo, pelo contrário, os apêndices ligam-se tão juntos à massa redonda, curta, atarracada, que o menor golpe que ele dá é a grande massa compacta que o vibra. Quando o animal agarra, corta ou fura, fá-lo com toda a força que tem, porque a sua grande energia chega até à extremidade de todas as suas armas. Tem dois cérebros (cabeça e tronco); mas para se resumir, para obter essa terrível centralização, como se arranja ele? Arranja-se sem pescoço, tem a cabeça no ventre. Maravilhosa simplificação. A cabeça reúne assim acumulados os olhos, as antenas, as tenazes e as maxilas. Logo que os olhos penetrantes vêem, as antenas palpam, as tenazes comprimem, as maxilas despedaçam, e pelo lado de trás, sem mais intermediário, está o estômago, perfeita máquina de esmoer, que tritura e dissolve. Num relance, tudo está consumado: a presa desapareceu; ficou digerida. Tudo é superior no crustáceo. Os olhos vêem para diante e para trás. Convexos, exteriores, facetados, abrangem uma grande parte do horizonte. As pinças ou as antenas, órgãos de indagação e de aviso, de tríplice experimentação, têm na extremidade O tacto e na base o ouvido e o olfacto. Vantagem imensa que nós não logramos. O que não seria a mão humana, se farejasse, se ouvisse! Em que conjunto e com que rapidez faríamos então as nossas observações! A impressão, dispersa pelo contrário entre três sentidos diferentes, que trabalham separadamente, é por esse facto inexacta ou fugitiva. No decápode, que tem dez pés, seis deles são ao mesmo tempo mãos, tenazes e ainda órgãos da respiração. Assim, por via de um expediente revolucionário, resolve este guerreiro o problema que tanto afligia o pobre molusco: «respirar apesar da concha». A isto, o decápode responde: «Pois eu respirarei pelo pé, pela mão. Este ponto fraco -a respiração -, por onde me poderiam dominar, coloco-o na ponta da minha espada, ponho-o no gume das minhas armas de guerra. Ora, que lhe toquem agora, se são capazes!»

Tal é, na eloquente frase de Michelet, o sábio, o possante, o valoroso, o terrível caranguejo! Se o prendem à traição por algum dos seus membros, ele mesmo quebra esse membro e retira-se mutilado. Vai com um, dois ou três pés de menos -embora! -, ele tornará a criar pacientemente mais um pé, mais dois, mais três, mais tantos pés quantos houver sacrificado ao resgate da sua liberdade.

O caranguejo, porém, cresce. Crescer, tornarmo-nos grandes, é para todos nós uma responsabilidade grave. Para o caranguejo é uma lamentosa desgraça. Tem de despir a sua invencível armadura, que o sufoca como um espartilho demasiadamente apertado, e é obrigado a ir triste, fraco, desarmado, para debaixo de uma pedra, fabricar pacientemente uma vestimenta nova. Todos então o desdenham, todos o maltratam, e, como o velho leão enfermo, ele recebe submisso o coice ultrajoso do asno. Nestas condições, retirado dos combates, das aventuras, das viagens, entregue inteiramente à vida doméstica, o caranguejo tem pela sua esposa uma dedicação sublime: quando ela é aprisionada, ele, não podendo defendê-la nem bater-se por ela, vai espontaneamente render-se, e entrega à discrição do inimigo a sua vida saudosa e viúva.

O monstruoso tubarão, quando namorado, quando tocado de amor, é tão desinteressado como o caranguejo -talvez mais. Ao primeiro ósculo conjugal. a fêmea do tubarão engole-o. Ele, rendido, obediente, passivo, deixa-se absorver, e permanece semanas inteiras, inofensivo e inerte, esquecido da sua voracidade, da sua fome inextinguível, dos seus instintos devastadores e perversos, inútil, desditoso e lírico, no estômago da sua amada.

Em paga de tanto afecto, a esposa tem com ele esta dedicação heróica: não o digere. A única coisa que faz, ao ver que o amor converte o seu marido num poltrão, num inútil, num imbecil, é acordá-lo. Como boa e honrada companheira, chama-o à vida prática, à actividade e ao dever, dá-lhe os bons-dias, e vomita-o no seio das suas ocupações e dos seus negócios.

Nobre procedimento, bem diverso do de outras fêmeas de melhor fama! A aranha, por exemplo, essa esposa execrável e indigna, no dia seguinte ao do noivado põe-se a olhar para o marido com um olhar doce, lascivo, cheio de falsidade e de traição; em seguida cai sobre ele de um salto, e, quando o pobre marido imagina que vai receber um beijo, ela parte-o em bocados e come-o. Não lhe come só figuradamente os olhos da cara em carruagens, em toilettes, em camarotes na ópera, como às vezes se vê em outra espécie; come-o inteiramente, literalmente, pelo estúpido prazer de o triturar, de o mastigar e de o digerir. Que indignidade e que abuso de confiança! O macho da aranha verde, observou o naturalista Balbiani, que muda de cor durante o consórcio e se converte de verde em castanho: é de terror talvez, coitado, pensando na sorte que o espera.

Do carapau, do barato e obscuro carapau, referem os naturalistas as mais curiosas astúcias. O carapau constrói uma espécie de ninho, que é a sua alcova, com duas portas. Feita a casa, o carapau oferece à esposa o domicílio conjugal. Se a esposa se recusa a acompanhá-lo, o carapau, não podendo apelar para os tribunais, que mandam a mulher seguir o seu marido, faz justiça por suas próprias mãos e leva a fêmea para casa à força, agarrada por uma barbatana. Logo que a fêmea deposita os ovos, o macho encarrega-se de os fecundar, entrando por uma das portas do ninho e expulsando a esposa pela porta contrária. Então fecha a porta por onde a esposa saiu e fica na outra, de vigia, para que os demais peixes lhe não comam a ninhada.

Os carapaus são uma das poucas excepções à regra geral que preside ao modo como os peixes se amam. A maior parte deles não conhecem as mães dos seus filhos. As fêmeas, tendo depositado os ovos em lugar oportuno para o seu desenvolvimento, retiram-se. Os machos vêm em seguida, fecundam os ovos e retiram-se também. A Natureza é a grande roda desses eternos expostos. A família de que eles procedem não se reúne nunca.

Também, o que seria duma pobre família de peixes, se eles se lembrassem de adoptar, criar, educar e defender todos os filhos com que a Providência abençoa os seus consórcios! Imagine-se um desgraçado rodovalho, que põe nove milhões de ovos! Uma tainha, que põe treze milhões de ovos!

Ainda assim, há peixinhos que amam seus filhos, que trabalham, que se dedicam por eles. Citei já o carapau. Seria faccioso se ocultasse o nome da truta, a qual faz uma cova onde enterra os seus ovos, e o da hipocampa, a qual tem junto da cauda uma espécie de bolsa, em que recolhe os ovos durante o período da incubação.

As raias e os esqualos apreciam também as convivências do amor, procuram as suas fêmeas, seguem-nas, galanteiam-nas, fazem-lhes a sua corte.

Em confirmação da teoria darwiniana da selecção sexual, cita-se um peixe chinês, ultimamente introduzido em França por um piscicultor de Paris, chamado Carbonnier. Na época da desovação, o aludido peixe é, junto da sua fêmea, de uma ternura inexcedível. Abraça-a, curvando lateralmente para esse fim o seu corpo em semicírculo, cinge-a estreitamente, parece querer beijá-la. Engolindo bolhas de ar, expulsa-as em seguida envoltas numa ténue membrana albuminosa, e constrói por esse meio à tona de água uma espécie de dossel de espuma, debaixo do qual celebra as suas núpcias e fecunda os seus ovos à medida que eles são depostos pela fêmea. Como os ovos ficam dispersos na água, o macho recolhe-os na boca, transporta-os para debaixo do seu tecto de espuma, onde os reparte cuidadosamente, para que fiquem todos em iguais condições. Nascidos os peixes, o pai consagra-lhes os mesmos cuidados e os mesmos carinhos que havia dedicado aos ovos. É notável que estes peixes, em que os dois sexos se amam com tão extraordinário carinho, são, segundo afirma o Sr. Perrier, do Museu de História Natural de Paris, os mais belos que se têm visto. -Um simples peixe chinês! Vejam! Que vergonha para os peixes europeus!

O sábio Agassiz, numa carta. datada de Tomás, sobre a exploração do mar de Sargaços, refere que o peixe chamado por Cuvier chironectes pictus constrói para os seus ovos um ninho em que a sua progénie fica misturada com os elementos que serviram para a construção da arca salvadora. Como esses materiais são ramos vivos de sargaço, este berço, diz o ilustre naturalista, flutuando sobre o oceano profundo, oferece ao mesmo tempo, à ninhada que encerra, a protecção e o sustento de que ela necessita.

A raia tem o privilégio de um olfacto tão fino, tão sensível e tão delicado, que muitas vezes os seus nervos a obrigam, como nós diríamos, a pôr o lenço no nariz. Para realizar esta operação dispõe a raia de uma fina membrana, uma espécie de véu, em que envolve o órgão olfáctico.

Alguns peixes têm uma espécie de voz, isto é, dispõem de certos sons que emitem quando querem, refutando assim o prolóquio com que se caracteriza a eloquência de certos parlamentares: mudos como peixes.

À Academia das Ciências de Paris mostrou há pouco tempo o Sr. Dufossé que duas espécies de uns pequeninos peixes, extremamente obscuros e feiíssimos, produzem, quando se lhes pega, um estremecimento intenso, acompanhado de um ruído, e às vezes de um som comensurável. Estas vibrações são verdadeiros actos de expressões instintivas, e têm por causa a tremulação muscular -revelação curiosa da propriedade que podem ter os músculos de criar manifestações acústicas.

As cores dos peixes, algumas tão brilhantes, tão sumptuosas, e ao mesmo tempo tão efémeras e tão mutáveis que constantemente se estão sucedendo e variando nos mesmos indivíduos, reconheceu-se recentemente que eram dependentes da qualidade dos raios luminosos que impressionam a vista destes animais. Para os peixes e para os crustáceos, o olho é o ponto de partida de um abalo nervoso que se transmite à pele e produz uma mudança mais ou menos completa na coloração. Como é -está claro -por intermédio dos nervos que a impressão primitiva do olho se transmite à pele, cortados certos nervos em certos peixes, altera-se-lhes a cor geral e transforma-se-lhes em riscas zebradas. A razão é que se interceptou em parte, e em parte se deixou propagar, o abalo de que a retina é a sede, e cujo agente são as irradiações emitidas pelo ambiente. A cor dos peixes altera-se segundo a cor do aquário em que eles vivam. Se porém um peixe cega, a sua cor fica imutável e permanente, qualquer que seja a cor promovida no meio em que ele se acha. O' mesmo que se dá com os peixes sucede com os crustáceos. Tirando-lhes os olhos deixam de mudar de cor. São como nós: cegos, ficamos indiferentes à ostentação aparatosa da toilette.

O mar torna-nos imaginativos, faz-nos propender para a contemplação, para a ociosidade, para a vaga saudade, para a indefinida melancolia. Este estado poético é dos mais perigosos. Prostra, enfraquece, desarma o carácter. É por isso que as mulheres, à beira-mar, nos dias doces e enervantes do Outono, precisam mais do que nunca de se retemperarem na aplicação, no estudo, na actividade intelectual.

Possam as breves linhas que deixo escritas inspirar-te, leitora, amiga leitora, a curiosidade dos estudos da Natureza, a decifração dos mistérios da vida no interior do mar!

Aí o tens, boa amiga, o vasto, o poderoso oceano! Procura conhecê-lo. Ele será o teu melhor, o teu mais fiel amigo, o teu médico, o teu mestre, o namorado do teu espírito.

Tudo aquilo de que precisa o teu abatido organismo, a tua imaginação, o teu carácter, a tua alma, o mar possui para to dar.

Ele tem o fosfato de cal para os teus ossos, o iodo para os teus tecidos, o bromureto para os teus nervos, o grande calor vital para o teu sangue descorado e arrefecido.

Para as curiosidades do teu espírito ele tem as mais interessantes histórias, os mais engenhosos romances, os mais comoventes dramas, as mais prodigiosas legendas.

Para as fraquezas da tua imaginação, da tua sensibilidade, da tua ternura, tem finalmente a grande força austera, simples, tenaz, implacável, que na terra se não encontra senão dispersa, em pequenas parcelas, pelo que há de mais sublime e de mais culminante na humanidade: a alma dos heróis e o coração das mães; -força imensa, sobrenatural, inconsciente, de que o mar é viva imagem colectiva e portentosa.

Dizem, leitora, que são curiosas as pessoas do teu sexo. Gloria-te desse belo defeito. A curiosidade é a primeira das grandes forças do espírito humano.

Se Sir Isambert Brunel não tivesse tido a curiosidade de examinar minudentemente o modo como um ínfimo bichinho, o teredo navalis, rói a madeira dos navios, perfurando-a primeiro por um lado, depois pelo outro, e envernizando a abóbada e as paredes dessa passagem com um induto para esse fim segregado, não se teria então descoberto o processo por que foi construído o túnel do Tamisa.

Foi considerando curiosamente a construção de uma teia de aranha que Sir Samuel inventou as pontes pênseis.

A curiosidade de achar as causas da queda de uma maçã e do aspecto de uma bola de sabão levou Newton à lei da gravitação e Young à teoria da difracção da luz.

Se uma espécie de luneta oferecida a Maurício de Nassau por um oculista holandês não tivesse suscitado em Galileu uma curiosidade semelhante à que desperta nas crianças o maquinismo dos relógios, Galileu não teria descoberto o telescópio.

Como se descobriu o galvanismo? Por um acto de simples curiosidade. Galvani, examinando o organismo de uma rã, notou que a pata deste animal se contraía ao contacto de lâminas de metais dissemelhantes introduzidas entre um músculo e um nervo. Daí, a telegrafia eléctrica.

Diante de um copo de cerveja, Priestley sente um dia a curiosidade de explicar o fenómeno da fermentação. o. estudo das propriedades do gás flutuante sobre a superfície do líquido fermentado lançou as bases à química pneumática.

Cuvier, mestre de meninos, passeando uma tarde à beira-mar, encontrou na areia uma siba dada à costa. Da curiosidade suscitada no seu espírito pelo estranho aspecto desse animal nasceu o primeiro livro do grande naturalista: o seu admirável estudo dos moluscos.

Hugh Miller, simples canteiro, trabalhando numa pedreira à beira-mar, sentiu a sua curiosidade tão vivamente ferida pelos restos orgânicos das espécies extintas descobertas na maré baixa, que, observando e comparando minuciosamente o aspecto do solo e o aspecto dos animais, acabou por compor um dos mais notáveis livros da geologia.

Espreitar pelo buraco de uma fechadura e dobrar o cabo da Boa Esperança são dois factos de curiosidade: um descobre má-criação; o outro descobre a América.

A um dá-lhe a curiosidade para mexer nas gavetas dos outros: este é o indiscreto. Igual curiosidade leva outro a revistar a África: este chama-se Livingstone.

Que é pois que se deve fazer à curiosidade para que ela não seja um ridículo defeito, e seja uma nobre e poderosa virtude? Educá-la na elevação; dar-lhe por objecto os segredos da Natureza; dar-lhe por fim os interesses da humanidade.

Sabeis, minhas curiosas senhoras, qual é o grande mal da nossa educação portuguesa? É o atrofiamento da curiosidade. Daqui, a indiferença. Da indiferença, a preguiça. Da preguiça, a miséria, a dupla miséria do desequilíbrio económico e do rebaixamento moral.

Guardai a vossa curiosidade, ó mulheres; guardai-a como um tesouro precioso: é por ela que penetrará a grande reforma urgente da instrução do povo.

Vós tendes, latente ou mal empregada, uma grande actividade de espírito, paralisada em nós outros os homens pelos nossos estúpidos hábitos de boulevard, de café, de clube, e pela lenta narcotização cerebral proveniente do abuso do tabaco e da pesada cerveja, fatal à vivacidade, que era o antigo apanágio da raça meridional.

Estais nas praias. Empregai as longas horas de ócio tão estiradas, tão tediosas, tão enervantes, estudando o mar nos seus grandes fenómenos, nas suas portentosas criações.

Um só molho de mar, que escachoa na rocha e se pulveriza através dos raios do sol poente em um nevoeiro opalino e doirado, contém mais acção, mais vida, mais enredo, do que todos os romances juntos do Sr. Ponson du Terrail.

Nenhum dos nossos amigos predilectos, nenhum dos nossos poetas líricos, nenhum dos nossos escritores fantasistas tem para nos oferecer tantas comoções, tanto drama, tantas histórias curiosas como as que sabe o mar, o inesgotável narrador, o doce poeta, o velho cronista.

Esse bom amigo não nos dá unicamente as mais belas e as mais interessantes histórias. Quando estamos sãos oferece-nos os seus pequenos presentes de amizade: as poéticas iluminações fantásticas dos fogos de Santelmo, as pérolas, as brisas.

Quando adoecemos das complicadas enfermidades modernas ele só nos dá tudo aquilo de que precisam as nossas naturezas empobrecidas e devastadas. Todo o elemento da vida que falta na terra superabunda no mar. Por isso Michelet exclama: «Todos os princípios que em ti, homem, estão reunidos, tem-nos separados o mar, essa grande pessoa impessoal. O mar tem os teus ossos, tem o teu sangue, tem o teu calor, a tua seiva vital. Tem o que te falta: a demasia da plenitude, o excesso da força.»

Para os Portugueses, o mar tem atractivos especiais. Para nós, ele é o caminho das conquistas, dos descobrimentos, da poesia, da inspiração artística, da glória nacional.

A nossa bela arquitectura manuelina, as capelas imperfeitas na Batalha e os Jerónimos têm, na escolha dos ornatos predilectos, na repetição de certos pormenores, o profundo cunho marítimo; vê-se amiúde a preocupação do embarcadiço; acha-se a cada passo a revelação do marinheiro ..

O nosso mais belo livro de versos é um poema marítimo, Os Lusíadas.

A mais extraordinária obra que em Portugal se tem escrito em prosa é a História Trágico-Marítima, uma relação de naufrágios.

Em nenhuma outra literatura conheço livro que se compare com este. A História Trágico-Marítima é a narração de célebres catástrofes, copiada literalmente da notícia oral, repetida muitas vezes por uma testemunha presencial do caso referido. Nunca o talento dramático produziu rasgos mais comoventes, efeitos mais profundamente tocantes; nunca a tragédia achou notas mais sentidamente elegíacas; nunca a arte descritiva tornou mais palpitante e viva a acção narrada; nunca, finalmente, a ciência da linguagem e o poder do estilo acharam para um assunto formas mais adequadas, toques mais profundos, simplicidade mais real, mais pitoresca, mais sugestiva, mais cabalmente artística. Não fazem melhor os maiores mestres, Ésquilo, Shakespeare, Carlyle.

Na história do naufrágio do galeão grande S. João, o desastre de Manuel de Sousa de Sepúlveda, a morte de sua mulher e de seus filhos, que ele enterra por suas próprias mãos, constitui uma página primorosa e inexcedível. Roubados, insultados, despidos pelos cafres, Manuel de Sousa, com a sua famí;lia, despede-se dos seus companheiros de infortúnio, dos náufragos do galeão grande, que Manuel de Sousa comandava. Os marinheiros prosseguem, chorando de saudade e de lástima, a sua viagem dolorosa no sertão. Manuel de Sousa fica, aparentemente indiferente, nu, com uma compressa molhada na cabeça, a procurar .conter o juízo que lhe foge.

«Depois que André Vaz se apartou de Manuel de Sousa e sua mulher, ficou com ele Duarte Fernandes, contramestre do galeão, e algumas escravas, das quais se salvaram três que vieram a Goa e contaram como viram morrer D. Leonor. Manuel de Sousa, ainda que estava maltratado do miolo, não lhe esquecia a necessidade que sua mulher e filhos passavam de comer, e sendo ainda manco de uma ferida que os cafres lhe deram em uma perna, assim maltratado, se foi ao mato buscar frutas para lhes dar de comer. Quando tornou achou D. Leonor muito fraca, assim de fome como de chorar, que depois que os cafres a despiram nunca mais dali se ergueu nem deixou de chorar, e achou um dos meninos morto que por sua mão enterrou na areia. Ao outro dia tornou Manuel de Sousa ao mato a buscar alguma fruta, e quando voltou achou D. Leonor falecida e o outro menino. E sobre ela estavam chorando cinco escravas com grandíssimos gritos. Dizem que ele não fez mais, quando a viu falecida, que apartar as escravas dali e assentar-se perto dela, com o rosto posto sobre uma mão, por espaço de meia hora, sem chorar nem dizer coisa alguma, estando assim com os olhos postos nela. E no menino fez pouca conta. E acabando este espaço se ergueu, e começou a fazer uma cova na areia com a ajuda das escravas, e sempre sem se falar palavra, a enterrou, e o filho com ela. E acabando isto. tornou a tomar o caminho que fazia quando ia a buscar as frutas, sem dizer nada às escravas, e se meteu pelo mato, e nunca mais o viram.»

Nada mais simples, mais sublime, mais palpitantemente dramático, mais fundamente trágico. Em todas estas narrativas, nem uma só observação psicológica. Tudo é objectivo, exterior, como nos mais modernos processos de estilo tão meditados, tão perfeitos, tão científicos da escola de Flaubert. A impressão de quem lê é lancinante e profunda. Como não temos de desviar-nos com o autor pelas divagações críticas da análise dos sentimentos, o facto, em toda a sua humana inteireza, apodera-se de todo o nosso espírito, e a comoção penetra-nos até à consternação ;e até às lágrimas.

Este admirável livro, único na literatura portuguesa, feito inconscientemente por aqueles que o trasladaram da versão popular, foi o mar, o grande mestre, que o inspirou à poética alma aventurosa dos navegadores portugueses.

Camões, tendo encontrado em Moçambique um dos marinheiros sobreviventes ao naufrágio do galeão de Sepúlveda e às aventuras subsequentes, ouve dele a história do desastre, e põe-na na boca do Adamastor, quando este profere as delicadas e saudosas estrofes, que principiam:

Outro também virá de honrada fama,

Liberal. cavaleiro e namorado ...

Na famosa xácara da Nau Catrineta, querendo o Demónio comprar pela salvação da nau a alma do capitão, este exclama:

Renego de ti, Demónio,

Que me estavas a atentar!

A minha alma é só de Deus,

E o meu corpo é do mar!

Tal é o grito valoroso e sublime da alma de um povo que a Providência destinou a ter no mar a sua história, a sua inspiração artística, a melhor, a mais bela, a mais gloriosa parte da sua existência, finalmente a sua segunda pátria:

A minha alma é só de Deus,

E o meu corpo é do mar!