O Navio Pirata JhuP Re Re BOOKMOBI ( 8 H X h x MOBI
O Navio Pirata
Vitorino Nemésio
A publicação de O Navio Pirata, I’m Very Well, Thank You!, e O Arquipélago dos Picapaus, extraídos do livro O Mistério do Paço do Milhafre, foi gentilmente autorizada pelos herdeiros de Vitorino Nemésio.
© 1998, Herdeiros de Vitorino Nemésio e Parque EXPO 98. S.A.
ISBN 972-8396-37-6
Lisboa, Janeiro de 1998
Versão para dispositivos móveis:
2009, Instituto Camões, I.P.
***
O NAVIO PIRATA
Jé Faleiro (conta Mateus Queimado) pertencia a uma tribo de pescadores do Pico que arribara à Terceira em tempos imemoriais. Talvez baleeiros, ou simples pescadores fugidos às fomes periódicas daquela ilha. A verdade é que os Faleiros estavam na Praia de raiz, com quatro ou cinco fogos espalhados na Ribeira do Mar e cheios de raparigas casado iras, de homens maduros e calados, de velhos graves que ajudavam à rede e, de perna encruzada, a galocha na ponta do meíto, contemplavam o mar porte irando e cuspindo.
Eram Faleiros, por macho ou fêmea, muitos dos meus companheiros de arruaça. E, na venda de Antonico Faleiro, ao domingo, espreitando o renque de quartilhos que faziam ir e vir as maçãs-de-adão aos bebedolas como êmbolos no corpo de uma bomba, era à garotada Faleira que eu devia os meus maiores regalos espirituais.
Santo tempo! Antonico Faleiro deixara a cana do leme pelo rebote; depois, o rebote pela medida de litro. Estabelecera-se. Dizia-se que fizera fortuna passando aos direitos da Alfândega tabuões arribados. E então?! Não seria um meio como outro qualquer de enriquecer?! Os madeiros pertenciam a navios de gente de longe, que naufragavam no Banco. Ali à vista da Ilha quebravam seus mastros para sempre, perdiam o poleame, ficavam enfim umas pobres carcaças sem governo. Nós íamos espreitar algum que conseguia exalar o último suspiro nos rochedos da Mamerenda.
Era desses (oh! ... raros!) que Antonico Faleiro safava os esteios da bordada ou os pranchões da carga de f1andres, cobertos de gusano e de algas mais bonitas que o penteado da Rosa do Cabelo Vermelho, que Deus haja. O navio lá estava estirado, sem metade de um bordo, como meia queixada de um animal do Dilúvio. Um pedaço da mastreação, teimoso, de vante e embrulhado num retalho de pano encordoado, ainda conservava àquele lamentável esqueleto um pouco da graça e do atrevimento de um navio. Mas era um vencido, um cadáver! A tripulação desaparecera-lhe da coberta como a população de uma cidade atacada de peste negra. Um cordão de gaivotas debicava-lhe no círculo da água do costado. Mas nem isso! ... A bordo não havia que comer. Nem conserva frescal nem bicho morto.
Apenas cá nós («a garotada» - como dizia, verde de cólera, o Samiguel da venda, a quem pilhávamos a alfarroba de saca e os figos de seira, cheios de caspa) conseguíamos desencantar daquele cavername destroçado alguma coisa útil: uma polé inteira. .. um cachimbo ratado ... uma lata de cré ... E fazíamos da sua área abandonada pela Alfândega a cidade fatal da nossa pirataria.
-Eh, r'pá!. .. -(E assobio. )
Um aulido suspeito já varou o ar de Inverno. A Praia está deserta; a tempestade, latente. Milagre é se em calçada ou passeio esturge um tamanco matutino. Mal se vê, ao rés dos telhados altos, sina linho azul de almoço em casa de gente rica. O «Sô Fessô», doente, faltou à escola. E da venda do Caboz (onde fica a chave, presa a um búzio), da venda do Caboz até à raigada da muralha erma e abalada da vaga formou-se aquela espécie de carga de cavalaria da garotada em férias, de sacolas apertadas, barretes enterrados até às orelhas, e o pião na algibeira dos calções como um grande bubão numa virilha.
-Sume-te, cão! Vai-te encostar a quem te deve! Nã querem lá ver que o alma do diabo me ia atirando õ chão?!
É o Cacória. Cachené ao pescoço, chinelo de ourelo no pé, bonezinho de veludo, não há maricas maior ao redol desta ilha. Tem a venda a Entremuros. Lá frita o peixe aos moleiros da Agualva e corta o queijo a quem quer. Mas quero cá saber! O que ele é é um grandessíssimo maricas e muitíssimo capaz de estragar o destino desta manhã à rapaziada da escola à solta.
Nem mais!...Viu a malta dobrar o Casão do Sal; pôs aquela mão gorda e niquenta em pala sobre os olhos (o pitosga!) e lá foi…lá foi, que eu bem vi, avisar o Sr. Zozimo, por causa do Venâncio. .. talvez avisar meu pai, que tem medo da minha bronquite e não me tarda no encalço!
-Foge! Foge, Segunda! Anda Tiazé, que eles vêm aí!
«Chinelàbum! ... Chinelàbum! ...
Chinelàbum! ... Simiclarim!... »
O pobre do Porto Judeu bem pode esboçar o seu bailado tonto, na Casa do Peixe; torcer o pezinho de valsa e fazer aquela cara feia, de parvo ou de mártir, com que dá o pulo final a meio do terreiro arrematando a cantiga. A cáfila vai mais longe que o seu bordão de tolo. A cáfila já deixa no areal as pegadas da fuga e do mistério.
Vão à banhada? Não, que o frio e o mar não convidam. Às giestas novas, à Ladeira Devassa? Não é o tempo delas. O cemitério, ao Vale Farto, ainda tem as despedidas-de-verão frescas do Dia de Defuntos.
Quando nós éramos vivos
Comíamos destes figos;
Agora que somos finados
Comemos dos mais passados ...
Assim cantava o Ti Matesinho a meu pai, aos seis anos, para o obrigar a atravessar em fralda os quartos desertos e a meter-se na caminha ao pé dele. Os finados, vizinhos do Verdoiço ... As campas de labrostes e marítimos, de senhorões e de pedintes floridas de goivos e violetas uma vez cada ano... Lá estava, entre elas, a cargo do Cabo do Mar, a sepultura estrangeira:
AQUI JAZ JACQUES ROUDÉ E SEUS COMPANHEIROS
DE BORDO DO LUGRE «ODETTE», Q DERAM À COSTA
D'ESTA ILHA EM JANEIRO DE 1907.
P. N. A. M.
-Não está? -grita uma voz, cá do cais, para um dos da patrulha de exploração escondidos atrás do forte, espiando os calhaus do naufrágio.
Mas eles não podem falar. Além de ser longe, compenetraram-se da missão e do mistério pirata. Por isso só fazem de lá um sinal de braço e mão, que o vento, padejando a areia, equivoca e dificulta. Quer dizer que o guarda, naturalmente, foi caçar para a banda do Zimbral. Há lá pombos de rocha alapados nas furnas da craca.
Quando, seguros da impunidade, chegámos à carcaça do veleiro, ainda felizmente não tinham tirado o sino que marcava os quartos a bordo. Zozimo de S&