{\pwi, TahomaCourier NewÐ/à=ð      â=â@F  ·%V ####Ÿ##A#####"##########º#®#Å#$š#q#ø#F*#Â#4m###0ë#Ç#B###)#!G#Î#\###´#KÉ#+p#!q#ˆ#¾#þ#›##®# #‹#/°#Û# #}##'#!##æ##Œ#v#)#/Ñ## #>f#B#/Ù#<###P###@#(# ï####z#±#Ò# Ù#¡# ç#˜®# ò#:ð#G#5€#&#‘#p#Ë#>y#;)#E#•### Í### ó# X#z###PU#(ë#6º#Ì# 4# í##-# ##^#######ˆ#"œ#–###§#7#Aü### [# M## ÷#Ö#v#g#ó#©# #/º#>#°#!”# # # $# ö# >#!##A# ÿÿ"åæ O Navio dos MortosÄB"ˆ A# ÿÿ"åæ ÄB" A#ÿÿ"åæ Joaquim Paço D’ArcosÄB"Ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A#0Ÿ¦ÿÿ"åæ A publicação de O Navio dos Mortos, extraído do livro O Navio dos Mortos e Outras Novelas, foi gentilmente autorizada pelos herdeiros de Joaquim Paço D’Arcos.ÄB"Ì Ì „ `  ô A# ÿÿ"åæ ÄB" A#AHÿÿ"åæ © 1996, Herdeiros de Joaquim Paço D’Arcos e Parque EXPO 98. S.A.ÄB"ð ¨   A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ISBN 972-8127-70-7ÄB"ˆ A#ÿÿ"åæ Lisboa, Janeiro de 1997ÄB"< A# ÿÿ"åæ ÄB" A#")ÿÿ"åæ Versão para dispositivos móveis: ÄB"`   A#$ÿÿ"åæ 2009, Instituto Camões, I.P.ÄB"ð A# ÿÿ"åæ ÄB" A#  ÿÿ"åæ ***ÄB"l A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ O NAVIO DOS MORTOSÄB"ˆ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#wºÁÿÿ"åæ Estávamos todos sentados em volta da mesa grande da sala de estar. Miss Mann, a simpática e inteligente hospedeira, havia muito que nos servira o chá; já todos, até, o havíamos tomado, mas parecia que não tínhamos pressa de recolher aos nossos quartos, apesar de ir muito passada a meia-noite. Sentíamo-nos bem naquela sala confortável, cujo agasalho nos prendia, e a conversação, embora um pouco arrastada, também não parecia aborrecer-nos.ÄB"+Ì ð  < Ì ð Ì `  Ì ô  ¨  ¨ ˆ ø A#4®µÿÿ"åæ Tínhamos assistido, no Shakespeare Memorial Theatre, à representação, de «António e Cleópatra», e a conversa girava à volta do interesse da peça e dos méritos do desempenho.ÄB"  ð ¨ Ì `  Œ A#zÅÌÿÿ"åæ Eu fora para a pequena cidade do Warwickshire descansar das fadigas de duas tumultuosas semanas de trabalho em Londres; como de outras vezes, hospedara-me na pequena pousada que o British Council mantém aberta na cidade natal de Shakespeare, para os escritores, artistas e estudiosos que demandam as ilhas Britânicas e apreciam repousar dos solavancos das viagens e das lides profissionais em ambiente de arte, quieto, e em paisagem suave e acolhedora.ÄB"+  Ì  <   ` ð ð ð Ì Ì ¬ ð Ì ¬ A#ïš¡$ÿÿ"åæ Estava ali hospedado havia uma semana. Trazia em mãos os primeiros capítulos dum romance que começara a escrever em Vichy e de que os trabalhos e a agitação de Londres me tinham completamente afastado. Naquela atmosfera, singularmente propícia ao labor literário, tentara afastar o espírito das preocupações oficiais que haviam comandado todos os meus passos londrinos e procurara regressar ao convívio das personagens de ficção que trouxera para o proscénio da obra em começo. Mas a verdade era que a calma do refúgio buscado não me proporcionara a esperada inspiração literária. Em passeios pelos arredores verdes de Stratford, em leituras ligeiras, nas conversas com os companheiros da pousada, vindos dos quatro cantos do mundo, na assistência, após o jantar, aos espectáculos do teatro de Shakespeare, haviam deslizado aqueles dias breves, quase sem ter acrescentado uma linha ao livro que ali me propusera adiantar.ÄB"Z¨  <   „ d < ˆ „ `  „ „ <  Ì ¨ ð  „ ` ` ` <    ¬ Ì   ¨ ` „ ¬ A#eqxÿÿ"åæ Miss Mann troçava dos meus bons propósitos e da indolência que me não deixava efectivá-los. Sentia-me, na verdade, tão indolente como afastado das figuras e da intriga do romance que erguera, vivo, na imaginação e que me surgia, agora, morto, nas páginas brancas que me recusava a escrever. Outras figuras, mais reais e não menos curiosas, prendiam a minha retentiva. ÄB"#¨ Ð  Ì Ì „  ð < ¨ Ì ð ð ¬ A#†øÿÿÿ"åæ Estávamos sentados em volta da mesa, com excepção do professor Hu, que, não tendo ido ao teatro, se mantivera um pouco afastado e preferira, às cadeiras hirtas, a comodidade da poltrona de cabedal. A comodidade da poltrona e o canto de sombra em que nem a luz eléctrica nem as nossas vozes o molestavam. Todos compreendíamos e respeitávamos o seu alheamento e havíamos sempre procurado distraí-lo sem lhe forçarmos a convivência. Se havia homem que tivesse direito ao silêncio e à meditação era aquele. ÄB"2Ì ` ð Ì ¬  <  ¨ ð Ì „ @ ¬ ð ð Ì < <  A#Ó*1Fÿÿ"åæ Mrs. Wharton, que viera de Kansas City preparar uma tese sobre o teatro de Shakespeare, aproveitando a permanência do marido nas ilhas Britânicas em missão menos literária e também menos pacífica, era a mais ruidosa do grupo, Ela, Mademoiselle Jacqueline Malet, que se licenciara na Sorbonne em filologia germânica e andava pela Inglaterra a concluir cursos de especialização –, as duas e a nossa hospedeira constituíam a minoria feminina no grupo de nove que naquela noite formávamos, Os restantes eram o professor Fawzi, um negro sudanês que ensinava História na Universidade de Khartoum e em cujas veias corria, quente e escuro, o sangue dos dervixes que haviam morto o general Gordon, abandonado por Gladstone à fúria dos senhores do deserto e chorado, em pranto, pela rainha Vitória; o doutor Nojalkhane, catedrático de Química na Universidade de Teerão e que o governo do Xá incumbira de vir à Grã-Bretanha pôr em dia os conhecimentos persas em matéria de transformação dos carburantes; o major Wharton, que trouxera de Kansas City a ideia arreigada e indiscretamente apregoada de que a Inglaterra já não era a sede dum império, mas um porta-aviões descomunal a meio caminho entre Washington e Moscovo; Sophocles Panayetis, o poeta grego que fora, na última guerra, o cantor da resistência heróica do seu país aos invasores ítalo e germânico; o doutor Hu e eu. Até ao dia anterior havíamos tido por companheiros alguns ingleses, artistas, professores e funcionários do British Council; na manhã seguinte outros viriam, pois a Pousada de Stratfor-on-Avon tinha a porta sempre aberta aos visitantes. Mas naquela noite, por curioso acaso, com excepção da hospedeira, só estrangeiros, vindos dos mais opostos pontos do globo, se encontravam reunidos naquele recanto tranquilo e abrigado da Meca espiritual do mundo anglo-saxónico. ÄB"¯¨  d Ì „ ¨ ` ¨  < Ì ô < ð ð Ð ô  ð ¨ Ì Ð  ð  ¨  ô ô ` ` ¨ ¨ ð ˆ ¨ < ð   d ð  ` „  Ð ð „  „ Ì ð d  < < ¨  Ì < <  ¨  Ì ð ð Ì @ A#yÂÉÿÿ"åæ Na cidade, nas casas, no teatro, nas igrejas, em toda a parte se respirava uma atmosfera shakespeareana; desde a casa de madeira de Henley Street, onde o semideus do teatro dramático viu a luz em dia de S. Jorge, até à Igreja da Santíssima Trindade, em que jaz enterrado, em todos os lugares, por todos os caminhos, o mesmo ambiente evocativo nos rodeava, quase nos tornando também em personagens dos dramas evocados no tablado do Memoriai Theatre. ÄB"-` ð ` „ ¨ ô ð  ¨ Ð  ô ¨ ð    ˆ A#dmt4ÿÿ"åæ E, pelo menos, um de nós, naquele grupo heterogéneo, sofria as amarguras dum drama estranho e cruel que bem podia ter servido de entrecho a uma peça do filho genial de Mary Arden, mulher de John Shakespeare. Todos respeitávamos o profundo acabrunhamento do doutor Hu; sabíamos que ele vivia os dias mais angustiosos da existência, bem experimentada, aliás, durante os longos anos da guerra em que o invasor nipónico retalhara a sua pátria com as armas modernas dos samurais; compreendíamos que ele tivesse ido ali buscar, na quietação do lugar e na companhia discreta de gente absolutamente alheia ao caso trágico que tão de perto o feria, repouso para o espírito cansado e paz para a alma magoada. Não queríamos envolvê-lo no debate, mas não desejávamos, igualmente, dar-lhe a impressão de que o olvidávamos. Ele, em sua susceptibilidade, poderia supô-lo; nós, porém, mesmo que quiséssemos, não nos conseguiríamos alhear da sua presença silenciosa e de tudo que em arrepio ela trazia aos nossos espíritos. Por detrás do seu vulto e rosto indecifrável erguia-se outro vulto e a figura geométrica, de linhas duras, duma forca. O Evening Standard publicara a notícia de que o Conselho Privado recusara o último apelo e de que o «chinês assassino» -como os jornais o alcunhavam seria enforcado na manhã seguinte. O Dr. Hu estivera toda a tarde ausente. Certamente fora despedir-se do filho. ÄB"‚„ ¨  `   ¨ ˆ ` ð „ `   Ì   ð  ¨ < Ì ð ¨ ô  Ì  ` ð ` „ ¨ ` ð   ð Ð ð ð ð ð Ì „ `   ` ô `  A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#Cëò0ÿÿ"åæ Quando cheguei a Stratford, Miss Mann advertiu-me da identidade do sábio chinês que tinha por companheiro na pousada, não fosse eu, desprevenido, referir-me ao assunto que apaixonara a opinião inglesa -tão afeiçoada aos crimes satânicos -em termos que molestassem o bom do homem. Mantive, por isso, cautelosa linha de discrição; procurava até afastar-lhe da vista os jornais que noticiavam os últimos dias de vida do filho, os passos dos advogados e os seus próprios passos. Mas, com surpresa minha, foi ele quem se aproximou de mim. Os ingleses, que faziam da tragédia do filho motivo de venda dos jornais, como o derby ou os desafios de râguebi entre as equipas célebres, o professor sudanês ou o casal americano, nenhuns pontos de contacto tinham com a sua alma oriental. Eu era português e, por estranho que pareça, o chinês culto vê num português compreensivo um ente do seu mundo e não o estrangeiro distante; eu era romancista e, portanto, um homem atento a todas as arritmias do coração humano; e ele logo o percebeu às primeiras palavras que trocámos; em anos afastados eu vivera em Macau e de Macau partira a sua nora para a viagem de núpcias tragicamente finda. Não lhe disse que até a conhecera para quê lacerar inutilmente a ferida que sangrava?ÄB"xÌ ` ¨ ð  Ì ` Ð Ð ` Ì ð  Ì „ < Ð ð „  Ð < Ì „ < `    Ì   „ „ ð ¨ < ð `  Ì  „ d Ì „ ð  A#:ÇÎÿÿ"åæ Todos esses motivos pesaram, porém, na preferência com que logo no dia seguinte ao da minha chegada me começou a distinguir. E foi ele próprio quem me falou da tragédia em que o filho se envolvera. ÄB"ð  ¨ ¨  ð ¨ A#™BIÿÿ"åæ Apresentado pelos advogados de defesa o último recurso da sentença, mais nenhuns passos podia ele dar em benefício do réu que a Justiça inglesa empurrava inexoravelmente para a forca. Havia ido para aquele recanto de Stratford, onde em horas mais felizes repousara dos trabalhos, aguardar a decisão final. Agora o Evening Standard noticiava que o pedido de clemência não fora atendido. K. W. Hu (só uma inicial marcava a diversidade dos destinos, pois o pai inscrevera-se no livro da pousada como K. Y. Hu) -K. W. Hu seria enforcado na prisão de Pentonville na manhã seguinte. ÄB"7Ì    „ „ ð ð ¨ ` „ ` „ ð ` „ Ð „  ð <  h A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#)ÿÿ"åæ O Dr. Hu (K. Y., nada de confusões com o condenado) era um sábio eminente da China moderna. Ensinava História, Literatura e Filosofia tauísta na Univerdade de Hangchow. A verdade era que o pouso exacto da universidade não estava bem esclarecido qual fosse, pois que desde 37, em que os Japoneses irromperam pela Manchúria, até 45, ano em que a bomba atómica lhes liquidou, pelo menos por uns tempos, os propósitos expansionistas, a universidade, com todo o corpo docente, material e instrumentos transportáveis e cerca de dois milhares de alunos, andou em bolandas do Kwei-Chow para o Kuang-Si, do Kuang-Si para o Kiang-Si e desta província finalmente para o Chekiang, onde os Nipónicos não conseguiram chegar nem atingi-la. Transformou-se dessa forma a universidade em símbolo errante e glorioso da resistência duma cultura e duma pátria dezenas de vezes seculares ao invasor semibárbaro, que estribava a sua superioridade na adopção hábil de todos os instrumentos de chacina que o Ocidente cristão descobrira e elevara a padrões de progresso.ÄB"g` ¨ ` <  Ð „ < ¨ Ì ð Ì Ì Ì ð ô d ` „  „ ð  ¨ ¨ ` „ ô ð < ô ¨ ð Ð ð ð d   Ð  h A#ÚGN!ÿÿ"åæ Terminada a guerra com a queda dos impérios Germânico e Nipónico, o Dr. Hu, cansado das migrações de milhares de quilómetros na cauda dos exércitos em retirada, fatigado do papel de resistente n.º I das élites do seu país, aceitou o convite do Governo inglês para ir leccionar em universidades britânicas e completar nos arquivos do British Museum as investigações, em que andava havia muito empenhado, sobre o papel dos Europeus na China nos séculos XVI a XVIII. Essas investigações levaram-no, inevitavelmente, ao contacto com os Portugueses, cuja crónica, nem sempre lisonjeira, preenchia parte da história das relações sino-ocidentais através dos fastos e da decadência da Cidade do Santo Nome de Deus de Macau. E agora ali estava eu a seu lado, representante desses portugueses e até, para mais, como eles, antigo habitante de Macau.ÄB"S` ð  ð `  Ð Ì  „ Ð ¨ „ d ð ð  ` ¬ ð ˆ ¨  Ì ð <  ` „ ¨  Ì  D A#|ÎÕÿÿ"åæ Muito conversámos naquelas tardes quietas. O professor Hu, ao verificar que a guerra não findara e que o seu país continuava campo de batalha, travada já não contra estrangeiros mas entre nacionais, preferiu prolongar sem termo fixo a estada na Grã-Bretanha e manter-se afastado da nova pugna entre um credo que se extinguia na exaustação da luta demorada e outro que despontava, atraindo as massas com as promessas que ele, mestre da História, sabia serem vãs.ÄB"+¨ Ì  ð ð ô   ¨ ` ð ð  ô „ ð ¨ A#Ÿ\cÿÿ"åæ Na China só lhe restava um ente querido: o filho. Durante a década quase inteira de guerra mantivera-o nos Estados Unidos a educar. Poupara-o à funda devastação que deixara exangue a terra da China; eximira-o às suas andanças infindáveis em comboios absurdos, em juncos que ameaçavam afundar-se nos rios, em caravanas metralhadas pelos aviões do Sol Nascente e dizimador. Em 45 o filho completara em Yale o curso de Direito; podia regressar à pátria supostamente pacificada, com o nome aureolado do pai e a bagagem de limitada cultura que as universidades yankees exportam com a Coca-cola e a televisão.ÄB":¨    ð ð Ì Ì < ð ð ˆ Ì ð  „ ˆ ð Ì Ì ð ð  h A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#µ´»ÿÿ"åæ O Dr. Hu (K. W., nada de confusões com o velho professor de História e Filosofia, com o insigne comentador da poesia do imperador Shih Tsun, que fez morrer no cárcere os embaixadores portugueses) -o Dr. Hu, ao regressar dos Estados Unidos, encontrou-se em Hong Kong com o pai, que ali o esperava antes de tomar o avião que o conduziria a Inglaterra. Oferecia-se-lhe na nova China um futuro promissor; o nome paterno ser-lhe-ia credencial inestimável; e ele tinha vinte e poucos anos e o prestígio dum diploma universitário americano considerado do melhor quilate. Começou a trabalhar no foro de Hong Kong, como ajudante, para assuntos chineses, dum advogado de nomeada na colónia britânica. ÄB"D` ô < ` < ð Ð ð ` ð Ì  ¨ Ì < „ ô ` < ô < ô ð ¨ < „  A#ûÉÐKÿÿ"åæ Kêng Wei, nomes a que correspondiam as iniciais que viriam a celebrizar-se tristemente em Inglaterra, fora companheiro de estudos, em Yale, duma rapariga da sua raça, A-lin, filha dum armador rico do Sul da China, Siu-Chan, que depois de reformado das lides mercantis se estabelecera em Macau, numa bela casa apalaçada que adquiriu, sobranceira à Praia Grande, Ainda conheci A-lin em garota e convivi muito com o pai, grande autoridade em matéria de arte chinesa e coleccionador afamado. Siu-Chan era já no meu tempo um homem idoso, possuidor daquela sabedoria filosófica e tolerante cepticismo que fazem dum chinês educado um ser de requinte e de agradabilíssimo convívio. Fora durante longos, incontáveis anos, o proprietário dum navio célebre em toda a costa da China: o navio dos mortos. Era este um velho calhambeque que, por esquecimento, continuava a flutuar desde o século XIX, em que tomara formas, ao tempo audazes, de navio a vapor. Quando Siu-Chan o adquiriu já andava no tráfego dos mortos; Siu-Chan comprou o navio e o negócio; manteve-se senhor dum e doutro por cerca de quarenta anos, ao fim dos quais achou que a invasão das ideias modernas, com o desrespeito que traz pelos velhos costumes e regras da religião, começava a tornar a empresa menos rendosa. Na verdade, os Chineses já não tinham, muitos deles, o escrúpulo antigo de voltar aos seus penates depois de mortos. O navio já não trazia carregamentos completos. Siu-Chan começou a espaçar as viagens e a alterná-las com derrotas para o golfo Pérsico, onde o barco recolhia carga mais leve mas mais lucrativa, a do ópio, que em contrabando se escoava depois para o mar sem limites que é a terra da China. Mas esse comércio era mais arriscado e Siu-Chan, enriquecido já com o velho tráfego dos mortos, vendeu o navio e o negócio, juntos, como os havia comprado, e foi para o oásis tranquilo de Macau viver os anos que lhe restavam e ordenar a preciosa colecção de arte, encanto dos seus olhos e devoção do seu espírito.ÄB"¼ô   ¨ ð    <  „ ð  Ì  Ì „  ð „ ð ¨ Ì Ð „ Ð ¬  ¨ ¨   ð „ ð ô   ð ¨ „ „   ¨ Ì  „ Ì < ¨ ¨  `  Ì ô ô ð ¨   Ì  ô ¨ ð ¨  „ Ì   Ì  D A#$pw+ÿÿ"åæ E vi-o sempre marcado pela legenda do tráfego dos mortos. Desde Cuba, onde substituíram os negros nas plantações de açúcar, às ilhas do Pacífico e do Índico, onde são pescadores e artífices, pela costa ocidental das Américas até à Califórnia, onde constituem colónia rica e numerosa, por infindáveis paragens se espraiam os chineses, obreiros e fugidos à penúria do país natal. A toda a parte chegam, garotos ainda, homens feitos, anciães, Mas depois têm de voltar; se não em vida, pelo menos na morte. Porque o indivíduo, por um conceito confucionista, só pode viver em paz espiritual, aquém e além túmulo, desde que, donde quer que morra, seja transportado para os seus penates. É nestes que todas as primaveras, pela altura da terceira lua do ano, se faz a cerimónia cultual dos antepassados. O ente humano, por muito pobre e humilde que seja neste mundo, é rico de duas almas: uma que fica materializada na terra, ligada ao cadáver, e outra, a alma etérea, oposta à alma material, que se desprende do corpo para ingressar no cosmos. É à primeira que se presta culto e é ela que mantém, mercê desse culto, a continuidade da família.ÄB"l¨  ` ¨ `   ô ð Ì ð < ô ð   Ì ` ¨ ¨ ¨  ¨ ¨ „ ¨ „ „ < Ì ð ` ð  Ì ð < < ` ð „ Ì  Œ A#åqx!ÿÿ"åæ Foram as milhentas almas, recolhidas com os milhentos cadáveres, ao longo de inúmeros portos do Índico e do Pacífico, que fizeram a fortuna do velho Siu-Chan. Todos os anos as sociedades lutuosas, que velam pela manutenção do culto dos mortos, lhe fretavam o navio; o valor do frete dependia do número de caixões cujo transporte previamente se assegurara. Por alturas de Março, o navio abalava de Hong Kong; cerca do fim do ano regressava com o seu valioso carregamento de ataúdes; escalava também Macau, onde uma tarde sombria de trovoada o vi aproximar-se do porto lodoso. Os esquifes eram remetidos das cidades do litoral para os seus vários destinos na vastidão da China. E quando a terceira lua voltava a erguer-se no seu giro eterno, os mortos estavam em paz e os vivos podiam celebrar junto deles as cerimónias de Chen-Meng, que a uns e outros garantiam a bem-aventurança. ÄB"S„ Ì  Ì ¨ ¨ Ì ` <  ð  „ ¨ „ ¨ ` < `   ð  Ì < ¨ ¨ ¨ „ Ì Ì ð ¬ A#jˆÿÿ"åæ Na China devastada, no meu tempo e hoje ainda, pelas guerras civis e por pirataria infrene, era voz corrente que o navio dos mortos trazia sempre, nos porões cavernosos, além da carga inviolável, outra que à sombra dessa se escondia: a de armas de guerra, acomodadas dentro dos caixões, como os cadáveres, para uso de vivos mais interessados no saque do que no culto beatífico de Chen-Meng. ÄB"(¨ „   „ ˆ „ < Ì ¬ ô Ì  ð ô  Œ A#¸¾Åÿÿ"åæ Siu-Chan negou sempre que o seu navio jamais se tivesse prestado a semelhante comércio; ele era o homem pacífico por excelência e no aspecto e nos propósitos ninguém o poderia supor envolvido no sinistro tráfego que se alimentava da guerra e do sangue. Os carregamentos de ópio eram já de outro teor; o néctar da papoila dá aos mortais, ainda em vida, a felicidade celeste; estava na ordem das coisas que quem consagrara a labuta duma vida inteira a redimir de fundos, restituindo-os aos seus penates, se dedicasse, quando o negócio fraquejava, a dar aos vivos uma pequena amostra da extasiada ventura que os esperava quando viessem, arrumados nos esquifes, pelo mar em fora, no navio quase fantasma, ÄB"AÌ Ì ô „ ð ` <   Ì ` ð   „  ð <  Ì  Ì ` ð Ì  h A#Èþÿÿ"åæ Mas, duma forma ou doutra, Siu-Chan acumulou considerável fortuna, de que, por sua morte, A-lin, a filha preferida, o fruto dos amores tardios, seria a principal herdeira. Em A-lin, na sua educação, no seu futuro, colocou ele as últimas esperanças e ambições duma vida que já atingira todas as metas e só na ventura da filha querida se poderia rever. Conheci A-lin andaria ela pelos quinze anos, quando a garota graciosa, enlevo da casa inteira, mimo e regalo das diversas esposas de Siu-Chan, tomava o vulto da mulher que viria a ser. Já se interessava pelas coisas de arte em cujo amor o pai desveladamente a iniciara; tinha certa cultura ocidental e esmerada educação sínica, como fruto apurado que era do encontro de duas civilizações na velha praia portuguesa.ÄB"F¨ d    ¨ ¨ `  ¨  ` ` ð  ð Ì < Ì  Ì < ¨  Ì   ¨ A#¯›¢ÿÿ"åæ Quando A-lin atingiu os dezoito anos o pai acompanhou-a aos Estados Unidos para aí prosseguir, numa universidade, os estudos encetados em Macau e Hong Kong. Voltou o velho Siu-Chan sozinho para o Oriente e em ter-se apartado da filha fez o maior sacrifício da longa vida. Vi-o uma vez ainda no seu regresso, antes de, por minha vez, abalar daquelas paragens. Em poucos meses envelhecera anos. Mas o sonho de fazer da filha uma mulher moderna, instruída e perfeita, expoente de cultura, símbolo de encantos e virtudes, era a obsessão do seu espírito de artista que a vida desterrara para o tráfego dos cadáveres, para o contrabando de armas, para a candonga do ópio. ÄB"?< ˆ ` ¨  „  Ì ð Ì Ì Ì ¨ „  ð Ð ô ð     ð ˆ A#ô®µ#ÿÿ"åæ A Praia Grande de Macau perdeu para ele a magia de recanto do céu esquecido na terra desde que na casa espaçosa deixou de cirandar o vulto leve de A-lin. Os anos que ainda viveu foram os anos de espera, envenenada pela separação absoluta da filha a que o condenou o alastrar da guerra ao Extremo Oriente. Pôde sempre enviar a A-lin, por transferência telegráfica, o dinheiro necessário ao seu sustento e educação. Entre os dois abria-se, porém, como vasto fosso, um oceano inteiro, campo de batalhas onde nem já sequer podia navegar tranquilo o velho navio dos mortos. Pouco a pouco foi enlanguescendo, na abastança e na paz daquele oásis de quietude em que Macau se tornou nos anos cruentos da guerra. Mas A-lin, licenciada finalmente em Filosofia e Letras pela Universidade de Yale, ainda lhe pôde beijar os olhos quase cerrados na tarde em que ele morreu, feliz de a ver regressada e com o sonho da sua velhice a tomar corpo de realidade.ÄB"X< ¨ Ì <  ð  ¨  ð ¨ Ì d < ð < Ì „  Ð Ì „ ð „ ` Ì  „ Ì Ì ¨ ` Ì ð „ A#I  ÿÿ"åæ A rapariga partilhou com dois irmãos, filhos de outras mães, a fortuna que desmedidamente se dilatara com a acção do tempo e o acerto cauteloso do dono. Foi por essa altura que o filho do professor Hu, Kêng Wei, começou a advogar nos tribunais de Hong Kong. ÄB" ` ¬ ¨ `  Ì ¨ ô ` A#«‹’ÿÿ"åæ K. W. Hu fora companheiro de A-lin na universidade norte-americana em que ambos se formaram. Havia em Yale uma dezena de estudantes chineses; a raça, a língua, a educação conservavam-nos unidos, como bloco fechado à penetração da ingénua alma yankee. Tudo aqueles espíritos, ávidos de saber e de compreender, assimilavam, mas nada concediam, faceta alguma da alma multissecular abriam ao olhar confiado dos Americanos. Eram fortes porque eram reservados e porque representavam um enigma no mundo incerto que um estadista inválido julgou conduzir pelos caminhos da candura, como se não tivesse sido paga só com sangue e sofrimentos a custosa vitória. ÄB"?ð ô ð ¨ `  ` ð ¨ Ð ð ð ¨ ð ð < ` < Ì ð ¨ ð „ ô  D A#4°·/ÿÿ"åæ Do grupo fechado, Kêng Wei era o mais reservado e portanto o mais forte. A filha do milionário e o filho do professor mantiveram, no decorrer dos cursos, uma camaradagem estreita, que ora se inclinava para o campo amoroso, ora recuava para o terreno da especulação intelectual. O filho do professor Hu não tinha fortuna; e por detrás de si via as multidões de miseráveis que as fomes, as pestes, as inundações e as chacinas ceifam no seu país com a implacabilidade cronométrica das coisas que têm de acontecer como o girar dos ponteiros no relógio do tempo. Não se resignava a essa implacabilidade e cria que os novos conceitos de justiça social e de planificação económica, impostos pela chamada ditadura do proletariado, poderiam alterar no mundo, e especialmente entre o seu povo, a ordem de coisas que tornava a miséria estigma obrigatório de todos menos de alguns. A-lin pertencia ao reduzido número destes últimos; ele considerava-se defensor daqueles. Ia procurando, lentamente, atraí-la para o campo das suas ideias. Ela balanceava entre as influências do epicurismo paterno e do ambiente em que fora criada e as correntes fortes que varriam o mundo saído da guerra e mergulhado na confusão.ÄB"v¨  `  Ì `  „ Ì  <  Ì ¬ Ì ¨ Ì ô Ì  Ì „ Ì „ ¬ < ô „ ð „ Ì „  ¨  Ì ô < „ Ì < <  < `   D A#¿Ûâÿÿ"åæ Transferidos do cenário universitário para a vida prática. A-lin consagrou-se à administração da fortuna, para que revelou grande tino, e à preparação de erudito catálogo da preciosa colecção de arte de que fora a herdeira e de que era a continuadora zelosa. Kêng Wei afirmou-se advogado seguro na cidade de que os Ingleses fizeram o maior entreposto comercial do Oriente. Porque se fixou em Hong Kong, tão perto de Macau? Que móbil o induziu a escolher aquela comarca, entre tantas que a vasta China lhe oferecia? Seria o amor de A-lin, que da outra banda do rio das Pérolas, na quieta Macau, aguardava o senhor e dono a quem faria a dádiva da virgindade e da fortuna? ou seria a cobiça dos bens alheios quase ao alcance da mão? ÄB"F< „  „  „  ô <   „ ¨ ð ¨ Ì „ Ì „   „ Ì  Ì < Ì ´ A#P% ÿÿ"åæ Cerca de dois anos decorridos sobre o regresso dos dois ao Oriente celebrava-se em Macau, entre o estralejar dos pau-chões e o ressoar forte dos gongos, após a troca dos presentes conduzidos em palanquins, o casamento de A-lin, a filha do milionário, com Kêng Wei, o filho do filósofo.ÄB" ð <  Ì ð < ¨  `  D A#¨}„ÿÿ"åæ O professor Hu já estava, a esse tempo, havia cerca também de dois anos, em Inglaterra. Mandou ao filho querido e à nova filha a mensagem do seu aplauso e da sua ternura. E juntamente com o presente de núpcias, enviou -impenitente erudito -uma poesia copiada pelo seu punho e que o poeta Wang-Feng-Yüan compusera no sécullo XII da nossa era, intitulada «A terceira lua», apropriada portanto à data em que o casamento ia ter lugar. À versão original chinesa juntou a tradução inglesa, que ele próprio compusera numa tarde de inspiração, em Stratford, onde meses mais tarde voltaria dominado por pensamentos menos poéticos e menos suaves:ÄB"<Ì < < Ì ` ð   „  ð Ì ` „ ` „ < ¨ „ ð ¨ Ì ð Ô A# ÿÿ"åæ ÄB" A#'.ÿÿ"åæ «In May flowers fade, and others come ÄB"„  ° A#!(ÿÿ"åæ To bloom among the leaves ... » ÄB" H A# ÿÿ"åæ ÄB" A#Âæíÿÿ"åæ Os noivos vieram em lua-de-mel para a Europa; não escolheram a via marítima, demasiado longa nesta era em que os «Constellations» em poucas horas ligam os continentes e sobrevoam os mundos. Em quatro dias fizeram o trajecto de Hong Kong a Londres, em cujo aeródromo de Northolt o velho filósofo os aguardava, para os acompanhar a Saint James Court, onde lhes reservara quartos. Depressa os antigos estudantes de Yale, senhores do idioma inglês como o próprio, se familiarizaram com a cidade tentacular. O pai de Kêng Wei, depois de instalar os noivos, achou não dever perturbar-lhes o suposto idílio com a sua presença e regressou à tranquilidade dos trabalhos que nessa altura prosseguia na veneranda e vetusta Universidade de St. Andrews. ÄB"F¬  ¨ ð ¨ ô ¨  ¨ <  Ì Ì ¨ ð ð < ¨ ¨ ¨   `  Ì Ì   A#,–ÿÿ"åæ A-lin e o marido ficaram sozinhos na capital que mais de oito milhões de almas habitavam, vasto oceano humano em que ambos vieram a soçobrar. ÄB"` ð ` < ð  h A#«Œ“ÿÿ"åæ Como? Porquê? Ambos nela perderam a vida, a filha do armador às mãos do marido, ele às mãos do carrasco. Mas porquê? Qual o móbil exacto do crime? que impulsos conduziram Kêng Wei ao assassínio? qual a versão exacta: a sua ou a do acusador público, a sua ou a da acusação particular? Só nas camadas recônditas do seu ser psíquico um escalpelizador de almas poderia encontrar os resíduos da verdade. Mas a Justiça não tem que escalpelizar almas; basta-lhe juntar as provas dos crimes e apertar o nó da corda aos enforcados. Kêng Wei contou a sua «verdade»; mas quis fortalecê-la com tais razões que ninguém, a não ser talvez o próprio pai, o acreditou.ÄB"?` Ì ¨ ð Ì   „ ô ð ¨   <   Ì ¨ ð ¨ Ì „ ¨   ° A#fv}ÿÿ"åæ A reconstituição da tragédia e dos seus antecedentes leva-nos a supor que o par dos recém-casados viveu em Londres algumas semanas de aparente felicidade; A-lin queria demorar-se em Inglaterra para esclarecer com os peritos do British Museum, os pontos ainda obscuros do catálogo que projectava consagrar à valiosa colecção de arte chinesa, e para vigiar a sua publicação. ÄB"&ð < ¨ ¨ ¨ ¨ Ð ¨ „ < `  ` ð  ° A#Ó)0ÿÿ"åæ Ela deixou, nos meios em que conviveu –, o círculo restrito dos conservadores do museu, de gente relacionada com os problemas de arte, a roda dos seus compatriotas da Embaixada e de ingleses ligados às coisas do Extremo Oriente -a lembrança duma rapariga singularmente inteligente, muito agradável no trato, graciosa no vestir, em que a tradição do traje chinês se conciliava audaciosamente com as linhas do corte europeu -graciosa, mas não bonita. O marido produziu a impressão dum homem concentrado e enigmático, como muitos da sua raça, aliás. Pouco conversador, revelava, todavia, quando se envolvia em debates, certa cultura e vigor na argumentação. Não escondeu, em raras conversas, as suas simpatias marxistas, opostas ao usufruto de tantos bens como aqueles que A-lin, pelo matrimónio, lhe trouxera. ÄB"Nð ô  Ì Ì  < ð „  ð  ¨ Ð ð Ì ` ` ¬ ¨   Ì Ì ¨  ð  ð Ð  h A#=ÑØ/ÿÿ"åæ Uma manhã, Kêng Wei, mostrando-se muito alarmado, informou a gerência do hotel do desaparecimento da mulher; telefonou para o Consulado do seu país, transmitindo aviso igual; o cônsul aconselhou-o a que fizesse imediata comunicação à Polícia e ofereceu-lhe a assistência dum funcionário do consulado para o acompanhar nos passos que se impunham, Kêng Wei foi à sede da Scotland Yard, acompanhado por um empregado do hotel e pelo representante do consulado, dar o alarme sobre o desaparecimento de A-lin. Não pôde oferecer pormenores; a mulher saíra para compras na véspera à tarde e não voltara; ele telefonara para todas as pessoas conhecidas e não lhe descobrira o rastro. Da Scotland Yard telefonaram, por sua vez, para os hospitais, para a morgue, para as esquadras de Polícia, para todos os sítios onde a vítima dum acidente ou dum incidente poderia ter ido parar. Londres estava singularmente sossegada: os mortos identificados, os doentes, os presos devidamente registados em fichas onde não havia nomes nem traços de mulher chinesa. A Scotland Yard começou a mover-se, lentamente, e encetou, com aquele homem pequeno e musculoso, de expressão cerrada, a luta de argúcias, o diálogo obstinado que havia de o conduzir à forca.ÄB"vÐ ð ð   ð ð  < ¨ ð ð  ` ð  ¨ ¨ ` ¨ „ ` ` ð < ¨ Ð „  Ì ¨ „ ô Ì ` ˆ „ Ì  „ < „ < ð  „ Ø A#Îÿÿ"åæ Verificado oficialmente o desaparecimento, a Polícia iniciou a sua investigação pelo local que A-lin habitava. Do que descobriu e só mais tarde deu conta, destacou, como provas de suspeição, os testamentos, de recente data, pelos quais a filha de Siu-Chan e o marido se indicavam como herdeiros universais um do outro, e as cadernetas de depósitos bancários elevadíssimos, em nome da desaparecida. Eram documentos vulgares em mão dum casal opulento; mas ajudavam a compreender o clima em que aquelas duas figuras se moviam. E porque guardara Kêng Wei numa lata de tabaco para cachimbo o celebrado colar de pérolas que o sogro comprara para a filha quando vendera o navio dos mortos e trespassara o negócio –, jóia admirável que os peritos, chamados a depor, avaliaram em setenta mil libras? ÄB"K„ ¨ ¨ Ð ð ` `  Ì ð Ì ð < Ì ¨ ¨ < ` „ Ì Ì „ ¨ Ì ð ¨   `   A#I ÿÿ"åæ Que havia de estranho em que um marido cuidadoso escondesse na sua bagagem as jóias da mulher? Mas porque se apressara ele a induzi-la, tão pouco tempo decorrido sobre as núpcias, a nomeá-lo herdeiro dos inúmeros bens a troco dos nenhuns que lhe legaria? ÄB"ð ¬ ð Ì  „ ð ð „  h A#¢fm>ÿÿ"åæ Os investigadores não encontraram qualquer motivo que explicasse a fuga de A-lin ao marido, não se inclinaram para a hipótese de rapto e, com aquele instinto seguro que tornou famosa em todo o mundo a organização a que pertenciam, logo penderam para a ideia dum homicídio. Em três ou quatro dias ouviram diversos depoimentos, os da meia dúzia de pessoas que podiam lançar alguma luz sobre o viver da desaparecida após a sua chegada à Grã-Bretanha e sobre os antecedentes do casal. Desde a primeira hora, sem o revelar, concentraram todas as atenções nos actos e desígnios do homem impenetrável, que não procurava despistá-los caindo no engano fácil de lhes apontar falsas veredas, mas que nada também lhes revelava do inescrutável diálogo que mantivera com A-lin desde os bancos da universidade, à noite de núpcias em Repulse Bay, após a curta travessia no ferry de Macau para Hong Kong, e à última refeição na sala de jantar recatada de Saint James Court. Anos inteiros de camaradagem estudantina, de namoro hesitante, de noivado, de vida finalmente em comum; tendências dum e doutro, desinteligências possíveis, entendimento ou desapontamento carnal, o amor da arte, nela, o amor da acção, nele, a tolerância, nela, a intolerância, nele -tudo era mistério que ele não revelava. A Polícia que investigasse e cumprisse O seu dever; fora ele, estrangeiro no país, que se dirigira às autoridades, pedindo auxílio; competia a estas restituir-lhe a mulher ou desvendar o enigma da sua ausência, não era a ele que cabia instruí-las sobre aspectos do seu viver e do viver de A-lin, que nada tinham com o caso concreto do desaparecimento dela. ÄB"›ô Ì ` <  ð Ì ð  Ì   Ì ð  Ð < ð  Ì < ˆ ô  < Ì  Ì ð „ Ì Ì Ì ð ¨ < <  „ „ ` Ì   ` ¨ ¨ ¨ Ì ¨ Ð Ì ` Ì ð ð Ì < ¨ `   A#™BIÿÿ"åæ Ao quarto dia das investigações os agentes da Scotland Yard encarregados do caso ouviram o depoimento duma pessoa que se apresentou voluntariamente, e com o maior sigilo, para prestar alguns esclarecimentos que a sua consciência não lhe permitia esconder. Tudo isso se revelou mais tarde, no decorrer do julgamento. Tratava-se de Mr. Brown, o mais célebre perito do British Museum em matéria de porcelanas do Oriente, a cuja autoridade A-lin se encostara para a preparação do catálogo que começara a elaborar, ainda garota, com o pai, e por cuja publicação tanto se empenhava. ÄB"7d Ì  „  ` ¨ ð < ð „ < ¨  ð    ` ¨ ð  Œ A#?Ùà/ÿÿ"åæ Mr. Brown estivera ausente de Londres durante uns dias, em serviço da sua especialidade, e fora surpreendido com a leitura, nos jornais, da notícia do desaparecimento da sua cliente e discípula. Na véspera de partir da capital fora procurar A-lin a Saint James Court; subira directamente para a saleta dos aposentos de luxo que o casal chinês ocupava, obedecendo a indicações que a própria A-lin pouco antes lhe dera pelo telefone; mas logo verificou que fora indiscreto, pois que no quarto ao lado daquele em que se introduzira decorria azeda discussão, em que a voz forte de Kêng Wei se sobrepunha à voz suave e harmoniosa que nunca mais se faria escutar, Sem querer, ouviu uma troca de frases duras. O seu conhecimento dos dialectos chineses andava quase a par da sabedoria em matérias de arte, por na pesquisa das porcelanas antigas, seu estudo e classificação, ter gasto, na China, anos sem conta da vida já longa, antes de haver atingido aquele grau de peça também preciosa de museu. E percebeu distintamente o marido de A-lin lançar-lhe, com aspereza, o anátema mais cruel de todos para o espírito sensível duma chinesa crente na perenidade das leis que regem a vida e a morte: -Si, m'hou cong-choi! - Hás-de morrer sem teres caixão!ÄB"v ð  „ `  Ì ð Ì ¬ ¨ Ì ô   ð ˆ <    Ì ¨ ð Ì  ¨ Ì Ì „ < Ì „   ¨ d „ ô ` ô  ð  ð „ ü A#—<Cÿÿ"åæ Mr. Brown escutou o pranto magoado de A-lin, após o insulto que tanto a devia ter ofendido; percebeu que fora muito imprudente em entrar, sem aviso, na antecâmara do casal chinês; desceu novamente ao rés-do-chão e de lá se fez anunciar. Só um quarto de hora depois A-lin o recebeu; estava serena, como se nada de desagradável tivesse ocorrido e como se tenebroso presságio não houvesse caído sobre ela, lançado por uma voz que não era de amante, nem de esposo, e cuja dureza ferira, para além da parede e da porta cerrada, a própria sensibilidade do velho perito inglês. ÄB"7¨ `  Ì Ì Ì Ð  „  ð < ¨ < „ Ì  ¨ „ ˆ    A#ð¤#ÿÿ"åæ O que levava nessa tarde o funcionário do museu à presença da milionária chinesa era o propósito de lhe entregar os orçamentos do custo do catálogo, apresentados pelas várias casas consultadas. Debateu com A-lin preços, condições e vantagens; deixou todos os papéis em seu poder, pendente ainda a decisão duma nova troca de impressões quando voltasse de Manchester, para onde, ao fim da tarde, partia. Ela despediu-se dele com um sorriso triste e afectuoso; recordado da frase dura que escutara, Mr. Brown sentiu-se, ao apertar-lhe a mão, levemente comovido; mas não deixou transparecer qualquer emoção. Afeiçoara-se um pouco a A-lin naquelas semanas de convívio agradável, debruçados ambos sobre as fotografias das peças raras que constituíam a colecção para cujo catálogo ele redigira erudito prefácio. Agora, era perante a fotografia dela, estampada a duas colunas no Daily Graphic, que ligava o fio das suas recordações.ÄB"X¨   ¨  ˆ „ ¨  ¨  „ ¨ ð  ð <  ð Ì ð <  „ ¬ Ì `  Ì Ð ð ð <  d A#PWÿÿ"åæ Com o número do Daily Graphic debaixo do braço, apresentou-se na Scotland Yard.ÄB"  d „ ´ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#@Gÿÿ"åæ -Porque disse a sua mulher que havia de morrer sem ter caixão? ÄB"¨ Ì   A# (ÿÿ"åæ Kêng Wei não pôde, por mais que se esforçasse, perceber como chegara ao conhecimento da Polícia aquele pormenor da discussão travada entre os dois na língua materna. Até aí sentira-se forte e plenamente seguro. A impenetrabilidade tão característica da raça a que pertencia era armadura bastante para a sua protecção. Tinha pela argúcia dos brancos um desdém adquirido no convívio com os camaradas de estudo americanos, de seu natural confiados, e fortalecido no contacto com os ingleses adormentados pelo uísque e quebrados pelo clima e pelo ambiente, que constituem a fauna com que lidara nos tribunais de Hong Kong. Aquela pergunta, feita de chofre, veio alterar todo o equilíbrio psíquico em que alicerçara a sua conduta. O poder de penetração, a força de visualização do contendor que aparentava, mansamente, de auxiliar nas pesquisas em que ele fingia ser o maior interessado, revelaram-se-lhe de súbito, roubando-lhe, instantaneamente, a desmedida confiança. Daí em diante passou a ser um homem cheio de medos. A Polícia deixou-o ir em paz. ÄB"dÌ Ì ð  ¨ Ì ô Ð ô ð  ¬  ô ð ¬ ¨ Ì ` ¨ Ì ¨ ` < „ Ì ¨ Ì ð ð Ì ð ¨  `  ` Ì ð  Œ A#Dïö ÿÿ"åæ Na manhã seguinte o corpo de A-lin apareceu à tona de água no Tamisa, perto da entrada da doca de Santa Catarina, para onde a corrente o arrastou. A autópsia provou a morte por asfixia antes do corpo ter caído ou ter sido lançado ao rio. ÄB"ð  Ì ¨   ¨ Ì @ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#ÿÿ"åæ O professor Hu, chamado por telegrama desolado do filho, acorrera a Londres, logo após o desaparecimento da nora. Transferido, abruptamente, das paragens sidéreas das religiões do Oriente, que constituíam tema do curso especial que fora leccionar a St. Andrews, para o terreno das investigações policiais, nas quais logo se viu envolvido, até como depoente forçado, nenhumas luzes pôde fornecer aos inquiridores; em troca, negras trevas tombaram sobre o seu espírito, ao verificar as suspeições de que o próprio filho era alvo. ÄB"0Ì ð  ¨ ¨ „ „ „  Ì ð ô ð ð   ` ¨  A#gzÿÿ"åæ A versão de Kêng Wei apresentava como mais plausível era a do suicídio da mulher, O resultado da autópsia provou o crime, Explicação para o suicídio não a dava ele, pelo menos clara. Móbil para o crime encontrava-o a Polícia, mesmo sem devassar a intimidade do casal, na ambição cega pela fortuna que não bastava ao marido partilhar e de que pretenderia ser o único possuidor. ÄB"&Ð ô Ì „ ` ¨ ¨ „  ð Ì ¨ „ <  Œ A#u±¸ÿÿ"åæ Ao sétimo dia de pesquisas Kêng Wei foi detido. Não havia ainda uma prova cabal e as presunções da Polícia esbarravam de encontro à sua negativa veemente e ao vigor das suas réplicas sagazes de advogado. Mesmo assim, teve de trocar os aposentos luxuosos de Saint James Court pelo calabouço húmido da Scotland Yard, ali à beirinha do Tamisa, em cujas águas aparecera, preso pelo vestido a um ferro de barcaça, o corpo frio de A-lin. ÄB"(¨ `  ` ð ð ð Ì   `  „  ` ô A#}ÒÙÿÿ"åæ Entregues as investigações, por diligência do professor Hu, que supusera servir o filho e só lhe apressou a perda, a um inspector superior da famosa organização policial, várias vezes ao dia e ao longo da noite o novo inquiridor mandava chamar Kêng Wei à sua presença e encetava o interrogatório com as mesmas, teimosas perguntas: -Porque disse a sua mulher, no dia em que ela desapareceu, que havia de morrer sem ter caixão? Cumpriu bem a promessa. Porque a matou?ÄB"-Ì Ì „ „ ô ˆ ð ¨ <  ô  Ì  ` < ô „ A#?Ùà ÿÿ"åæ E a frase, repetida e martelada aos seus ouvidos, na própria língua -Si, m'hou cong-choi –, passou a persegui-lo, na cela estreita, como se espectros tivessem presenciado o crime e se erguessem, agora, para o acusar.ÄB"ô Ì ð ô Ð Ì ð  ü A#q¡¨ÿÿ"åæ O isolamento foi o seu maior inimigo; toda a força de ânimo com que fingira auxiliar as pesquisas e com que depois tentara fazer frente ao cerco policial, toda ela se esvaiu no silêncio asfixiante da cela, que só os ruídos do rio distantemente quebravam -do rio onde vogara o cadáver de A-lin -e em que repercutia a frase fatídica, pelos investigadores martelada e por ele em obsessão repetida: Si, m'hou cong-choi. ÄB"(ð ` ô Ì ` „ ô ð < Ì ð ð ô ¨  ô A#Bçî ÿÿ"åæ Na quarta noite de interrogatório Kêng Wei fez confissão completa; quebrada a tensão daqueles dias terríveis, voltou logo a estar senhor de si; e ditou ele próprio, sem uma hesitação, o depoimento que havia de o conduzir à forca. ÄB"ˆ Ì ð  ` Ì Ð Ì  A#ô®µ˜ÿÿ"åæ Não perdeu tempo a descrever como praticara o crime; asfixiara a mulher e lançara-a ao Tamisa; como a asfixiara, como transportara o cadáver até á margem do rio, eram pormenores que, na sua escala de valores, não tinham importância. O que contava eram os motivos, as razões poderosas que o haviam impelido a dispor da vida alheia, da que mais preciosa lhe devia ser, da que se confiara à sua guarda e desvelo, e friamente, barbaramente liquidara. Fizera-o em cumprimento dum dever; ele não se pertencia a si, mas ao seu povo sofredor e faminto; todos os recursos da cultura e preparação intelectual que adquirira, todos os bens materiais de que pudesse dispor ou de que se pudesse assenhorear –, tudo deveria ser colocado ao serviço da causa que resgataria o povo chinês da miséria secular e lhe daria, pelo rigoroso cumprimento dos preceitos de Marx, igualdade no usufruto dos bens terrenos, ventura e dignidade. O tempo dos servos findara; os coolies não arrastariam mais os jirinkshás, como grilhetas; as fomes cíclicas deixariam de aniquilar, nas províncias remotas do seu país, milhões de seres humanos, porque o Estado poderoso se incumbiria da tarefa previdente que o capitalismo sempre desprezara; haveria ainda uma guerra, a que arrancaria ao capitalismo egoísta do Ocidente, de que a cidade em que o haviam prendido era a metrópole em decadência, a hegemonia que detinha mercê da escravidão das massas; mas, depois, uma nova era surgiria e nela não haveria lugar para a inutilidade das vidas e das fortunas consagradas à catalogação de objectos antigos, de porcelanas raras. Ele, Kêng Wei, quisera fazer de A-lin uma mulher consciente dos deveres que a fortuna e a cultura lhe impunham para com os seus compatriotas famélicos e desprotegidos. Doutrinara-a persistentemente; oferecera-lhe em seguida o apoio do seu braço e o amor de esposo para a guiarem na senda que ela, sozinha, não saberia trilhar. Ela aceitara-o para marido, mas -só depois ele o verificara -recusara-se a ser a companheira da cruzada a que tudo deviam consagrar, desde os pensamentos constantes à fortuna quase ilimitada. O fosso, verdadeiro e profundo, entre eles, abrira-se só depois que partilhavam do mesmo leito e que haviam juntado as vidas, afinal inutilmente. Era verdade que ela o amava desde os tempos de estudante; dera-lhe provas da sua submissão, como mulher; mas ele não lhe pudera vergar o espírito e vencer a tendência burguesa, estigma horrível herdado com a fortuna. Para A-lin, a riqueza dava direitos, não impunha obrigações; administrar bem o que era seu, multiplicá-lo para os filhos que viessem, aproveitar os prazeres do mundo e regressar, quando fatigada, ao palacete tranquilo de Macau, aumentar, com amor, a colecção das porcelanas policromadas, dedicar-se ao estudo dos objectos mortos enquanto os seres vivos definhavam sem merecerem sequer um olhar condoído, era um programa de existência, a cumprir, a praticar, sem solidariedade inúteis com os que não tinham bens para fruir, peças de porcelana para coleccionar, palacetes para residir. A hora que viviam era grave demais para que a possuidora duma dilatada fortuna pudesse teimar na cegueira de semelhante procedimento; na sua pátria travava-se a luta decisiva entre os defensores das novas ideias e os dirigentes corruptos que durante duas décadas, à sombra dum falso patriotismo e da farsa da resistência ao invasor nipónico, haviam sorvido toda a riqueza, todo o húmus e todo o sangue da China. Ele consorciara-se para que a riqueza adquirida pelo casamento revertesse, inteira, para o serviço da causa precisada de todas as ajudas. Era necessário armar os exércitos que implantariam a nova ordem de coisas; para tal tornavam-se precisas divisas estrangeiras, pois que não era com a moeda sem valor duma nação exangue que se adquiriam aviões e tanques. O dever de A-lin era pôr os enormes haveres, os depósitos fabulosos nos bancos, ao serviço dessa causa sagrada. Fora porque ela se recusara terminantemente a fazê-lo que ele tivera de a matar.ÄB"|ð < Ð Ì ð „ ð ¨ „ Ì  „ ð ` < ô < Ì  ð ð < ¨ ¨ ð „ ð Ð Ì ð  ð Ð ¬  < ¬ Ì Ì ð ð ¨  ¨ ˆ  Ì  ð Ì ¨ Ì „ „ Ì ð Ð ð Ð Ì Ì „ „  Ð ¨  ° d ¨ Ì Ì Ì Ð Ì Ì Ð ð ð Ì ¨  ` „ ` ` ð Ì   < ¨ ð ð ` ¨ ¬ „ ¨ ¬ „ „ ô  ` ` ` Ì ¨ „ ð ` Ì  „ Ì „ „ ð  ô Ì ð ð ô ` < ð ð ` ð ¨ „ ð ¨ ¨ Ì ð  ð ` ¨ Ì ð ô  ¨ < ` ¨    A#Eòù ÿÿ"åæ Esta versão assombrosa dos motivos que haviam inspirado o crime fora ditada por Kêng Wei, num inglês correcto mas de sotaque americano, a um escrivão atónito, como se em tribunal estivesse a proferir friamente as suas alegações de advogado. ÄB"¨ ð ð ð ¨ ð  Ì Ô A#„ð÷:ÿÿ"åæ Quando a confissão do incriminado e os pretendidos motivos por que agira foram tornados públicos, a Embaixada e o Consulado do seu país, ocupados ainda pelos representantes daquele «poder corrupto» de que ele se declarava inimigo mortal, abandonaram-no logo à sua sorte pouco invejável. O pobre professor Hu, que durante a guerra inteira vagueara pela China, quase com os trastes da universidade às costas, como personagem da «farsa de resistência ao invasor nipónico», tombou de muito alto no lajedo da realidade ao ler, por deferência especial dos directores da Scotland Yard, a minuta completa das declarações do incriminado. Mesmo assim, o sentimento paterno e a noção do dever impuseram-se-lhe sem uma hesitação. Levantada a incomunicabilidade do filho, logo o procurou na cela. Entre a última vez que o vira, já depois do desaparecimento de A-lin, e este primeiro encontro, no cárcere, um facto só ocorrera: o da confissão, Esse facto bastou, todavia, para que fosse outro, completamente novo para ele, o vulto que defrontava. Verificou, com pasmo, que não conhecia o próprio filho, a ser verdadeira esta personagem dura, implacável, que lhe falava do uxoricídio praticado como de mero cumprimento dum desígnio superior, em que nem as vítimas nem os exequentes contavam, mas só o fim a atingir. Ele não alcançara o seu objectivo, o de colocar a fortuna de A-lin inteiramente ao serviço da causa, e por isso partilharia do destino da mulher; em vez de aparecer a boiar no Tamisa, ficaria a balouçar-se numa forca. ÄB"‘ô ð Ì Ð ¨ ` ð Ì ð „ ` < ` ¨ d ð <  ¨ Ì  ¨ < Ì Ì ð  ¨ ð ` ` ˆ Ì ¨ Ð „ Ì ô ð <  Ì ¬ ð ð  ` < „ ` ð   ¨ Ì  ð ` A#ì–Gÿÿ"åæ O velho professor saiu daquela primeira visita ao preso completamente acabrunhado, totalmente esmagado. Tudo fora inútil: os sacrifícios que fizera, a educação que lhe dera, as esperanças que nele colocara. Nos anos em que percorrera, acossado pelos Nipónicos, os trilhos infindáveis da velha China, o filho afastara-se dele a ponto de se mudar para outro mundo; pois que ele cria na sinceridade de Kêng Wei, não o supunha movido por sórdida cobiça pessoal, mas impelido pela nova mística, cega e inexorável. E então é que toda a distância entre os dois se revelava, de súbito, ao seu espírito. Ele pertencia a um mundo antigo que durante séculos supusera cultivar os valores morais e amara os motivos eternos de beleza; verdade era que nesse mundo morria muita gente de fome; mas nele o homicídio era um crime e o culto da arte e do belo permitia aos professores e aos sábios continuarem a leccionar, por entre o turbilhão das guerras, as poesias que os imperadores, os mandarins e os letrados tinham composto, nas horas felizes de ócio, havia vinte, havia trinta séculos. Agora, no mundo novo, a fome, dada por Deus como a fartura, é que era o crime; o homicídio era parcela necessária do remédio e a poesia inutilidade bafienta a cobrir o egoísmo dos que não tinham fome. Ele e o filho eram, na verdade, habitantes de dois mundos completamente diversos. E só agora o compreendia! Desde o dia, anterior à guerra, em que Kêng Wei, rapazito novo, partira para a universidade, nunca mais tivera com ele uma conversa séria. Nunca lhe faltara com a remessa telegráfica para o sustento e educação; enviara-lhe as bênçãos, pelo matrimónio, e ofertara-lhe uma daquelas poesias inúteis que eram afinal o alvo do seu sarcasmo. Sem querer, o professor Hu encontrou-se, sentimentalmente, do lado de A-lin, a pobre rapariga que aparecera a boiar no Tamisa e que tanto amava as coisas de arte, a suave poesia da vida e por elas, afinal, morrera. ÄB"² ¨ ¬ < Ì ð „  Ì ð ð ¨  „ Ì  Ì Ì ð  ð Ð Ì ð ð Ì  Ì ¨ „ Ì ` ð ô ¨ Ì ð ¨ „ ` Ì Ì    Ì ð Ì „ ð ð ¨ ð ð  „ ô  ` Ì „ ` Ð < ¨ ð Ì  ð ð  A#h€‡5ÿÿ"åæ Kêng Wei não se confiou aos defensores escolhidos pelo pai e pretendeu conduzir a própria defesa. O seu caso tornou-se, rapidamente, um cartaz político, agitado por uns e outros à mercê das diversas convicções. A imprensa conservadora, o severo Daily Telegraph, o audacioso Daily Mail tomaram-no como exemplo dos processos marxistas e das aberrações a que pode levar uma mística cega, servida por agentes de sádica crueldade e de escrúpulos nulos. O Daily Worker, órgão do Partido Comunista, denunciou Kêng Wei, como criminoso vulgar, assoldado pelos plutocratas para lançar o labéu da sua façanha repugnante sobre uma causa límpida e generosa, a da libertação dos oprimidos pelo jugo capitalista. Entre os dois extremos situou-se o Times, sempre prudente e moderado; para o seu editorialista, o triste feito do chinês assassino inspirava-se, sem dúvida, nas deploráveis doutrinas de violência, nos processos metodicamente frios e cruéis com que para além da Cortina de Ferro se instaurara uma ordem de coisas que repugnava à sensibilidade, à tradição cristã dos ocidentais; mas não se podia condenar, em bloco, todo um movimento político pelo procedimento dum adepto fanático; o editorialista aceitava como sinceros os motivos dados para o seu feito hediondo pelo marido da desventurada A-lin; mas considerava-o um exaltado que transformava uma doutrina já de si implacável numa licença ampla para o crime.ÄB"…Ì ¨ ¨ ¨ ¨ ð `  ` „ Ð Ì „ Ì   ð ` „ Ì Ì ¨ ð Ì Ì ð ð ` Ð  ¬  ` ` ð ð ¨  Ì ¨ „ ` ¨  Ì „ „ Ì Ì  ð „ Ø A#Ò&-ÿÿ"åæ Jamais o professor Hu, venerado na sua pátria, respeitado, entre os ingleses, nos círculos universitários e no meio restrito da investigação histórica e literária, supusera vir a alcançar, por via do filho, tão diferente e triste nomeada. Na balança da celebridade pesou mais a sua ligação com um homicida confesso do que os vinte volumes que publicara sobre a filosofia tauísta, sobre o confucionismo como sistema de Estado e sistema de moral, sobre a literatura chinesa desde a época da dinastia Chu, quinhentos anos anterior a Cristo, até ao tempo da dinastia Ming, contemporânea da nossa Renascença. As suas obras jaziam, em valiosas edições de Oxford, nas bibliotecas de arquitectura gótica das universidades britânicas; o seu nome andava pelas primeiras páginas dos jornais, como o pai do assassino.ÄB"N < Ð  ` `  ð   ð < `  ¨  ¨ ¨ „  „ ð ð „  Ì `  Ì   h A#m‘˜ÿÿ"åæ Nunca, como nesses dias tristes, o velho sábio recordou com tanta saudade os ambientes de estudo do seu país. Para que trocara a China, de valores eternos, pelas paragens aparentemente civilizadas onde tudo se sacrificava ã alucinação do escândalo e do sensacional? Mas como regressar ã pátria se as forças de que o filho se proclamava o agente, no crime, a retalhavam e a traziam de novo em sangue? ÄB"&<   ¨ ` ¨ ð ` Ì Ì Ì Ì ¨ < Ì A#dpwÿÿ"åæ O professor K. Y. Hu recolheu ã quietação de Stratford, onde as únicas emoções permitidas eram, a horas fixas do começo da noite, as das personagens Shakespeare, que quotidianamente se elevavam no palco do teatro, a recordar outras paixões, outras cobiças e outros ímpetos da condição humana mais vigorosos e mais trágicos ainda do que os que haviam movido Kêng Wei. ÄB"# „  ` ð ð  ð ¨ < ¨ ô ð ` A#{ËÒÿÿ"åæ Quando a condenação sobreveio, o professor Hu estava de novo em Stratford. E dessa vez eu era, como relatei, seu companheiro na pousada. Não estávamos, todavia, sós. Desde o Dr. Fawzi, negro como o azeviche, preocupado com a modernização dos programas de História, em Kharthoum, ao poeta grego e ao casal norte-americano, havia gente de cores e mentalidades bem díspares no grupo que o acompanhava em hora certamente a mais dolorosa da sua longa existência. ÄB"-¬ „ ð ` Ì < „    Ì „  ð ¨  ô  ° A#§y€>ÿÿ"åæ Mrs. Wharton, que viera de Kansas City à sirga do marido e preparava a tese sobre o teatro de Shakespeare, estava contagiada pelo vírus da psicanálise e da psicopatologia, tão divulgados nas camadas cultas ou pseudocultas do seu país. Julgava friamente todas as obras de arte que o poeta e dramaturgo genial compusera, à luz da nova ciência, que tinha em Freud o profeta e o orago, e nela uma adepta fervorosa. A poesia, a intensidade do drama, a beleza das cenas teatrais desapareciam perante a preocupação pesquisadora de taras de degenerescências, de motivos remotos e secretos a impelir as personagens. O demiurgo de Stratford criara uma humanidade vigorosa, como a dos painéis de Miguel Ângelo; depois tocara-a com a vara mágica de que brotam a virtude e o crime, a beleza e a hediondez; libertara os ventos, desencadeara as tempestades. Havia cerca de quatro séculos que esses ventos bramiam, chicoteando as imaginações. E agora vinha aquela mulher feliz e medíocre, sem taras, sem degenerescências e também sem encantos, sem vícios, além do tabaco amarelo e da Coca-cola, e também sem quaisquer virtudes excelsas, de tez clara como as mulheres da sua raça, de óculos de moldura metálica quase imperceptível, como as mulheres do seu país, e sem imaginação, sem generosidade, aplicava a lupa adquirida em cadeiras universitárias à escalpelização daqueles seres humanos, dos monstros e dos títeres, dos matadores e dos santos. Toda ela ressumbrava psicanálise; era um ser detestável, pela segurança no saber, pela banalidade intrínseca e por aquela preocupação de só extrair das obras de arte as fichas, os verbetes para uma tese de patologia psíquica.ÄB"›¨  ¨  ` @ ¬  ð ¨ Ì ð ¨ ð `  < „  Ì  ð „ ð  <  Ì  „ < Ì ` Ì  ô `   ¬ < ð  „   Ì  ð „  Ì ð ð <   <  Ì „ ¬ A#“)0;ÿÿ"åæ Era inevitável que Mrs. Wharton procurasse aplicar a bagagem científica à interpretação do caso, singularmente tenebroso, que ia levar' à forca o filho do professor Hu. Não acreditava ela na versão, que Kêng Wei sustentara até final do julgamento, de que matara com o fito exclusivo de «descongelar» a fortuna em mãos burguesas «congelada» e nas suas, se a prisão não tem sobrevindo, logo consagrada à causa que tudo exigia dele. Menos ainda aceitava a versão que a Justiça tornara oficial com o seu veredicto: a de que o advogado chinês assassinara a mulher com o simples e odiento objectivo de gozar neste mundo, sem peias de espécie alguma, as riquezas que a vítima -administradora segura -mantinha firmemente nas mãos. Para a americana imbuída dos novos conceitos, quase dogmáticos, de psicologia comparada, vinda de Kansas City com o fito de estudar, no teatro do trágico quinhentista, os inescrutáveis segredos da alma humana, Kêng Wei matara a judiciosa A-lin porque ávidas heranças, e influências duma infância que testemunhara as guerras e as depredações na China desaventurada, lhe haviam dado uma personalidade, possuída de complexos tremendos, diferente da que também existia nele e que era o orgulho do pai erudito e filósofo. Mrs. Wharton juntava os seus conhecimentos de ciências psíquicas à ideia que nos livros de Pearl Buck colhera da complicada alma chinesa; associava-lhes alguns preconceitos yankees e da mistura saía um retrato de Kêng Wei que, a ser exacto, lhe alcançaria, em vez da forca, uma condenação de insânia perigosa para o resto dos seus dias.ÄB"”< ð Ð  ð ð ð Ì <  ¬ ¨ ð   Ì     ` ¨ „ Ì ð Ì ¨ ð Ð Ì ð  @ „ ð ` ˆ  ð Ð „ < ô Ì  ¨    ð ¨ <   Ì „ `  ø A#šELÿÿ"åæ As opiniões de Mrs. Wharton não pesaram, todavia, na balança da Justiça. O poeta grego, que não se curvara à fatalidade da derrota do seu país, aceitava o fatalismo de certos destinos; não buscava explicações científicas para os crimes dos humanos, mas, como na tragédia helénica, dava à fatalidade primazia de poder sobre a vida e sobre a morte. Vítima dos seus complexos freudianos ou da fatalidade de trágico destino -o que para o caso lhe devia ser indiferente -Kêng Wei subiu os degraus da forca numa madrugada sombria e agreste, de chuva, enregeladora de corpos e de almas. ÄB"7Ì ` Ì Ì ð  ð ð Ì ¨  ð  ¨  ð „ „ ` ˆ Ì ü A#n•œÿÿ"åæ O Ministério do Interior mandou para os jornais a comunicação habitual: «O Dr. Kêng Wei Hu, condenado pelo assassínio de sua esposa, foi enforcado esta manhã, no pátio da Prisão de Pentonville, às 7 horas e 45 minutos..... Escutámos a notícia na rádio pela emissão da B. B. C., antes de almoço. O professor Hu não estava presente. E não deixámos de almoçar; Mrs. Wharton estava até com um apetite voraz. ÄB"&` ` ð Ì  ` ˆ ð `   „ Ì ð ¨ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#<ÍÔ ÿÿ"åæ O professor só apareceu ao fim da tarde; estivera recolhido no quarto o dia inteiro. À noite representava-se «Otelo» no teatro; mas nenhum de nós foi assistir ao crime que vitimaria a inocente Desdémona. ÄB"¨  „ @ ¨  ô Ð  Œ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#Eóú ÿÿ"åæ O pai de Kêng Wei tomara todas as providências para que o cadáver do filho lhe fosse restituído, de forma a poder, quando a ocasião surgisse, transportá-lo para os penates distantes, onde -e só aí -alma e corpo encontrariam finalmente a paz. ÄB"` ¨ ¨ ð < ð  ¬ „ ´ A#^X_ ÿÿ"åæ A frase escutada por Mr. Brown, perito em porcelanas chinesas, frase que ajudara a Polícia a desfiar a meada do crime, não fora lançada ao réu, mas por este à sua vítima: Hás-de morrer sem ter caixão! -Si m'hou cong-choi! Kêng Wei repousava num caixão de teca e da cerração do mar surgiria um dia o navio dos mortos que o levaria para a China.ÄB"!` Ì  ð ¨ <  ð  ð Ì Ì Ø A#gzÿÿ"åæ Que seria feito do corpo de A-lin, cuja primeira sepultura fora o Tamisa, de pontes negras, de águas cor de lama, de navios acostados a fábricas hediondas, de cais tenebrosos, desde cedo desabitados, como manchas de desolação na cidade enorme –, de desolação e de crime? De qual daqueles cais teria o corpo de A-lin escorregado sem ruído, ou só com um baque surdo, para o rio? ÄB"#Ì Ð Ì Ì ð   ð  Ì ¨ ¨  ¬ A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#U\Pÿÿ"åæ Permaneci em Stratford ainda quatro ou cinco dias após a execução de Kêng Wei. Na folha larga do Deve e Haver dos meus actos neste mundo, cujo extracto apresentarei no limiar da Eternidade, lá onde A-lin e o marido já prestaram contas, deve inscrever-se como acção de benemerência a forma como amparei o professor Hu nessas horas em que teve, pouco a pouco, de se libertar dos fantasmas do filho e da nora, A tragédia findara, Os irmãos de A-lin já haviam aparecido a reivindicar os bens de que eram únicos herdeiros. O testamento dela a favor do marido era simples peça de processo judicial arquivado. O mundo do pensamento e o mundo da acção exigiam do velho mestre o regresso a paragens distantes da zona de pesadelo em que vivera nos últimos meses. Da China vinham até ele dois apelos opostos: o regime que durante anos de adversidade resistira heroicamente ao dominador nipónico, afundava-se, na embriaguez da vitória, em sordidez e corrupção; apelava para o prestígio moral do professor para que o cobrisse com as tintas da sua integridade; mas o historiador da literatura chinesa não reconhecia já nos generais e políticos que transferiam fortunas maciças para os Estados Unidos os companheiros dos anos assombrosos de luta contra o inimigo estrangeiro. Do outro lado, onde se organizavam os exércitos que, fortes da aliança moscovita, em breve se assenhoreariam de todo o Império Celeste, também os chamamentos eram insistentes e persuasivos. Kêng Wei fora apresentado às massas chinesas, pela imprensa xenófoba, como vítima da Justiça corrompida e burguesa dos ocidentais; o seu vulto começava a ser agitado como símbolo do ódio entre duas raças, entre dois conceitos da vida, entre os que procuravam manter a escravidão e os que se esforçavam por quebrar as grilhetas que oprimiam os povos do Oriente; o enforcado de Pentonville deixava de ser um criminoso para passar a ser um mártir. E o Governo da República Popular telegrafava ao professor Hu a pedir-lhe que rompesse as ligações antigas e fosse, aureolado pelo seu saber e pelo martírio do filho, prestar a colaboração preciosa aos homens que edificavam a nova China.ÄB"Èð Ì ` Ì Ì    „ ð Ð ð Ì ð Ì Ì ô ¨ ` ¨ ¨ ð „ „ „  ¨ < ¨   „ „ „  „  Ð ˆ „  ` ð „ ô ð  ð ` Ì Ì ¨ ð ð ô < `  Ì Ì ¨ Ì ô ¬  „ „   ¨   Ì ` ¨ ô ð ` ð Ø A#ëò(ÿÿ"åæ Notei que este apelo tocava fundamente a sensibilidade do sábio voluntariamente exilado. Não porque tivesse fé nos novos valores e conceitos que se erguiam. Mas porque, aderindo publicamente a eles, proclamaria a sinceridade do filho e resgataria a sua memória. Porque Kêng Wei, desde o instante da confissão até á morte, premido pelos investigadores, pelos advogados; pelos juízes, nunca tivera uma hesitação: matara para ofertar à causa a prodigiosa, a utilíssima fortuna. E ele, nas conversas, na prisão, com o filho, compenetrara-se da sinceridade deste. A ele, homem céptico e indulgente, imbuído duma filosofia tolerante e duma erudição que cobria a história de séculos sem fim de iniquidades e desigualdades sociais, a descoberta daquela mentalidade de obediência absoluta a uma mística implacável, geradora por igual da generosidade e do crime, abalou-lhe profundamente a segurança intelectual, já minada pela perturbação que o eclodir do drama do filho e da nora trouxera aos seus sentimentos.ÄB"dÌ  ô Ì    ô  „ ` Ì Ð ô ` Ì  ` ¬ Ì „ „ Ì   ð ` ` ˆ „  ` ¨ d „ Ì ð ` d  ° A#wºÁ6ÿÿ"åæ Disse-me, nas conversas de Stratford, não acreditar na interpretação simplista da Justiça inglesa, nem nas deduções especulativas de Mrs. Wharton. O filho não fora um gozado r sem escrúpulos nem o agente dum conflito intrapsíquico de origem freudiana. Fora o agente de outras forças, tão estranhas para ele, professor das literaturas e das religiões antigas, como a energia atómica para o camponês simplório que lavra, de sol a sol, a terra arável. Só depois de finda a tragédia ele pôde medir com inteira exactidão a distância a que o filho se colocara dele. Vira-o partir para a América, garoto ainda; a guerra separara-os, como apartara A-lin do pai. Entretanto, na dor e no sangue foi-se gerando um mundo novo, mundo em que o clamor de justiça abafava os gritos de piedade, em que a prática do bem era direito do Estado e não dever das almas; o filho ingressara nesse mundo, cuja existência ele, perdido nos caminhos da poesia dos mundos antigos, nem sequer sonhava. Tornara a ver Kêng Wei por escassas horas, em Hong Kong, quando um voltava dos Estados Unidos e o outro partia para Inglaterra. A correspondência entre os dois nunca fora elo a prender os espíritos. Estes só se aproximaram, para espanto seu, para seu assombro, no momento em que o filho lhe confirmou que matara A-lin, sem o menor escrúpulo, sem a mais pequena vacilação, quando desistira de a converter e considerara a sua permanência na posse da fortuna prejudicial à causa única que servia. ÄB"‡¨ Ì ¨ ` „ „ Ð Ì „ ` ð  ô „     ¨  <   ¨ ð  ð ¨  Ì   ð ð ¨  „ Ì  ô  ð  < ô  < „  Ì ð  Ì ˆ A#{ÌÓÿÿ"åæ À cabeceira do seu leito, no quarto de Stratford, o professor Hu conservava a fotografia do filho e da nora, juntos, felizes, no dia alegre da boda, em Macau. Mantinha, curiosamente, igual ternura pela memória de ambos. O filho fora do seu sangue e do seu afecto. Ela, que tão gostosamente adoptara para filha, encontrara-se, porém, no breve contacto, mais perto ainda dele, no amor suave às coisas de arte que não alimentam os famintos mas nutrem o espírito.ÄB"+ð  „ `  „  < ¨ ð  ¨ „ „ ð   A#U4; ÿÿ"åæ Demos dois ou três longos passeios a pé, naquelas últimas tardes, pelos caminhos planos, pelos campos verdes: a Aston Cantlow, onde Mary Arden, a mãe do dramaturgo, se casou com John Shakespeare; a Snitterfield, a pequena aldeia donde se transferiu para a cidade a família modesta do autor do «Júlio César».ÄB"„ < ô   Ð  ð „ ¨ Ì ø A#Díô ÿÿ"åæ Foi numa dessas excursões que o velho professor me recordou, em defesa do filho e numa interpretação que me pareceu talvez forçada, os versos do poeta, quando, no enterro de César, Marco António chora o assassinato e louva o assassino: ÄB" Ð ð Ì ¨ Ì <  ¬ A# ÿÿ"åæ ÄB" A#-4ÿÿ"åæ «My heart is in the coffin there with CaesarÄB"¨ d A# 'ÿÿ"åæ …Brutus is an honourable man». ÄB"` Ø A# ÿÿ"åæ ÄB" A#`^eÿÿ"åæ A muita inteligência que informava o seu espírito e a ternura de pai deram-lhe compreensão para o acto de Kêng Wei; mas não o levaram, apesar disso, a vencer a distância que os correligionários do filho queriam que ele transpusesse. Já agora, morreria na velha Inglaterra e terminaria, se pudesse, o catálogo de arte que A-lin deixara por concluir. ÄB"#` ð ` ¨ ð ` @ „  Ì Ì Ì ô  h A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#ì—#ÿÿ"åæ Só mais dum ano decorrido voltei à Grã-Bretanha. No intervalo trocara com o professor Hu duas ou três cartas, breves mas expressivas da estima que ficara a ligar-nos. Na última que me enviara confirmava ele, com desânimo, a impossibilidade em que estava de regressar à pátria. A universidade, de cujas andanças partilhara durante a guerra mundial, tornara ao nomadismo que a celebrizara, mas desta vez fugida, não aos nipónicos, mas aos compatriotas vermelhos, perante cujo ímpeto caíam, como castelos de cartas, os exércitos da velha China. E ele, se não aceitava o novo jugo, ao qual teria de moldar toda a sua cultura e matéria de ensino, em nova e para si odiosa disciplina mental, também não queria ser arrastado, sem culpas, na enxurrada dos que estavam a ser empurrados para o mar ou colocados perante os pelotões de fuzilamento. Pensava até, dizia-me num post-scriptum, em pedir a naturalização inglesa.ÄB"X„ „ < „ ˆ „  „ Ð  `   ¨ ð  ˆ < ¨ Ì Ì Ì  ð ð „ ô „ Ì ð  ð Ì `   A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#ªˆÿÿ"åæ No próprio dia em que me encontrei de novo em Londres -desembarcado do «expresso» de Dover, ao fim da tarde, em Victoria Station -telefonei a três ou quatro amigos e nesse número restrito incluí o professor Hu. O prazer que manifestou em me saber de novo tão perto dele não podia ser simulado e por isso me penhorou. Mas só na semana seguinte os afazeres que sobre mim tombaram em aluvião -onde já iam os dias quietos de Stratford! quando voltaria eu a ter quietos dias? -só na semana seguinte o pude procurar na casa em que habitava, perto de Marble Arch, como hóspede dum compatriota, o Dr. Chang, dentista de nomeada e filósofo nas horas vagas.ÄB"<` ð Ì    ` ¨ „  ¨ ¨ `  ð    < „  „ ô „ A#"ÿÿ"åæ Subia ao seu quarto, onde estava retido por uma crise de bronquite que os primeiros frios do Outono tinham despertado. Encontrei-me entre velhos amigos: ele, as suas colecções de poesia chinesa -leu-me algumas das traduções que ultimamente fizera –, as provas do catálogo que A-lin não terminara e cujo trabalho prosseguia com a colaboração de Mr. Brown, o retrato do filho e da nora sobre a mesa de cabeceira... Havia decorrido um ano desde que nos tínhamos separado? Não estava tudo na mesma, como eu o deixara? Ele, a silabar os versos dos poetas de há mil, de há dois mil anos? A-lin a sorrir, no retrato, para o noivo? Kêng Wei, de malares salientes, a cerrar os olhos -já de si semicerrados -que a claridade parecia ferir? E as provas do catálogo não estavam ali abertas, tal como Mr. Brown as teria deixado em Saint James Court na tarde em que ouvira o advogado dizer para a mulher: -Hás-de morrer sem ter caixão! -?ÄB"U„ Ì   ` ð ` Ì „   „ ð ¨ ð ô ¨ ¨  ð ð ð ¨ Ì ð       Ì  ˆ A#.–ÿÿ"åæ Decorrera um ano? Mas que importava um ano, se a poesia que ele me lia, embevecido, datava de há dois mil e ainda não perdera a beleza e a frescura? ÄB"„  Ì  `  h A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#r§®ÿÿ"åæ Alguns dias decorridos foi a vez do professor Hu me telefonar. Depois de responder à minha pergunta afectuosa sobre a sua saúde, que encontrara, na realidade, abalada, disse-me o que pretendia de mim: Teria eu a tarde livre? Queria-me para companheiro de piedosa jornada. Comunicou-me de que se tratava. E logo sacrifiquei todos os afazeres àquele dever de retribuição duma amizade que de forma tão singular me distinguia.ÄB"(ð  Ð ¨ ð  < ð Ì  ð ˆ  Ì  < A#–7>ÿÿ"åæ Nessa tarde o corpo de Kêng Wei, que havia um ano repousava, no caixão de teca, em prateleira do depósito funerário de Pentonville, ia ser transportado para bordo do navio que o conduziria à China, No porto de Hong Kong, em cujo foro o advogado exercera, por breve período a profissão, seria baldeado para um dos muitos navios que sobem o rio das Pérolas e lã nos confins do Yunan remoto repousaria finalmente, junto dos seus penates, para tranquilidade da alma sobreviva e para paz da consciência do velho pai, que não queria morrer sem se desempenhar dessa missão.ÄB"5Ì ô  „ ð Ì Ì  <  „  ð Ì ð  ô <  ` „ A#ÇüAÿÿ"åæ De tudo o professor tratara para que nada prejudicasse o retorno à pátria dos despojos do filho. O navio que devia conduzir estes até Hong Kong era um velho cargueiro da «Peninsular & Oriental Line» que viera da China atulhado de arroz e que para lá voltava com uma partida de material de guerra para os exércitos nacionalistas. Com esse material e muito outro deveriam os celestiais resistir à ofensiva dos compatriotas conluiados com Moscovo; preferiam, todavia, vendê-lo aos adversários e colocar o dinheiro a bom recato nos bancos americanos. Assim, quase sem luta, a onda vermelha ia alastrando, enquanto os beneficiários da desavergonhada candonga abalavam, sem armas mas com lautas bagagens, para exílios onde não chegasse o estampido das armas negociadas e o odor repulsivo dos cadáveres dos que ainda morriam pela causa traída e ficavam a apodrecer nos arrozais. Mesmo assim, as fábricas de armamentos do Ocidente continuavam a remeter para os campos de batalhas que não se travavam as partidas fartas de material bélico que amanhã deveria apressar a própria agonia do mesmo Ocidente. Mas na marcha inexorável das coisas há fenómenos que só se justificam pelo absurdo. E só o absurdo os mantém. Por isso o cadáver de Kêng Wei lá ia de mistura com o material de guerra que os seus correligionários comprariam por preço mais cómodo do que o pago por ele para se assenhorear da fortuna de A-lin. Não voltavam os restos do advogado à China no navio que durante três ou quatro décadas correra, por conta do velho Siu-Chan, todos os portos do Pacífico e do Índico, na busca dos mortos para repatriar. Voltavam em navio diferente, onde não haveria outros mortos, mas tudo com que se fabricam os mortos, desde os bombardeiros pesados às granadas de nafta. Regressavam em boa companhia. ÄB"£Ì ð  Ì ð „ ð Ì  ¨ ¨ ð Ì  < Ì ð ¨ `   < ð < Ì    Ì ð ð  „  „ ð ô ¨ ¨  `    Ì ð ˆ Ì ð  „  ð ¨  ` < Ì Ì „ ¨ Ì    A# ÿÿ"åæ ÄB" A# ÿÿ"åæ ÄB" A#_[b ÿÿ"åæ Passei por casa do professor Hu por volta das três da tarde, pois que o embarque do caixão estava marcado para as quatro e meia. Um autofúnebre, conduzido e guardado por agentes da Polícia, transportaria os despojos do enforcado até ao portaló do navio. Mesmo depois de morto Kêng Wei era ainda prisioneiro das forças de que julgara poder troçar.ÄB"!ð `   d ` < „ ð < ð ð ð A#\MT ÿÿ"åæ O Dr. Chang, dentista e filósofo nas horas vagas, quis acompanhar o seu categorizado hóspede em jornada de tanta solenidade. Fomos, portanto, os três no underground até Shadwell Station. O navio partia de Shadwell Basin, ali a quinhentos metros, um pouco a jusante do locai onde aparecera, preso a um ferro do rio, o corpo de A-lin.ÄB"!< „ ô < ð Ì ` ¨ ô  ô Ì „ A#Íÿÿ"åæ Estava uma tarde tipicamente londrina, cinzenta como certas telas de Whistler. Não chovia, mas nem chegava a ser preciso chover para sentirmos a presença da chuva. O professor, cuja extrema sensibilidade eu pudera aquilatar nos dias inesquecíveis de Stratford, encaminhava-se para a cerimónia com serenidade triste. Era um letrado do tempo do imperador Wu Ti, que no ano 502 fundou a dinastia Liang e compôs versos suaves proclamando a elevação do mandamento: «Não matarás» –; era um letrado desses tempos pretéritos, perdido, a meu lado, nas docas de Londres. Ninguém escutara os conselhos brandos do imperador e ele viera a morrer de aflição e miséria no mosteiro a que se recolhera. Em que desterro, em que mosteiro deste século de impiedade viria a cerrar os olhos o professor Hu? ÄB"Ið <     < < ˆ Ì ô ` „  ð ð „ ð ð ¨ Ì  ¨ Ì ð Ì ð Ì „ A#F÷þ ÿÿ"åæ O filho fora o primeiro a ignorar os conselhos do poeta; matara, fora morto -e que restaria dele dentro daquele caixote banal, de tábuas planas, que os carregadores do porto tiravam do autofúnebre e deixavam tombar, sem respeito, na lama do cais?ÄB"„ < ð ` „ ô  „    A#>ÖÝÿÿ"åæ -A armação de tábuas protege o caixão de teca; fui eu que a mandei fazer -elucida-me o professor, indo ao encontro da minha estranheza. -Infelizmente, tem de ir no porão, como carga. Não há respeito pelos mortos. ÄB"ð ð ð Ì Ð Ì „ < A#¦v}ÿÿ"åæ O aparato policial despertara a atenção dos estivadores; não foi preciso muito para que eles soubessem que o caixote, semelhante a tantos outros que os guindastes do navio tinham erguido do cais e sepultado nos porões hiantes, transportava os restos do «chinês assassino», cuja história, no ano anterior, lhes valera por um bom livro de literatura detectivesca. Somente os outros caixotes, com as marcas das fábricas de armamentos, continham os instrumentos de morte, E aquele já encerrava a própria essência da morte, o seu fruto mais caro, mais precioso, duplamente tocado, no crime e no castigo, pela sua mão gélida e ardente.ÄB"< ¨ ¨ ` ð Ì ð  `  ô ð < ` <  ` `  ` ô ð Ì „ A#bgnÿÿ"åæ Enquanto esperávamos pelo embarque do caixote, meti conversa com um dos oficiais do navio, ali postado perto de mim a fiscalizar as manobras da carga e o trabalho dos estivadores. Juntou-se-nos um empregado da empresa armadora, Entretanto o professor passeava com o Dr. Chang no cais que as poças de água e os montes de detritos tornavam quase intransitável.ÄB"#„ „ ð Ì  ô „  ð ¨ ` ð < ø A#…óúÿÿ"åæ E pelo empregado da «P. & O.» eu soube uma coisa surpreendente: não era só o cadáver de Kêng Wei que o navio transportaria para a China; levaria também o de A-lin. Os irmãos da assassinada haviam providenciado para o regresso dos seus restos aos penates sagrados com devoção igual à que o professor Hu pusera no retorno do filho morto. E a única agência que se incumbia de tais fretes marítimos destinara os dois carregamentos ao mesmo navio. Talvez lucrasse até um bónus com a duplicação da carga…ÄB"0 ˆ Ì „ ¨ ¨ ¬ ˆ  Ì ð ð Ì  ` d  ð ¨ A#s©°ÿÿ"åæ O caixão de A-lin, protegido por idêntica armação de tábuas lisas, embarcara de manhã; mas no porão n, °5 ficara, junto dele, o lugar vago para o seu par, que só chegaria à tarde. E o professor quando daí a minutos fosse verificar a arrumação dada ao volume com os restos do filho -caso levasse o escrúpulo até esse ponto de minúcia fiscalizadora -encontraria dois volumes iguais, dois caixotes iguais, dois destinos iguais.ÄB"+ð < ¨ „ Ì Ì ô  „ ð ` ð @ ¨ „ ô @ A#O! ÿÿ"åæ O empregado da «P. & O.» falava com o oficial de bordo acerca da carga que ainda faltava embarcar e da hora provável a que conseguiriam safar o navio. O velho cargueiro seguiria ainda de Londres para Antuérpia e só do porto do Escalda tomaria depois rumo para o Oriente, via Suez. ÄB"`  „ ¨ Ì  Ì Ì Ì Ì  h A#7ºÁ/ÿÿ"åæ Enquanto os dois tomavam balanço à mercadoria ainda exposta no cais, o meu pensamento concentrou-se em problema que só para mim próprio teria interesse: o significado da minha assistência ao embarque do féretro do assassino. E achei certo sabor de paradoxo ao facto da minha presença no cais à tarde, e não de manhã, quando o caixão com os restos de A-lin fora embarcado. Havia sido ela que eu conhecera em anos distantes, na mesma cidade onde ambos tínhamos vivido dias felizes da mocidade; fora amigo do pai; fora ele quem me incutira o amor às coisas de arte do Oriente, que tanto havia de vincar a personalidade da filha e que haveria de ser agitado como labéu a desculpar o crime, pretensa ou veridicamente inspirado em sentimentos exaltados de generosidade social que ela não partilhava. Olhando para dentro de mim próprio, achava-me muito mais perto de A-lin do que do seu matador, que não conhecera, por quem não nutria a menor simpatia, de quem tudo me afastava: a inteligência, a sensibilidade, os conceitos da vida. E era o cadáver dele que eu viera acompanhar com a compunção requerida em tais cerimónias, como se do seu luto partilhasse. Inconsequências dos nossos passos, mesmo os mais pautados!ÄB"v` ¨  Ì ` ¨ Ð ¨  ¨ ¨   ` ô ð ¨ ð ¨ ô ð ¨ d ð Ì ¨ „ ` „ ˆ `   ð Ì ð Ì  Ì   Ì ¨ d ¨ ô  D A#˜>Eÿÿ"åæ Quando me perdia nessas lucubrações inúteis chegou ao cais um indivíduo alto e idoso, vestido de escuro, de colarinho de goma e chapéu de coco. Tanto podia ser um corretor da Bolsa, como o criado grave dum duque britânico. Dirigiu-se ao empregado da «P. & O.» como a conhecimento antigo e ouvi este tratá-lo por Mr. Brown. Ao escutá-lo por Mr. Brown. Ao escutar a conversa entre os dois logo identifiquei o recém-vindo. Era aquele conservador do British Museum cujo depoimento levara Kêng Wei à forca; era o homem que ouvira a frase fatídica: -Hás-de morrer sem ter caixão!ÄB"7<  ` ð  ` „  `  ¨ ð Ì Ì Ì <  Ì ð `  ü A#t°·ÿÿ"åæ Agora estavam ali os dois figurantes do diálogo escutado, cada qual em seu caixão. Ele, Mr. Brown, amigo da morta, incumbira-se, por mandado dos irmãos dela, de tudo que dizia respeito à transferência dos despojos para a China. Ainda como amigo dela procurara completar-lhe o livro inacabado; e fora no pai do assassino, sumo orientalista, que encontrara o auxílio erudito e a devoção às coisas de arte para levar a cabo tal obra. ÄB"+„ ô ¨  Ì Ì „ ¨ ` Ð ô Ì  `   Ø A#í”›!ÿÿ"åæ Quando o Dr. Hu e o dentista, cujos passos os haviam afastado de nós, voltaram ao grupo de que era ponto de referência mais elevado o chapéu de coco de Mr. Brown, testemunhei a cordialidade do cumprimento entre o velho professor e o homem que mais contribuira para a condenação do filho. O conservador do museu explicou ao pai de Kêng Wei que já ali estivera de manhã a vigiar o embarque do féretro de A-lin. O semblante do professor reflectiu certa surpresa; mas foi instantânea a reacção. Logo o espírito largo e sereno aceitou a coincidência daquele encontro póstumo como lição do destino. O filho e a nora haviam juntado as vidas e um seguira o outro na morte; porque não haviam de fazer juntos a longa viagem até aos penates onde encontrariam a paz? Falava como pai e sogro extremoso; ouvindo-o discorrer, esquecíamo-nos do crime repulsivo que separara os dois entes que ele queria reunidos na vida e na morte.ÄB"S  ð „ „ ð  „ ð  ¨  ¨ ð  ð  ¨ `  ô „ ð „ ¨  Ì ð Ð ð ð ð ð A#K  ÿÿ"åæ Uma corda forte enlaçou o caixote que continha o esquife de teca em que por sua vez se guardavam os restos de Kêng Wei. O motor do guindaste começou a roncar; o volume pesado ergueu-se do solo e fez uma curva no espaço até sumir-se na cratera aberta no bojo do navio.ÄB"„  ¨ < Ì  < Ì ð ð Ø A#I ÿÿ"åæ O professor Hu foi a bordo verificar com os seus olhos a arrumação que davam aos despojos do filho, Acompanhou-o o conservador do museu, que era ali uma espécie de procurador de defuntos e ausentes, zelador das cinzas de A-lin e dos interesses dos irmãos. ÄB"¨  < ˆ   ` ð „ < A#Q$+ ÿÿ"åæ A faina da carga estava quase terminada; meia hora depois o «Isle of Skye» afastava-se do cais e, escapando-se pela saída estreita da doca, começava lentamente a descer o Tamisa, deixando-nos para trás, a nós e àquele ponto do rio onde o corpo de A-lin aparecera, para perdição de Kêng Wei. ÄB"   „ < ð Ì  „ Ì  h A#Föý ÿÿ"åæ Quando o navio se confundiu com os vultos de outros barcos, perdido no enxame de mastreações que cobria aquela zona do rio, começava a noite a descer e despontavam luzes, aqui, ali, nas margens, nas embarcações, na cidade e no porto desmarcados.ÄB"Ì < ð    Ì Ì ˆ A#X>E ÿÿ"åæ Lembrei-me do velho Siu-Chan, que durante quarenta anos explorara, como negócio rendoso, o navio dos mortos. O seu navio não demandava, na colheita periódica, o porto de Londres; ficava por outros mares. Mas nem por isso a filha assassinada e o genro assassino deixaram de ter um navio dos mortos para os transportar.ÄB" „ < ð  Ì  „ Ì ð `  ° A#‘!(ÿÿ"åæ Ou seríamos nós, os que não tínhamos embarcado, os que ficávamos apegados às coisas inúteis e belas que dão prazer ao espírito, às porcelanas preciosas da colecção de A-lin, às poesias dos séculos pretéritos que o professor comentava e traduzia, ao teatro do mago de Stratford –, o conservador do museu, irrepreensível sob o chapéu de coco, o Dr. Hu, a querer envolver no mesmo amplexo de ternura os que são mortos e os que matam, eu próprio, a querer compreendê-los a todos e sem os compreender seríamos nós que ficávamos no Navio dos Mortos? ÄB"5Ì ¨ ð <  <  ð ô Ì  ð  `  „ d ð Ì ¨   A# ÿÿ"åæ åæÄB" ‚ ‚