A
Senhora do Retrato
Os
retratos a óleo fascinam-me. E ao mesmo tempo
assustam-me. Sempre tive medo que as pessoas saíssem
das molduras e começassem a passear pela casa. Para
falar verdade, estou convencido que isso aconteceu
algumas vezes. Em certas noites, quando eu era pequeno,
ouvia passos abafados e tinha a sensação de que a casa
ficava subitamente cheia de presenças. Ainda hoje não
gosto de atravessar os longos corredores das velhas
casas com grandes retratos pendurados nas paredes. Há
olhos que nos seguem do alto e nunca se sabe o que de
repente pode acontecer.
Havia
na casa da tia Hermengarda um quadro deslumbrante.
Ficava ao cimo das escadas, à entrada do corredor que
dava para os quartos de dormir. Mesmo assim, rodeado de
sombras, irradiava uma luz que só podia vir de dentro
da dama do retrato. Não sei se da blusa muito branca,
se dos olhos, às vezes verdes, às vezes cinzentos. Não
sei se do sorriso, às vezes alegre, às vezes triste.
Eu parava muitas vezes em frente do retrato. Era talvez
o único que não me assustava. Creio até que dele se
desprendia uma luz benfazeja, que de certo modo me
protegia.
Mas
havia um mistério. Ninguém me dizia quem era a senhora
do retrato. Arminda, a criada velha, benzia-se quando
passava diante do quadro. Às vezes fazia
figas
e estranhos sinais de esconjuração. A prima Luísa
passava sem olhar.
-
Essa pergunta não se faz – disse-me um dia em que lhe
perguntei quem era aquela senhora.
Percebi
que não gostava dela e que era um assunto proibido. Até
a minha mãe me ralhou e me pediu para nunca mais fazer
tal pergunta. Mas eu não resistia. Por vezes
descaía-me
e dava comigo a perguntar quem era a senhora dos olhos
verdes, quase cinzentos, que me sorria de dentro do
retrato.
Com
a minha tia-avó, eu tinha uma relação especial. Ela
lia-me histórias e poemas inquietantes. Creio que troçava
das convenções, talvez das próprias pessoas. Por
vezes era difícil saber quando estava a sério ou a
brincar. Apesar de já ser muito velha, tinha um sentido
agudo do
ridículo.
Foi a primeira pessoa verdadeiramente subversiva que
conheci. Era óbvio que
tinha
um fraco
por mim. Pelo menos era o único membro da
família a quem ela tratava como um igual. Dormia no
andar de baixo e nunca subia as escadas. Talvez por isso
eu nunca lhe tinha perguntado quem era a senhora do
retrato.
Um
dia, farto já de tanto mistério e ralhete e,
sobretudo, das gaifonas da Arminda e do ar empertigado
da prima Luísa, não me contive e perguntei-lhe. A
minha tia sorriu. Depois levantou-se, pegou no molho de
chaves que trazia preso à cintura, abriu uma gaveta da
escrevaninha e tirou um álbum muito antigo. Voltou a
sentar-se e lentamente começou a mostrar-me as
fotografias. Eram quase todas da senhora do retrato e do
meu primo Bernardo, que há muito tinha partido para a
África do Sul.
Apareciam
juntos a cavalo e de bicicleta. E também de fato de
banho, na praia da Costa Nova. Havia alguns em que o meu
primo estava de smoking
e ela de vestido de noite. Via-se também a tia
Hermengarda, mais nova, por vezes os meus pais, gente
que eu não conhecia. Até que chegámos à senhora do
retrato já de branco vestida.
-
Natacha – murmurou a minha tia, com uma
névoa
nos olhos.
E
depois de um silêncio:
-
Ela chama-se Natália, mas eu gosto mais de Natacha,
sempre a tratei assim. É preciso dizer que a tia
Hermengarda tinha vivido em Moscovo no início da
carreira diplomática do marido e era uma apaixonada dos
autores russos, Pushkine, Dostoievski, principalmente
Tolstoi, que visitou algumas vezes em Isnaia Poliana.
Identificava-se com as personagens de Guerra e Paz. Creio que amava secretamente o príncipe André e
gostava de ter sido Natacha. Falava muito da alma russa.
Era uma propensão do seu espírito.