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Olhe
que foi mesmo por acaso! Quando saí de casa, nem pensava em
passar por aqui. Mas depois tive de ir ali ao Montepio
levantar a minha
pensão, e lembrei-me de
dar uma palavrinha
ao Paulito. Para mim ele há-de ser sempre o Paulito...
Olhe que foi dos melhores alunos que eu tive! Uma pena não
ter continuado a estudar, uma pena! Se fosse hoje, nada
disso tinha acontecido, mas naquele tempo... E eu lembro-me
que a família dele passava muitas dificuldades, o pai ora
estava empregado ora desempregado, e além disso sofria do
coração, havia dias que quase nem se podia mexer. A gente
bem lhe dizia para ele ir ao médico, mas onde é que havia
médico, e onde é que havia dinheiro para médico. «Isto
é tudo nervos», dizia ele. Só quando morreu é que se
soube que era do coração que sofria. Mas
então a nossa conversa vai ser sobre o 25 de Abril de 1974,
não é? Nessa altura eu já não estava na escola onde o
Paulo andou, tinha sido colocada mais cá para baixo, numa
aldeia chamada Vale de Mu, lá para a serra do Caldeirão.
Aquilo era uma terra onde não havia nada, nem vinha no
mapa, a escola não tinha condições nenhumas, mas
nenhumas! Agora já estou reformada, como deve calcular, mas
quando ainda estava no activo e ouvia colegas meus
queixarem-se das más condições das escolas onde
ensinavam, só tinha vontade de os levar a Vale de Mu para
eles verem o que era uma escola degradada. Não que as
nossas escolas de agora estejam todas bem, não é isso, mas
comparadas com a de Vale de Mu são o paraíso! Se calhar
essa escola hoje até já nem existe, se calhar até já
fechou, como tantas por esse país fora. Como
já referi a escola não tinha nada. E quando eu digo nada,
é nada mesmo. Olhe Pois
lá em Vale de Mu nem o retrato do Marcelo Caetano nem o do
Américo Tomás havia. Nem isso, que o Ministério queria
sempre que não faltasse, para os meninos saberem logo de
pequeninos quem é que mandava em todos! Não
é que os retratos dos homens me fizessem falta, quanto
menos olhasse para eles, melhor. Mas isto é só para a
menina ver como aquela escola era desprezada. Olhe que não
havia um pau de giz! Nem sequer o mapa de Portugal! Eu
queria dar aritmética e geometria, e nem uma caixa com os
pesos ou com as figuras geométricas lá havia, como havia
noutras escolas. Nada. O que se chama nada. Então
eu, pacientemente, escrevia todos os meses uma carta ao
Ministério e explicava que a escola não tinha material, e
sem material como é que eu podia ensinar as crianças, e lá
dizia também, para ver se os comovia, que a escola nem os
retratos do senhor presidente da República e do senhor
presidente do Conselho tinha nas paredes, e que era uma
vergonha para o país uma escola naquele estado, santo Deus. E
do Ministério, nada. O silêncio mais completo. E
lá vinha outro mês, e lá voltava eu a escrever para o
Ministério, a mandar ofícios, a fazer pedidos a toda a
gente – e do Ministério apenas o silêncio. Foram
anos terríveis. Eu já não sabia como inventar maneiras de
ensinar os miúdos. Já viu como é que se ensina Geografia
de Portugal sem um mapa? Ensinar-lhes as serras, os rios, as
linhas de caminho-de-ferro – sem lhes mostrar no mapa
onde ficavam? Coitadinhos, eles sabiam tudo de cor, mas não
faziam a mínima ideia onde é que tudo aquilo era! E o meu
ordenado, claro, tão pequeno que nem dava para pagar o
material do meu bolso. Ainda paguei muitos paus de giz, e um
apagador para o quadro, e alguns cadernos para aqueles que
não tinham mesmo possibilidades nenhumas, mas não podia ir
muito além disso. Tinha dois filhos para criar, e fiquei viúva
muito cedo, como o Paulo lhe deve ter dito. A vida era muito
difícil também para mim. Mas
nunca desisti. Todos os meses lá ia a carta para o Ministério.
Isto durante anos! Só em selos devo ter gasto uma pequena
fortuna! Até
que um dia, já eu desesperava de tudo, aparece-me junto da
escola uma carrinha, a trazer, finalmente, material que o
Ministério mandava. Só não deitei foguetes porque não os
tinha, mas senti-me rebentar de felicidade. Até que enfim
eu ia poder ser uma professora a sério! Estava tão feliz,
mas tão feliz, que nem estranhei a pressa que o chofer
tinha em despachar aquilo, e nem liguei, quando ele disse
que em Lisboa tinha havido qualquer coisa esquisita, tinha
encontrado muita tropa na rua quando de lá saíra, e aquilo
não lhe parecera normal. Acho
mesmo que nem ouvi bem o que ele disse. O que eu queria era
abrir os pacotes, ver o material, colocá-lo na sala, e
poder dar, finalmente, uma aula decente às crianças. A
menina até pode nem acreditar, porque esta história parece
mentira, mas juro que foi assim mesmo que aconteceu: a
senhora Aurora, que era quem limpava a escola, a chegar ao
pé de mim e a dizer que na rádio se falava de uma revolução,
de um Movimento das Forças Ainda
hoje, que já se passaram 25 anos, de cada vez que vejo, na
televisão, documentários sobre o 25 de Abril, com o
chaimite
que levou o Marcelo Caetano e o Américo Tomás do
Quartel do Carmo, só me lembro do retrato deles, no chão,
à entrada da escola, e do meu espanto no meio de tudo.
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