Os Anos 90
João Paulo Feliciano, The Big Red Puff Sound Site, 1994. Colchão em oleado vermelho, cheio com esferovite; 2 lâmpadas fluorescentes azuis; 6 auscultadores suspensos do tecto; leitor de cd. Banda Sonora: "Teenage Drool", Tina And The Top Ten. 5 x 5 m. (dim. da sala). Col. PCR Pedro Falcão.
No contexto internacional a década de 90 inicia-se com uma viragem política cuja afirmação passa sobretudo pela atitude crítica face ao movimento neo-expressionista de "retorno à pintura" que marcara o início da década anterior.
Embora no panorama nacional se postule uma adesão a essa viragem discursiva, de um modo explícito no caso de alguns grupos de artistas, continua a fazer-se sentir um desfasamento entre o conteúdo postulado e a forma segundo a qual esse mesmo conteúdo se exprime. Por outras palavras, no contexto internacional a recusa da "objectualização" da obra de arte exprime-se, naturalmente, por uma desmaterialização, inaugurando uma década de produção tendencialmente não-objectual, que se manifesta no recurso alargado ao vídeo e à vídeo-instalação e em novas atitudes, nomeadamente a generalizada atitude etnográfica com que os artistas abordam, doravante, as questões relativas à produção, distribuição e consumo das obras de arte.
O paradigma do artista enquanto etnógrafo foi, aliás, uma tentativa de reconfiguração do discurso benjaminiano do "artista enquanto produtor" recolocando no papel do Outro um outro cultural, cuja alteridade se define em termos de identidade e não já em termos de classe socio-económica. Ora o outro enquanto identidade cultural nunca existiu em Portugal, país que se familiarizou com o termo "proletariado" na década de 70 quando a "terceira vaga" (Alvin Toffler) já estava prestes a tornar obsoleta a própria noção de trabalho.
País, ainda, cuja memória colonial permanece até hoje escamoteada e onde o ensino continua assente em estratégias de mistificação. Nunca confrontado com vagas de imigração irredutíveis, e nunca confrontado com nenhum movimento feminista de peso, Portugal permaneceu, no seu isolamento internacional, virtualmente alheio às ondas de choque que abalaram o século XX. Devido à longevidade da ditadura salazarista, Portugal não viveu o período moderno. Não será, portanto, de estranhar que a pós-modernidade lhe tenha aparecido como um produto importado.
José Loureiro, Minutos, 1996/97. Óleo sobre tela, 194 x 261 cm. Col. Banco Privado Português. Vitor Branco.
Pedro Cabrita Reis, Rio, 1992 (Documental). Mármore, 255 x 630 x 2530 cm. Col. do artista. Dirk Pauwels.
A nível nacional a década inaugura-se com a exposição 10 Contemporâneos (Serralves, 1992), comissariada por Alexandre Melo, que reúne 10 artistas (Gerardo Burmester, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Pedro Casqueiro, Rui Chafes, José Pedro Croft, Pedro Portugal, Pedro Proença, Rui Sanches e Julião Sarmento) apresentados como protagonistas da cena artística nacional na viragem dos anos 80 para os anos 90.
No ano seguinte, também em Serralves, e com o objectivo mais específico de criar uma imagem de marca da década de 90, apresenta-se Imagens para os anos 90 (Serralves, 1993), comissariada por Fernando Pernes e Miguel von Hafe Pérez, reunindo pela primeira vez um grupo de artistas emergentes, Miguel Palma, Paulo Mendes, João Paulo Feliciano, Fernando Brito, João Louro, António Olaio, João Tabarra, Carlos Vidal, Manuel Valente Alves, Daniel Blaufuks, Miguel Ângelo Rocha, Joana Rosa, Rui Serra ou Sebastião Resende, entre outros, entre os quais estão muitos dos nomes que irão moldar a arte portuguesa dos anos 90.
Fernanda Fragateiro Instalação na Sala Sul, Museu de História Natural, Lisboa, 1990. Madeira, gesso, cimento, tijolo e alumínio, 25 x 10 x 5 m. Cortesia da artista. Pedro Letria.
Ana Vidigal, s/título, 1991. Técnica mista sobre tela, 180 x 200 cm. Col. Centro de Arte / Col. Manuel de Brito. Mário Soares.
A exposição inaugura, também, uma polémica que percorre toda a década entre duas formas de entender a prática artística: uma preconizando uma atitude mais essencialista e a-histórica, a outra mais alerta em relação às questões e problemas da conjuntura cultural e social, advogando uma prática artística interventiva e comprometida.
Augusto Alves da Silva, Que bela família, 1992. Série de 6 fotografias, Fujicrome, 75 x 93 cm. (cada). Cortesia do artista. Cortesia do artista.
O extremar destas posições denota, antes de mais, uma condição periférica que Portugal estava ainda longe de ultrapassar, (re) produzindo assim em solo nacional um debate a que a Europa já havia assistido na década de 30.
No entanto, e perante uma dinâmica da alteridade, a década ir-se-á definir por estratégias de ruptura que se manifestam a vários níveis: no contexto estético e artístico, em sentido estrito; no contexto geracional, com a geração de 90 a afirmar-se contra a geração de 80; no contexto institucional, com os artistas formados pelo Ar.Co (que conhece um novo impulso sob a direcção de Manuel Castro Caldas) a competirem com os artistas formados pela FBAUL. Contudo, vale a pena sublinhar que é, afinal, a ausência de real alteridade que permite e proporciona esta estrutura dicotómica que mascara, em última análise, a ausência de um real debate e de uma real dialética de produção-recepção.
Por outro lado, por razões de ordem sociológica como sejam a escassez de oportunidades de carreira, a dificuldade de internacionalização e a debilidade do mercado, a década de 90 vive o paradoxo da não-correspondência entre a intenção e o acto. Assim constata-se que os artistas nunca de facto abandonam a produção objectual acrescentando-lhe mesmo uma escala institucional, a "escala museológica" que reflecte uma apurada consciência da existência e desejo de articulação com um "público consumidor" específico e constituído pelas novas instituições públicas. Uma circunstância reforçada por um fenómeno social mais vasto: na sequência do "boom" económico dos anos 80, a sociedade portuguesa vê florescer uma nova classe abastada, cuja posição social recém-adquirida irá demonstrar um extraordinário apetite pelo consumo de produtos de prestígio. Se por um lado esse facto funciona como um incentivo à produção em geral, por outro condiciona a mesma, impondo uma exigência de convencionalidade distante de veleidades experimentalistas que não sejam enquadradas a priori por um discurso de legitimação.
Daniel Blaufuks, Auto-Retrato (Cérebro), da série O Livro do Desassossego, 1996. Duratrans e negatoscópio, 46 x 132 x 15 cm. (3 elementos). Cortesia do artista. Cortesia do artista.
Carlos Nogueira, Chão de Cal, projecto 1992, realização 1994. Madeira, ferro, cimento, cal, luz e som dos passos, 24 m. x 9m x 4,20 m. Museu de História Natural / Sala do Veado. Col. do artista. Carlos Nogueira.
Assim, e de certa forma contra a corrente mais visível no contexto internacional, os artistas portugueses que veiculam um posicionamento político na sua prática artística fazem-no sobretudo ao nível do conteúdo expresso nas suas obras. Veja-se, a título de exemplo, a produção de Paulo Mendes, Pedro Cabral Santo ou dos Entertainment Co. (João Louro e João Tabarra), regra geral claramente objectual, em termos de prática plástica, e portanto, no limite, reiterativa da noção de arte como objecto mercantil apesar da convicta politização da sua postura e temáticas.
Rui Chafes, A Manhã IV, 1992/93. Ferro, 39 x 37 x 75 cm. Col. Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.
Ana Jotta, Roger, 1995. Toalheiro mecânico desactivado, toalha bordada, 78 x 37 x 21 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP José Manuel Costa Alves.
Neste sentido, boa parte da produção portuguesa da primeira metade da década de 90 parece enredada no paradoxo da adesão a uma postura warholiana cínica, apregoando, no entanto, uma postura brechtiana crítica e subversiva. No entanto devemos aqui assinalar dois factores não desprezíveis nesta conjuntura. Por um lado, toda a produção artística dos anos 90 caminha, de certa forma, sobre o fio da navalha, no que diz respeito à distinção operativa entre uma postura crítica e uma actuação reiterativa. Sendo que a dificuldade da gestão de uma atitude de apropriação dos signos ditos imperialistas que não se torne performativa dos mesmos se faz sentir um pouco por todo o lado. Em visão retrospectiva podemos notar que, independentemente das conquistas dos agentes, uma disposição social mais vasta condiciona a leitura, não sendo de todo a mesma coisa praticar a apropriação na década de 30 e praticar a apropriação na década de 90. Por outro lado, a vaga neo-conceptual da década gerou um mal-entendido ao nível da legibilidade das obras postulando uma hegemonia do assunto que obscureceu a percepção de outros níveis de significação. Tal problema faz-se sentir mais fortemente em países que uma condição periférica torna mais vulneráveis a défices de informação ou à deficiente gestão da mesma, reproduzindo em geral tendências hegemónicas.
Digno de nota é o facto de os artistas que adoptaram uma postura conducente a politizar a forma e não apenas o conteúdo das suas obras, a técnica e não o tema, serem aqueles cuja vivência pessoal e profissional transcende o território nacional, nomeadamente Júlia Ventura, João Penalva ou Ângela Ferreira. Através destes artistas faz-se notar uma sempre presente linha de continuidade com a anterior geração, representada pelos próprios, por António Olaio, Ana Jotta ou Helena Almeida, e que de algum modo radica nos anos 70, com Ernesto de Sousa.
Regressando ao plano cronológico devemos lembrar que a exposição Imagens para os anos 90 foi precedida por uma outra, apresentada no Convento de São Francisco em Beja e na qual os portugueses João Paulo Feliciano e Carlos Vidal, e os espanhóis Pedro Romero e Siméon Sáiz, expunham o seu Manifesto por uma alternativa politizada para a arte portuguesa no início dos anos 90. Ainda dentro desta orientação discursiva Jorge Castanho organizou em Beja, na antiga Metalúrgica Alentejana, em 1995, a exposição Espectáculo, Exílio, Deriva, Disseminação: um projecto em torno de Guy Debord com a participação de Fernando Brito, Carlos Vidal, João Felino, Paulo Mendes, João Tabarra, João Louro, Miguel Palma e Entertainment Co.
Devemos ainda lembrar que, se é verdade que Portugal se mantém numa condição periférica, é também verdade que todo um conjunto de novos factores começa, lentamente, a alterar essa situação. Ainda em 1993 uma exposição introduz o público português ao trabalho de um conjunto de artistas emergentes que viria a marcar toda a arte internacional. Integrada nas 2as Jornadas de Arte Contemporânea (Porto), comissariadas por João Fernandes, trata-se da exposição A Pasta de Walter Benjamin, comissariada por Andrew Renton que apresentou alguns dos artistas britânicos que viriam a formar a famosíssima geração dos Young British Artists (YBA): Douglas Gordon, Christine Borland, Graham Gussin ou Jane & Louise Wilson, entre outros.
Colmatando, em parte, o desfasamento entre Portugal e os principais centros europeus, alguns comissários e instituições prosseguem um aturado trabalho de divulgação. Entre eles encontramos os já mencionados Miguel von Hafe Pérez e João Fernandes, e ainda Pedro Lapa, Delfim Sardo, Isabel Carlos ou Jürgen Bock.
Ângela Ferreira, Portugal dos Pequenitos, 1995. 1 caixa de luz vertical (alumínio, plexiglass, vinil, lâmpadas; 20 x 42 x 180 cm), 1 escultura (madeira, PVC, mangueira; 850 x 120 x 80 cm), 1 plano do parque (papel, cor; 45 x 40 cm), 1 desenho (grafite sobre papel; 25 x 120 cm). Col. Banco Privado Português. Ângela Ferreira.
Miguel Palma, Ecossistema, 1995. Casulo em mica insuflada por ventilador, focos, ferro, alumínio, tubagens de ventilação, acrílico, temporizador, Kits de casas e fábricas à escala 1/100, 210 x 210 x 450 cm. Col. Institut d´Art Contemporain FRAC Rhôn. DR/ Cortesia do Artista.
Isabel Carlos comissaria para a Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura a exposição Depois de Amanhã, apresentada no recém-inaugurado Centro Cultural de Belém, espaço onde, no mesmo ano, é apresentada a não menos importante mostra Múltiplas Dimensões. Pedro Lapa inicia no Museu do Chiado o programa de exposições Interferências que, a partir de 1996, vai apresentar projectos de artistas como Miguel Palma, Augusto Alves da Silva, Gillian Wearing, Jimmie Durham, Henrik Plenge Jakobsen ou Stan Douglas. Imbuídas do ar do tempo estas iniciativas funcionam em Portugal como ilhas de contemporaneidade, apresentando visões e tendências que virão a moldar o panorama português posterior.
Xana, Lar Doce Lar no Quarto 4, 1994. Pintura acrílica sobre MDF, 182 x 276 x 4 cm. Col. do artista. DR/ Cortesia Culturgest.
Xana, Lar Doce Lar no Quarto 5, 1994. Pintura acrílica sobre MDF, 183 x 275 x 5 cm. Col. Mário Martins. DR/ Cortesia Culturgest.
A década de 90, na sequência da guerra no Golfo, arranca com uma atmosfera geral de crise e recessão económica em que uma nova vaga de galerias - Alda Cortez, Graça Fonseca ou Palmira Suso -, cujos projectos tinham sido concebidos num momento anterior, se vê confrontada com um contexto económico particularmente difícil. Ao longo dos anos 90, algumas das galerias mais destacadas da década anterior encerram, como é o caso da Nasoni, bloqueada por graves questões financeiras, ou da Valentim de Carvalho. A Galeria Hugo Lapa, que lhe sucedera, encerra no final de 1997 tal como a Alda Cor tez e Graça Fonseca. Entretanto vêm adquirindo protagonismo um conjunto de galerias com uma atitude mais ecléctica e mais adaptada às solicitações do mercado, privilegiando a eficácia económica em relação à legitimação cultural. É o caso das galerias Fernando Santos e Quadrado Azul, ambas do Porto, tal como uma série de outras novas galerias - André Viana (entretanto encerrada) Canvas (que deu lugar à Graça Brandão) e Presença - cuja abertura, contrastando com os encerramentos em Lisboa, transformam o Porto, no final dos anos 90, no principal centro galerístico do país. Aí se encontram também a Pedro Oliveira, uma delegação da Módulo e a Zen, sucursal da III. De resto, estas três galerias são, a nível nacional, as únicas que prolongam as suas dinâmicas das décadas anteriores.
Miguel Soares, Untitled (VR Trooper), 1996. Chapa zincada, acrílico, turfa irlandesa, relva artificial, VR Trooper, base rotativa, strobe-light, detector de movimento, 130 x 250 x 250 cm. Greenhouse Display, Estufa Fria, Lisboa. Col. Ivo Martins. DR/ Cortesia do artista.
Pedro Tudela, S/título da série Rastos, 1997. Bobines de fita magnética e metais variados, dim. variáveis. Vista da instalação na Fundação Cupertino de Miranda, Vila Nova de Famalicão. Col. Fundação de Serralves. ZM.
Miguel Soares, Untitled (VR Trooper) (pormenor) DR/ Cortesia do artista.
Não obstante, desde 1992 Lisboa tinha começado a esboçar um circuito alternativo com a criação da galeria ZDB, cujo papel será fundamental na afirmação dos percursos de muitos dos artistas que irão surgir ao longo da década. Ainda em 1992 surge também uma alternativa ao ensino facultado tanto pela FBAUL como pelo Ar.Co ao ser criada a Escola de Artes Visuais Maumaus, a qual virá mais tarde, sob a direcção de Jürgen Bock, a ser responsável pela formação de toda uma tendência artística, vincadamente centro-europeia e ancorada no conceito de "Platform art". Nesse mesmo ano Pedro Cabrita Reis é convidado para a Documenta de Kassel e inaugura uma exposição antológica no CAM da Gulbenkian.
Em 1993, um grupo auto-organizado de artistas segue as pegadas dos seus predecessores britânicos e resolve tomar nas suas próprias mãos as decisões relativas às modalidades de exposição. Esses artistas são, entre outros, Paulo Carmona, Pedro Cabral Santo, Tiago Baptista e Paulo Mendes. Após a sua estreia com a colectiva Set Up, apresentada na Faculdade de Letras de Lisboa, prosseguem um consequente programa expositivo que integra, entre outros, eventos como Greenhouse Display (Estufa Fria, 1996), Jetlag (Reitoria da Universidade de Lisboa, 1996), Zapping Ecstasy (CAPC, 1996), X-Rated (ZDB, 1997), O Império Contra-Ataca (ZDB, 1998), (A)casos (&)materiais (CAPC, 1999), Plano XXI (G-Mac, Glasgow, 2000), Urban Lab - Bienal da Maia (2001), geralmente comissariados por Paulo Mendes ou Pedro Cabral Santo.
Paulo Mendes, L´Art de Vivre (Portrait) / Ken C´est Moi, Barbie C´est Moi, Action Man C´est Moi, 1997/98. Fotografia a cores, 12 partes, 39, 5 x 29, 5 cm. (cada), Ed. 6 exemplares. Col. Fundação Portugal Telecom; Col. Ivo Martins. Arquivo Paulo Mendes.
Pedro Cabral Santo, Exit (For You Guys), 1998-99. Vídeo, cor, som, 20´. Vista da projecção na Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2002. Col. particular. DMF.
João Tabarra, This is not a drill (no pain, no gain) (detalhe), 1999. Fotografia a cores, 180 x 275 cm. MNAC. Cortesia do artista.
Através destas exposições toda uma nova vaga de artistas será apresentada, juntando-se nomes como Rui Toscano, Miguel Soares, Carlos Roque, Alexandre Estrela, ou Rui Valério, aos já mais afirmados Ângela Ferreira, João Tabarra, Miguel Palma, João Louro, Entertainment Co., Paulo Mendes, João Paulo Feliciano, Fernando José Pereira, Pedro Cabral Santo, Augusto Alves da Silva, Rui Serra, Cristina Mateus e Miguel Leal.
António Olaio, What happened to Henri Matisse, 1997. Óleo sobre tela, 90 x 250 cm. Col. Gerardo Burmester. António Olaio.
Paralelamente, adquire notoriedade um outro grupo de artistas, maioritariamente oriundos do Ar.Co, integrando, entre outros, Francisco Tropa, José Drummond, Edgar Massul, André Maranha, Rui Calçada Bastos e Noé Sendas. A inicial rivalidade entre os dois grupos, em grande parte derivada do contexto escolar, ir-se-á esbater com a crescente profissionalização do meio, a qual irá ainda produzir uma triagem assaz diversa da original.
Entretanto convém não esquecer que a renovação de atitudes e processos convive com o desenvolvimento de pesquisas no âmbito das disciplinas mais consagradas. Destaque-se o aprofundamento da exploração das possibilidades contemporâneas da pintura, na diversidade das suas dimensões e tradições, em vários artistas cujas obras se vem desenvolvendo de modo consistente. Vejam-se a original evocação da história da pintura por Miguel Branco, a reinvenção da paisagem por João Queiroz, a exploração das texturas abstractas por João Jacinto, o efeito surpreendente da peculiar técnica pictórica de Gil Heitor Cortesão, o vigor do registo narrativo pulsional de Fátima Mendonça ou a evolução do trabalho de José Loureiro no sentido de uma sistemática demonstração pela prática do inesgotável potencial da pintura, para além de todas as codificações formais.
Da maior importância na definição do panorama artístico português e do seu coeficiente de profissionalização foi a criação do Ministério da Cultura, em 1995, e do Instituto de Arte Contemporânea. Dirigido desde o início por Fernando Calhau, o IAC terá um papel fundamental na dinamização dos circuitos de produção e divulgação de que a arte portuguesa tanto carece, retomando em 1997 a participação nacional na Bienal de Veneza (Julião Sarmento, com comissariado de Alexandre Melo).
Alexandre Estrela, Biovoid, 1998. Fibra de vidrio e holograma, 500 x 250 cm. Apresentado na Sala do Veado. Col. do artista. Alexandre Estrela.
Rui Toscano, Infinity, 2001. Retroprojecção vídeo, DVD, 35´´, loop, 350 x 150 cm. Cortesia do artista / Cristina Guerra Contemporary Art. Video Still - Cortesia do artista.
Outros acontecimentos convergem no mesmo sentido, desde a constituição da Colecção Berardo e respectiva inauguração do Sintra Museu de Arte Moderna, até à decisiva inauguração do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, com a exposição internacional Circa 1968, comissariada por Vicente Todolí e João Fernandes.
Não será, portanto, exagero afirmar que esta segunda metade da década de 90 representa um imenso progresso em termos institucionais. Para além da Fundação de Serralves, assistimos à criação ou dinamização do Centro Cultural de Belém, da Culturgest e do Museu do Chiado, sem esquecer o papel desempenhado pela Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento.
Uma política cultural mais consciente da contemporaneidade cosmopolita permitiu construir uma base mais sólida de circulação e programação, sendo que, ao contrário do que se costuma afirmar, os artistas portugueses adquiriram uma razoável plataforma de apoios institucionais, a qual permite uma relativa facilidade no acesso a bolsas e subsídios.
Contudo, a falta de grandes coleccionadores sediados em território nacional funciona ainda e sempre como uma desvantagem, limitando as ambições dos agentes culturais a um horizonte local que, em última análise, pode manietar as aspirações de internacionalização de grande parte dos artistas.
Estando a sociedade civil, neste caso, desfasada do Estado, Portugal continua a carecer dos meios de afirmação necessários para impor uma imagem a nível internacional. Se é bem verdade que muitos artistas conseguem encontrar canais de acesso e de integração em circuitos internacionais, é também verdade que existe uma enorme dificuldade de sustentação dos mesmos a longo prazo.
Hoje, como antes, a arte contemporânea é um produto de importação, não tendo o país conseguido, ainda, desenvolver estratégias de exportação ambiciosas e consistentes.
Ficha Técnica | Credits
Os Anos 70
Julião Sarmento, Faces (detalhe), 1976. Filme Super 8, cor, sem som, 44´22´´, dim. variáveis. Col. Van Abbemuseum.José Manuel Costa Alves.
Eduardo Luiz, O 7º disfarce de Zeus, 1972. Óleo sobre tela, 194 x 113 cm. Col. Centro de Arte / Col. Manuel de Brito.DR/ Cortesia Galeria III.
Nas vésperas da revolução democrática de 1974, Portugal vivia uma conjuntura bastante desfavorável. Em primeiro lugar, colocava-se a questão de uma guerra colonial prolongada e inconclusiva. A tardia e pouco eficaz abertura do sistema político promovida pelo governo de Marcelo Caetano desde 1968 e o desgaste das estruturas institucionais do Estado Novo, com um núcleo político incapaz de resolver o impasse a que o país chegara, geravam um governo caracterizado pela lenta agonia da luta pela sobrevivência, extremamente debilitado perante a comunidade internacional. Em segundo lugar, a insatisfação geral e as dificuldades económicas e sociais da população caracterizavam a realidade isolacionista de um país que se revia ainda na famosa expressão "orgulhosamente sós", comandado por uma classe dirigente dependente de valores políticos e ideológicos ultrapassados.
Neste contexto, martirizada pela longevidade do regime, a sociedade portuguesa sofreu os efeitos negativos da intervenção política na dinâmica cultural. A relativa abertura do sistema no período final do regime reforçou inclusivamente a percepção do abismo que separava a realidade social e artística do nosso país da dinâmica internacional da contemporaneidade.
De qualquer modo, não deve ficar a ideia de que antes do levantamento militar democrático de 25 de Abril nada existia e que depois tudo se realizou e concretizou com sucesso, pois a ausência de adequadas políticas culturais foi contínua e persistente.
No que diz respeito ao contexto artístico e, em particular, à realidade das artes plásticas, o período de transição ideológica e política que caracterizou o nosso país na década de 70 apresenta uma complexa multiplicidade de referências, contribuindo indirectamente para abrir uma nova etapa na actividade artística e cultural. Se é verdade que as reformas empreendidas durante o período marcelista possibilitaram uma maior aproximação à situação internacional, não é menos certo que a política cultural de base traduzia uma ineficácia institucional expressa na falta de museus ou centros de arte contemporânea, na debilidade ou inexistência de mercado e na quase total ausência do apoio do Estado às tendências estéticas contemporâneas.
Ainda assim, com as medidas económicas tomadas pelo novo governo de Marcelo Caetano, a par das encomendas para a sede da Fundação Gulbenkian e da criação dos Prémios Soquil (1968-1972), o mercado de arte começa a dinamizar-se e a criar uma clientela que vai despertando para a arte moderna em detrimento de um gosto oitocentista enraizado. Contudo, não basta o período de alta especulativa do valor das obras de arte a que se assistiu em meados de 1973 para concluirmos que existia uma dinâmica efectiva e consistente de mercado.
Este pequeno "boom" em torno do comércio de arte em Lisboa e Porto traduziu-se na proliferação de galerias e outros espaços expositivos. No final da década de 60 e ao longo da seguinte, no Porto inauguram a Zen (1970) e o Módulo-Centro Difusor de Arte (1975), em Lisboa a Buchholz (a partir de 1965, na R. Duque de Palmela), a Dinastia (1968), a Judite da Cruz, a S. Mamede (1969), a Quadrum (1973) e o segundo espaço do Módulo (1979), e a Ogiva em Óbidos (1970). A par da acção desenvolvida na divulgação e formação de vários artistas por estas galerias, em particular pela Galeria Quadrum e pela Galeria Ogiva que desenvolveu uma estratégia de descentralização, o CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra) teve igualmente um papel importante na experimentação e promoção de novas atitudes estéticas, com acontecimentos tão significativos como Minha Nossa Coimbra Deles (1973), Arte na Rua ou 1000001º Aniversário da Arte (1974). Estes actos simbólicos, "happenings" e "performances" pretendiam alertar a comunidade para o atraso das instituições e gerar a necessária consciencialização da urgência do trabalho a realizar.
Sá Nogueira, Erotropo, 1970. Técnica mista sobre tela foto-sensível, 77 x 121 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP.DR/ Cortesia Fundação Calouste Gulbenkian.
Pires Vieira, Des-Construções, 1974. Tela de algodão, esmalte sintético, corda, dim. variáveis. Col. Fundação de Serralves.Catarina Costa Cabral.
Nikias Skapinakis, Encontro de Natália Correia, Fernanda Botelho e Maria João Pires, 1974. Óleo sobre tela, 140 x 110 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP.DR/ Cortesia Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP.
João Cutileiro, Maquete de D. Sebastião - I, 1972. Mármore, 46 x 15 x 15 cm. Col. particular.João Cutileiro Jr.
De suma importância foi a reestruturação da secção portuguesa da AICA (Associação Internacional de Críticos de Arte), em 1969, mas, sobretudo, a emergência de um discurso crítico e actual por parte de Ernesto de Sousa. Crítico, comissário e artista, Ernesto de Sousa foi uma figura controversa no país de então, desenvolvendo uma estratégia de ruptura e descontinuidade para com os cânones estabelecidos. Depois de uma incursão pelo cinema e pela estética neo-realista enveredou por uma arte experimental com um forte cunho conceptual, em plena sintonia com o que se fazia fora do país. Visita a Documenta de Kassel em 1972, onde conhece pessoalmente Joseph Beuys e contacta com as ideias de Harald Szeemann, facto que marcaria o seu pensamento crítico e contribuíria para trazer novas problemáticas para o debate nacional, tais como a desmaterialização da obra de arte, a noção de "obra aberta", o artista como "operador estético" ou o papel activo do espectador. Da sua actividade como comissário e promotor de projectos devemos considerar os Encontros do Guincho (1969), Nós não estamos algures (1969), O meu corpo é o teu corpo (1971) e as exposições integradas na AICA Do Vazio à Pró-Vocação (1972) e Projectos-Ideias (1974), para além do marco histórico da década: a Alternativa Zero (1977).
As mortes de Eduardo Viana (1967) e de Almada Negreiros (1970), assim como a primeira grande retrospectiva de Vieira da Silva no nosso país, na Fundação Gulbenkian (1970), marcam, por assim dizer, o início de um novo período no panorama da arte nacional.
Ao nível das publicações também assistimos durante a primeira metade da década de 70 ao aparecimento da revista Colóquio-Artes (1971-1997), sob a direcção de José-Augusto França, e no Porto, em 1973, à Revista de Artes Plásticas. No ano seguinte seria, também da autoria de José-Augusto França, publicada A Arte em Portugal no Século XX, obra de referência para a historiografia artística nacional.
Ainda em 1973 - ano da morte de Picasso - três acontecimentos importantes merecem uma referência particular.
Durante o mês de Abril realizou-se a exposição 26 Artistas de Hoje, reunindo na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) alguns dos trabalhos do conjunto de artistas distinguidos pelos Prémios Soquil.
Em Setembro desse ano era inaugurado, em Lagos, o monumento a D. Sebastião. Não é fácil encontrar uma figura cuja carga histórica, mítica e cultural, melhor represente a atmosfera passadista, pasmada e bloqueadora que impregnou a sociedade portuguesa durante largas décadas. Ao mesmo tempo, a figura de D. Sebastião foi uma das grandes fontes inspiradoras de uma atitude irracionalista, saudosista, reaccionária e imobilista que por muito tempo marcou correntes influentes do pensamento português. Estas considerações histórico-culturais ajudam a explicar porque é o D. Sebastião de João Cutileiro uma obra-chave deste período. Partindo da experiência técnica das suas "bonecas articuladas", o autor apresenta-nos o jovem rei como o menino que questiona o mito imperial dos portugueses, numa renovação da estatuária que definiria o novo limiar da escultura portuguesa, destronando em definitivo a linguagem escultórica do regime, protagonizada pelo trabalho de Francisco Franco. A inserção física da estátua numa praça de Lagos corresponde ao modo como o adolescente Sebastião pousa no chão o elmo e abre à sua volta um olhar claro e limpo, através do qual o seu corpo se deixa absorver pela luz.
José de Guimarães, Máscara com Tatuagens, 1973. Acrílico sobre tela, 100 x 81 cm. Col. Museum Würth.José Manuel Costa Alves.
Eduardo Batarda, What´s in a nose?, 1973. Aguarela sobre tela, 77,3 x 58,8 cm. Col. Banco Privado Português.DR/ Cortesia Banco Privado Português.
João Abel Manta, MFA - Sentinela do Povo. Postal, sem data. Col. Museu da Cidade - CML.DR/ Cortesia Arquivo Fotográfico do Museu da Cidade.
De modo mais óbvio, outros eventos artísticos anunciam a iminência da mudança política. Em Dezembro de 1973 inaugura na SNBA a Exposição 73. Na sala de entrada uma representação escultórica realista de um soldado morto com a farda da guerra colonial - Jaz Morto e Arrefece de Clara Menéres. Por trás dele, na parede, um friso de pardos rostos silenciosos numa pintura de Rui Filipe. Na noite da inauguração uma performance de João Vieira envolvendo uma mulher nua pintada de dourado é ainda matéria de pequeno escândalo.
A 25 de Abril de 1974 é o "25 de Abril". A 10 de Junho, dia de Portugal, 48 artistas juntam-se para comemorar o acontecimento e pintar, em simultâneo, ao vivo, em directo diante do público e das câmaras da televisão um grande painel que tem como tema a liberdade. É um evento ingénuo e um pouco anedótico mas não vale a pena negar-lhe a sua autenticidade emocional e conjuntural. Durante a reportagem alguém diz a Júlio Pomar que a sua pintura é complicada. Pomar responde que a vida também é complicada.
Fernando Calhau, S/ título, # 99. Materialização de um quadrado imaginário, 1974. Fotografia a cor e tinta da china sobre papel fotográfico, (4x) 8,5 x 12 cm. Col. Fundação de Serralves.DR/ Cortesia Fundação de Serralves.
No Porto, uma "comissão para uma cultura dinâmica" formada por artistas plásticos, escritores e poetas realiza nesse mesmo dia o Funeral do Museu Nacional de Soares dos Reis. O protesto - que envolveu cerca de 500 pessoas - era dirigido contra o sistema museológico português em geral, completamente anacrónico.
Os acontecimentos políticos de 74 vieram interromper o ritmo das exposições de artes plásticas, assim como o consequente trabalho da crítica. Das páginas dos jornais quase desaparecem as referências às práticas artísticas, embora a inevitável euforia da movimentação política tenha determinado, ainda que fugazmente, a renovação da participação cultural, com a aspiração a um novo tipo de relacionamento entre artistas e público em geral.
Clara Menéres, Mulher-terra-vida, 1977. Acrílico, terra e relva, 80 x 270 x 160 cm. Vista da instalação na exposição Alternativa Zero, Galeria de Belém.Clara Menéres.
Como é habitual em períodos de agitação política pré- ou pós-revolucionária, vários artistas e práticas culturais foram instrumentalizados pelas mais primárias, anacrónicas e absurdas manipulações ideológicas. Se quisermos fazer um balanço, em termos estéticos, de toda esta agitação política, retenham-se os cartoons de João Abel Manta e os sumptuosos murais do MRPP, quase todos já destruídos.
Entre os alinhamentos estéticos desses anos discutia-se, simultaneamente, a dialéctica entre figurativismo e abstracção, entre a pintura e a arte conceptual (ou as acções pós-conceptuais), e reviam-se as intenções, agora libertas da censura, do surrealismo e do neo-realismo portugueses. Procurava-se nas propostas mais ligadas ao exterior, dos conceptualismos vários às tendências pós-vanguardistas, a marca de uma renovação ou as referências mais evidentes da contemporaneidade. Entre o formulário conceptualista e o registo neo-figurativo reordenavam-se as propostas estéticas dos anos 70, numa tendência crescente para a afirmação dos percursos individuais de cada artista.
Nesta interrogação e revisão da modernidade promoveram-se algumas exposições, retrospectivas, mostras temáticas, decorrentes também da situação política e social do país (a título de exemplo refira-se a exposição Pena de Morte, Tortura, Prisão Política, SNBA, 1975). Divulgaram-se práticas e intenções plurais, revelando a multiplicidade da oferta, numa convivência harmónica entre gerações de artistas, estilos, dinâmicas e referências.
Vitor Pomar, S/título, 1979. Acrílico sobre tela, 340 x 200 cm. Col. Caixa Geral de Depósitos.Laura Castro e Caldas e Paulo Cintra.
Ana Hatherly, As Ruas de Lisboa, 1977. Colagem, 110 x 90 cm. Col. Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP.Mário de Oliveira.
No campo das artes plásticas uma grande exposição - Alternativa Zero, Galeria Nacional de Arte Moderna, Belém, 1977 - encerra o período das convulsões pós-revolucionárias, fazendo o balanço da década de 70 no que diz respeito às experiências artísticas mais vanguardistas. Alternativa Zero, organizada por Ernesto de Sousa, constitui um balanço dos trabalhos que em Portugal se mostraram mais sintonizados com as tendências da evolução da arte contemporânea a nível internacional. Conforme o catálogo descritivo advertia a respeito do evento: "pretende ser 'algo mais' do que uma exposição: ou, encarando as coisas de outro prisma, pretende ser uma exposição aberta, com todas as consequências possíveis 'nesta' sociedade, inclusive concorrer (ainda que pouco) para transformá-la". As propostas conceptuais de Alberto Carneiro, ou de Clara Menéres com Mulher-Terra-Vida, e o vídeo de João Vieira, comprovam e exemplificam a linha plural orientadora da exposição, numa altura em que o vazio do mercado de arte não permitia uma verdadeira visibilidade das obras nacionais. A exposição intitulada Alternativa Zero - Tendências Polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea marca assim o primeiro balanço dos trabalhos que em Portugal tomaram como referência as atitudes conceptuais e congéneres. Uma situação entre nós minoritária e marginalizada, da qual, no entanto, sairia uma primeira vaga de artistas que viriam a desempenhar um papel do maior relevo ao longo da década de 80.
Em 1978 realizou-se a I Bienal Internacional de Artes Plásticas de Vila Nova de Cerveira, iniciativa que, privilegiando a contemporaneidade durante as primeiras edições, promoveu a descentralização artística, revelando curiosas assimetrias culturais, numa temporária coexistência entre a tradição da expressão regional própria da localidade e a novidade das formas artísticas apresentadas.
Talvez influenciada pelo sucesso da I Bienal de Cerveira, a Secretaria de Estado da Cultura organizou, em 1979, a Iª edição da Bienal Internacional de Desenho, que veria abruptamente interrompido o seu percurso devido ao incêndio do espaço da Galeria de Belém, em 1981. Apesar da iniciativa não ter tido continuidade é importante salientar a passagem pelo espaço da galeria de alguns trabalhos que ultrapassaram a fronteira do desenho e afirmaram uma liberdade experimentalista tendo como suporte o papel e as suas potencialidades.
A década de 70 deu continuidade a muitas das linguagens plásticas produzidas por artistas das décadas anteriores mas, por outro lado, radicalizou soluções dos anos 60 e lançou e consagrou uma série de autores que mostraram opções plásticas bastante amadurecidas. Entre os artistas de continuidade, alguns dos quais consolidam a sua presença na crítica e no mercado durante este período, podemos referir Júlio Pomar, Paula Rego, Joaquim Rodrigo, Mário Cesariny, António Sena, Álvaro Lapa, José de Guimarães e Eduardo Batarda.
Na sequência de pesquisas de anos anteriores, nomeadamente na área da poesia concreta, devemos referir a ecléctica obra de Ana Hatherly, com passagens pelo desenho, pintura, "performance", "happening" (Rotura, 1977) e cinema (filme Revolução, 1975). Veja-se a sua participação na Alternativa Zero, com Poemad'entro.
No campo da pintura, Luísa Correia Pereira a trabalhar em aguarela, colagem sobre papel e outros suportes e técnicas, elaborou uma obra marcada pela representação espontânea e pelo colorido, com referências a lugares, personagens e objectos de mundos imaginados e, mais recentemente, com referências à sua própria infância. Vítor Pomar, cuja obra reivindica uma forte influência do budismo Zen, utiliza na sua pintura uma estética bicolor, com predomínio do preto e branco, mantendo-se no registo abstracto, mas passando também pela fotografia, vídeo e cinema experimental.
Helena Almeida, #1 Desenho Habitado, 1977. 6 fotografias a preto e branco, tinta e colagem de crina, 42 x 52, 2 cm (cada). Col. Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento em depósito na Fundação de Serralves.Laura Castro Caldas e Paulo Cintra.
Relativamente aos percursos individuais, à margem das disciplinas tradicionais, cabe mencionar Alberto Carneiro que nestes anos inicia os seus "teatros-ambientes" com obras tão significativas como Canavial: memória/metamorfose de um corpo ausente (1968-1970), Uma floresta para os teus sonhos (1970) ou Uma linha para os teus sentimentos estéticos (1970-71), para além das suas propostas mais perto da land art como Operação Estética em Vilar do Paraíso (1973). Também Helena Almeida parte para a exploração de outros media, mormente a fotografia, onde a auto-representação e as noções de espaço e de corpo performativo são referências constantes.
António Palolo estende as suas pesquisas às áreas do filme, vídeo e instalação numa proximidade com as tendências neo-conceptuais, afastando-se da pintura com referências pop e minimalistas do início da década. Também Julião Sarmento passa a utilizar a fotografia e a realizar filmes, mantendo as temáticas sexuais características do seu trabalho pictórico anterior.
Vista da exposição Alternativa Zero, 1977. Col. Fundação de Serralves.DR/ Cortesia Fundação de Serralves.
Ana Vieira, Ambiente - Sala de Jantar, 1971. Técnica mista, alt. 2m x 3,12m x 3,12m. Col. Fundação Calouste Gulbenkian / CAMJAP.Carlos Azevedo.
Ainda numa linguagem conceptual encontramos o trabalho de Graça Pereira Coutinho, emigrada em Londres, que utiliza materiais naturais (terra, palha, areia, folhas, giz), métodos artesanais, impressões de mãos, palavras ilegíveis, rabiscos e memórias de vivências pessoais para criar soluções entre escultura e pintura. Numa outra vertente conceptual, mormente ao nível do questionar do próprio conceito da obra de arte e seus mecanismos de recepção e divulgação, temos o trabalho de Manuel Casimiro, também emigrado em França. Trata-se de uma obra que remete para o acervo imagético da história da arte, dando protagonismo a uma forma ovóide que vai ganhando importância durante a década de 70.
Consciente de que os anos 70 são o período de conjugação de técnicas, José Barrias, residente em Milão desde a década de 60, para além do seu trabalho teórico, desenvolve diversos ciclos temáticos no campo das artes plásticas. Nessa linha de investigação de mistura de géneros devemos considerar a obra de Ana Vieira, designadamente as suas instalações-ambiente dos anos 70, onde o espectador assume um papel fundamental quer pelo convite a participar quer por ser impedido de entrar nos espaços criados pela autora.
Pedro Calapez, S/título (detalhe), 1982. Grafite sobre papel, 280 x 150 cm. Col. Maria de Belém Sampaio.José Manuel Costa Alves.
Remetendo para o pós-minimalismo, refiram-se as obras de Fernando Calhau e Zulmiro de Carvalho. Este último explora nas suas esculturas a plasticidade de materiais como a madeira, o ferro ou a pedra. Enquanto isso, Fernando Calhau adopta certos valores op(ticos) e desenvolve trabalhos mais próximos do conceptualismo, através do uso da fotografia e do filme.
Também Pires Vieira apresenta um registo minimalista na sua pintura dos anos 70, desenvolvendo, no início da década, pesquisas em torno das cores puras e passando depois a preocupar-se com questões relacionadas com "desconstruções" da pintura, a sua decomposição em estruturas e processo de elaboração. Destas operações resultam telas penduradas sem armação, com formas geométricas padronizadas recortadas.
No que diz respeito às actividades de grupo, a década de 70, marcada pelo ambiente de festa e utopia próprio do contexto socio-político, assiste a uma série de projectos colectivos, alguns já referidos, e à formação de grupos de artistas que partilhavam alguns objectivos artísticos e sociais, nomeadamente o cruzamento das várias disciplinas (com reminiscências do Fluxus), a recusa de academismos e a intervenção social e política. Neste contexto surge o grupo Acre formado, em 1974, por Clara Menéres, Lima de Carvalho e Alfredo Queiroz Ribeiro, com actividades como pintar o pavimento da Rua Augusta ou a distribuição de diplomas de artista - ao jeito de Piero Manzoni - na Galeria Opinião. Mais dedicado à pintura e à performance, o grupo Puzzle, com actividade entre 1975 e 1980, optou por questões ligadas à função social da arte e do artista.
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