CARLOS PAREDES

 

Em Julho de 1993, já seriamente afectado pela doença que o havia de imobilizar, Carlos Paredes começou a gravar um novo álbum nos estúdios de Paço d’Arcos da Valentim de Carvalho. Em pelo menos uma das sessões registadas acompanhava-o Fernando Alvim, um velho amigo e o viola notável com quem tinha partilhado o essencial da sua discografia, nas restantes seria a vez de Luísa Amaro, a sua companheira dos últimos anos e nestes também ela um pilar da sua carreira e da sua vida. No estúdio estava Hugo Ribeiro, o mestre incontestado dos técnicos de som portugueses durante décadas. Carlos Paredes estava entre amigos e entregue mais uma vez a profissionais excelentes.

Ao longo dos sucessivos períodos de gravação efectuados Paredes gravou um total de oito composições novas. Fisicamente debilitado e com plena consciência das limitações que isso acarretava ao domínio técnico absoluto que sempre caracterizara a sua relação com a guitarra, foi multiplicando até à exaustão os takes de cada obra: dez no “Mar Goês”, doze na “Canção para minha Mãe”, quatorze nos “Arcos do Jardim”. Em alguns casos eram entradas de alguns compassos em breve interrompidas, noutros interpretações integrais logo repetidas por os dedos o terem traído numa passagem rápida menos limpa ou num ornamento menos claro. Por vezes percebe-se que houve uma pausa entre takes para uma audição insatisfeita, noutras ouvimo-lo mergulhar com uma precipitação quase angustiada de uma versão para a seguinte.

Ouvir hoje a sucessão completa destes registos é uma experiência emocional tremenda. Sentimo-nos testemunhas directas de um combate feroz e desesperado de um grande criador com o seu próprio corpo: a respiração, que os microfones captam impiedosamente, é ofegante, e há no som da guitarra uma tensão por vezes violenta, como se Paredes quisesse compensar com verdadeira raiva a firmeza que as mãos insistiam em negar-lhe. Mas ao mesmo tempo é fascinante constatar como este combate desigual vai sendo ganho a pulso e como de versão para versão os dedos vão respondendo melhor, as frases se vão lançando, as obras ganham corpo e se afirmam em toda a sua inspiração. Há casos em que ao longo deste processo a própria composição foi evoluindo, com alterações mais ou menos significativas na estrutura de cada peça, desde realinhamentos na sequência das respectivas secções a um crescente amadurecimento do desenho melódico e até mesmo a mudanças de tonalidade.

Carlos Paredes não pôde já terminar este álbum, onde em circunstâncias normais as oito peças gravadas poderiam sem dúvida ser ainda objecto de novas transformações, no plano criativo, à procura da sua forma definitiva, e de novas versões, no plano interpretativo, em busca de uma segurança técnica superior. Por outro lado, é de admitir que outras composições inéditas se juntassem progressivamente às já gravadas. Quando as gravações terminaram, estava-se, pois, assumidamente, perante um trabalho incompleto, em termos tanto da sua dimensão última como do seu próprio processo de maturação, e sobretudo perante um trabalho produzido em circunstâncias de evidente limitação física do seu protagonista face à sua plena forma anterior. Nestas condições, a decisão de o editar ou não revestia-se de um melindre artístico e ético tanto maior quanto o autor não a podia já tomar ele próprio.

Passados os anos, e confirmada a trágica irreversibilidade do estado de saúde de Carlos Paredes, impunha-se uma decisão, e foi então que Luísa Amaro, que se considerava demasiado envolvida afectivamente para ter sobre este dilema a necessária distanciação crítica, e o editor David Ferreira, que desde o início sobrepôs a qualquer interesse de ordem comercial a avaliação do mérito artístico intrínseco do projecto, acabaram por decidir, para minha grande surpresa, pedir-me uma opinião profissional independente sobre a matéria e confiar-me uma cópia integral do conjunto do material gravado.

Foi com verdadeira angústia – confesso – que me preparei para ouvir as gravações, temendo o pior. Para lá de ter construído durante anos com Carlos Paredes uma relação pessoal que sem ser propriamente de intimidade foi sempre extremamente cordial e mesmo de grande partilha artística, com longas e estimulantes conversas sobre todos os tipos de Música, do repertório clássico e romântico ao Manerismo e ao Barroco musicais e destes ao universo do fado de Lisboa e de Coimbra, tenho desde que me conheço uma admiração sem limites por Carlos Paredes, considero a sua discografia uma referência decisiva da Música e da Cultura portuguesas do século XX, em qualquer género, e lembrava-me ainda muito bem de o ouvir ao vivo, fascinado, no auge da sua carreira, mas recordava-me igualmente da fragilidade progressiva a que fora assistindo em algumas das suas derradeiras apresentações públicas. Não era essa a imagem final que quereria ver perpetuada em disco de um músico de semelhante estatura.

Da experiência da audição concentrada e seguida de todo o material disponível, dos takes interrompidos às sucessivas versões integrais de cada peça, depressa me ficou, contudo, uma sensação de enorme felicidade. Apesar da luta desesperada evidente que Carlos Paredes travava consigo próprio naquelas sessões de 1993 e das limitações técnicas incontornáveis a que a doença já então o submetia, a sua Música impunha-se com uma força verdadeiramente mágica logo a partir dos primeiros compassos – pujante de inspiração e de rasgo, deslumbrante no seu lirismo inconfundível. Lá estava aquele impulso rítmico único, partindo das anacrusas iniciais suspensas no tempo para depois se despenharem no seu tempo forte de resolução e lançarem a partir daí frases longas e ondulantes, sempre ao sabor de uma dicção musical perfeita. Lá estavam aquelas tonalidades menores carregadas de melancolia, salpicadas aqui e além de traços modais e de passagens cromáticas que tornavam o desenrolar da melodia num mistério sempre imprevisível. Lá estava, mesmo que agora por vezes transformado num grito de pássaro ferido, aquele som intenso, vibrado, plangente, e lá estava até, aqui e além, ainda que dramatizado pelo esforço transparecente, um virtuosismo ocasional ainda surpreendente na sua musicalidade inteligente.

Como sucede frequentemente com as suas obras anteriores, as oito peças que Paredes aqui deixou gravadas têm uma estrutura flexível em forma de arco, com os sucessivos temas a encadearem-se uns nos outros, dentro de cada uma delas, de forma muito livre, como numa rapsódia, ou a disporem-se segundo esquemas de repetição simples. Em vários casos havia para cada obra, de entre as diversas versões registadas, pelo menos uma onde os problemas técnicos ocasionais dos takes anteriores tinham sido completamente ultrapassados e que podia, por isso mesmo, ser reproduzida integralmente no seu estado original. Nos outros casos, a própria natureza seccional das peças tornava fácil a montagem de uma versão final a partir de dois – ou no máximo de três – dos takes realizados, sem que essa montagem elementar implicasse qualquer manipulação excessiva de estúdio. Uma vez decidida a edição viria esse a ser o trabalho – excelente, de resto – de Luísa Amaro e do produtor Paulo Junqueiro.

Ouço agora mais uma vez o resultado final deste trabalho, livre das versões iniciais que constituem um documento humano fascinante mas que de algum modo obscurecem o grau de  perfeição possível corporizado nesse resultado. Ao fazê-lo regressa-me insistentemente a ideia de que Carlos Paredes, plenamente ciente, já então, da gravidade do seu estado de saúde geral e sobretudo das dificuldades técnicas com que se debatia, não poderá por certo ter deixado de sentir que estas seriam muito provavelmente as suas últimas gravações. Nessa perspectiva é de sublinhar muito em particular a maneira como esta Música, privada de um virtuosismo que pudesse valer por si para lá de qualquer outra lógica de construção musical, se depura de tudo o que não é essencial para assentar apenas numa inspiração concentrada onde nada é acessório. E chama-nos também a atenção o modo como Paredes parece regressar aqui a um universo que é o das suas reminiscências de infância, evocando as figuras tutelares da Mãe e da Tia, os espaços familiares da Coimbra da sua meninice, e mesmo, de alguma forma, os sons tradicionais das baladas de Artur e Gonçalo Paredes, seu Pai e seu Avô, tudo isto com um olhar melancólico mas cheio de serenidade que nem a tensão dolorosa que marca alguns momentos da sua execução consegue perturbar.

Por tudo isto seria imperdoável que o que constitui verdadeiramente o testamento musical de Carlos Paredes não saísse a público, como documento artístico e humano de uma força emocional rara, para nos dar esta visão final que fecha o círculo de um meio século de carreira. Uma carreira que nos ajudou como poucas neste século a reencontrarmo-nos conosco próprios e com a nossa identidade de portugueses.

 

RUI VIEIRA NERY

Universidade de Évora