Famílias desavindas

Sabia que?

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SABIA QUE... ... na cidade do Porto, onde imaginamos a decorrer a acção do conto de Mário de Carvalho, existem dois museus dedicados aos transportes? O Museu dos Transportes e Comunicações foi aberto oficialmente em 2000. Está instalado no edifício da Alfândega Nova do Porto e aí poderá ser vista a exposição permanente «O Automóvel no Espaço e no Tempo». O aparecimento do automóvel teve um papel importante na vida do homem do século XX, influenciando o seu modo de vida. Esta exposição pretende fazer a ligação entre o fenómeno automóvel e a história social do século XX. O Museu do Carro Eléctrico existe desde 1992 e fica na antiga Central Termo-Eléctrica de Massarelos. Além da exposição de carros eléctricos e de peças relacionadas com este meio de transporte, estão patentes ao público também vários documentos relativos à tracção eléctrica, assim como material gráfico e iconográfico (fotografias, plantas e desenhos, bilhetes). Hoje, é quase uma viagem no tempo que este museu inspira, uma viagem à época em que o eléctrico transportava homens e mulheres até à baixa, levando-os depois de regresso a casa.Sobre estes dois meios de transporte, visite também estes sítios / museus: Clube Português de Automóveis AntigosMuseu da Carris Sobre o Porto, recorde o programa da Capital Europeia da Cultura 2001 ou passeie pela zona ribeirinha numa excursão virtual.

Quem escreveu

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MÁRIO  DE  CARVALHO Nasceu em Lisboa em 1944.Formado em Direito, iniciou actividade política durante o curso, integrando as lutas estudantis portuguesas da década de 60. Nessa sequência, foi preso e viveu exilado em França e na Suécia até à revolução portuguesa de Abril de 1974.Ficcionista e dramaturgo, Contos da Sétima Esfera é o seu primeiro livro de contos, publicado em 1981. Desde então, tem mantido um ritmo de publicação e recepção crítica que o colocam entre os nomes dos mais importantes ficcionistas da actualidade. Traduzido em várias línguas, recebeu vários prémios, de onde se destacam o Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores, em 1992, com Quatrocentos Mil Sestércios e o Grande Prémio de romance e novela da Associação Portuguesa  de Escritores, em 1995, com Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde.Para saber mais sobre Mário de Carvalho.

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Famílias Desavindas Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há-de encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina telhados de ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta. No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fracassou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que inventara um semáforo moderno, operado a energia eléctrica, capaz de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade. A autoridade gostou do projecto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia. Os semáforos estiveram ensejados para a Ponte, mas, de proposta em proposta (sempre se tratava de uma implantação experimental), acabaram na infrequentada Rua Fernão Penteado, na intersecção com a travessa de João Roiz Castelo Branco. O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de ferro. A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista. Durante a Primeira Guerra foi introduzida uma melhoria. Uma inspecção da Câmara concluiu que a roda da frente era destituída de utilidade. Foi retirada.Houve muitos candidatos ao cargo de samaforeiro, embora um equívoco tivesse levado à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A realidade corrigiu o dislate porque acabou por ser escolhido um galego chamado Ramon, que era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha pedalado na vida. Mas Ramon era esforçado, cheio de boa vontade. A escolha foi acertada. Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da segunda Grande Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável, sugerindo que o carreto bastasse. Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é sempre possível personalizar a relação com o sinal. Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita. Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o Doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar os transeuntes: «Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas. Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os resultados.Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas fazia questão de orientar os pacientes para um colega que desse uma segunda opinião. Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido. Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico passava e rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem parar de dar ao pedal: «Xó, magarefe!» Uma tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo. Este Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos doentes, com impaciência, e depois impunha silêncio e começava: «As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No primeiro caso, chamam-se viróticas, no segundo, bacterianas.» E estava horas nisto, até o doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele praticava a terapia do sono. Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir explicar. Alguns até faziam perguntas. Após a consulta, muito à puridade, o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi assim com Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco. Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa-de-ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!» com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um roubo por esticão um jovem que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais nada e dobrou-se para o sinistrado: «Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou perfurantes.» Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse entrado no capítulo das «manchas de sangue». Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do nascer ao pôr do Sol, a accionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer penitenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa. Mário de Carvalho, Contos Vagabundos, Lisboa, Editorial Caminho, 2000