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Paulo Orósio
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A liturgia celeste (tampa do sarcófago de
S. Martinho de Dume. Braga, Museu).
In História de Portugal, dir. José Mattoso
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A liturgia celeste (tampa do sarcófago de S. Martinho de Dume. Braga, Museu). In História de Portugal, dir. José Mattoso
Natural da região de Braga e nascido nos finais do século IV, Orósio é o autor do primeiro grande tratado de história universal escrita no âmbito da cultura cristã, dissertando sobre a história não sob a perspectiva de uma nação particular, mas sob o ponto de vista do homem universal, ao mesmo tempo que liberta o fluir do tempo da perspectiva de repetição cíclica que lhe dera Políbio, a despeito do seu reconhecido cosmopolitismo. Assim, a Historiarum adversus paganos libri VII, escrita em 417, constituiu o mais importante manual de história universal ao longo de toda a idade média, tendo conhecido mais de mil reproduções manuscritas, chegando a ser traduzido em árabe.
Para além do citado texto, foi ainda autor de uma série de pequenos tratados, onde reflectiu o ambiente de profunda agitação intelectual da Galécia e de parte do mundo cristão, nomeadamente o fervilhar de algumas heresias às quais se opôs activamente, com destaque para o priscilianismo, o origenismo e o pelagianismo, tendo participado em acesos debates em Jerusalém sob a égide de S. Jerónimo.
Como filósofo da história, foi discípulo directo de S. Agostinho com quem conviveu de perto em Hipona. O seu objectivo foi o de demonstrar que o cristianismo não era a causa imediata da queda de Roma às mãos de Alarico, rei dos Godos, como pretendiam os «pagãos». É contra essa acusação que elabora o seu mais conhecido texto, evidenciando uma das mais importantes categorias do conhecimento histórico: a da relatividade dos acontecimentos, pela sua integração em séries sequenciais mais vastas, onde adquirem o seu significado pleno, com recurso sistemático ao método comparativo, embora não caindo num relativismo que o impedisse de ver em Deus o supremo condutor dos tempos.
Para os pagãos, estranhos à «Cidade de Deus», Roma fora grande enquanto nela foram reconhecidos e adorados os seus deuses, mas ao adoptar o cristianismo debilitou-se e ruiu. Orósio inverte os dados do problema e apela à história. Para o autor bracarense, não basta considerar os acontecimentos apenas sob o ponto de vista dos seus agentes directos, sobrevalorizando o presente; antes de Roma existiram mais três impérios, e também eles caíram e se degladiaram, sem que então o cristianismo estivesse constituído em religião oficial de qualquer deles.
Todavia, não é apenas a história passada ou presente que importa considerar, mas também a carência de história futura, no quadro da concepção apocalíptica inerente ao cristianismo.
Assim, relativizará a emotividade do discurso dos acusadores do cristianismo que com a queda de Roma anteviam o fim dos tempos: a nossa emotividade perante o mal está na razão inversa da sua distância no espaço e no tempo; por outro lado, alçando-se a uma dimensão universalista, proclama que sendo todos os homens iguais por natureza, devemos considerar que a vitória de um povo ou de uma nação faz-se sempre sobre a ruína e o sofrimento ou desespero de muitas outras, como sucedia com a sua Galécia, tão flagelada pela soberba e ambição dos invasores. Tal como fez questão de dizer, evidenciando um humanismo vincado: «os tempos são comuns não a uma só cidade, antes a todo o orbe terrestre».
No quadro da história universal e de uma concepção providencialista, para a qual a razão da história é meta-histórica, entendeu que, mesmo sobre o sofrimento de tantos povos vencidos, Roma fora o mais privilegiado dos impérios do mundo, o que corresponde a um claro desígnio divino. A sua função fora a de plenificar a história nas fronteiras então conhecidas, unificando os homens por laços político-administrativos, para que pudesse seguir-se a tarefa da unificação das consciências por laços religiosos. Por isso, a despeito da conquista de Roma pelos Godos, os tempos presentes eram bem mais felizes que os de antanho, porque permanecia a paz que se seguiu ao nascimento de Cristo, não podendo considerar-se os Godos piores que os Romanos: se os invasores venceram, a causa imediata deve procurar-se não no cristianismo, mas «nos teatros», como símbolo da perversão ética dos senhores de Roma, pois que a força dos impérios assenta na justiça. Para Orósio, como para a filosofia cristã da história em geral, a ética é uma chave essencial para a explicação dos acontecimentos históricos, pois que a desarmonia social e a guerra injusta são também a expressão da desarmonia interior da pessoa humana, sobretudo dos chefes políticos que têm a missão de reger a comunidade, razão por que a paz, como ténue imagem da beatitude celeste, supõe a recta conduta.
Sendo a história conduzida pelo Deus dos cristãos, a essência do Império Romano permanece pois intacta, porque a política é tão-só uma realidade instrumental, comparada com a eminência do destino dos homens, pelo que uma alteração no plano político não deve ser sobrevalorizada. Romano entre os romanos, cristão entre os cristãos, homem entre os homens, era então possível apelar ao estado por meio das suas leis, à religião por meio das consciências, e ao homem por meio da natureza, lendo a história no seu significado mais profundo, à luz das categorias eminentemente espirituais, como processo de realização de uma unidade, condição de verdadeira universalidade.
Obras
Patrologia Latina, 31, 653-1216; Syntaktische, semasiologische und kritische Studien zu Orosius, Upsala, 1922; Histoiarum adversum paganos libri VII, recentuit et commentario Carolus Zangemeister, Hildesheim, 1967, História contra os Pagãos (tradução portuguesa de J. Cardoso), Braga, 1986.
Bibliografia
Mário Martins, Correntes de filosofia religiosa em Braga, Braga, 1950; Benoit Lacroix, Orose et ses idées, Paris, 1965; Diamantino Martins, «Paulo Orósio: sentido universalista da sua vida e da sua obra» em Revista Portuguesa de Filosofia, 11 (1955-I) pp. 375-384; J. Vaz de Carvalho «Dependerá Sto. Agostinho de Paulo Orósio» ibid., pp. 142-153; A. Borges Nunes, Paulo Orósio Bracarense - seu valor filosófico, teológico e literário, Lisboa, 1958; id., «Raízes da lusitanedade em Paulo Orósio?», Bracara Augusta, 18-19 (1965), 63-74; Lúcio Craveiro da Silva, «Introdução a Paulo Orósio», Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa, Braga, 1994.
Pedro Calafate
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