Época Medieval

Renascimento em Portugal

Sob o Signo das Luzes

A Filosofia Portuguesa do Séc. XIX
até à Proclamação da República
A Filosofia Portuguesa depois de 1910

Isaac Cardoso

«Medico, ac Philosopho praestantissimo», assim se pode ler no frontispício da sua obra capital, a Phiilosophia Libera (1673), dedicada ao príncipe e senadores de Veneza. Filósofo português de origem judaica (n. Celorico da Beira, 1615-m. Verona, 1680), graduou-se em Filosofia e Medicina por Salamanca, tendo ascendido ao cargo de físico-mor da Corte de Madrid. Por razões que certamente se prendem com a sua crença, refugiou-se em Itália, onde professou abertamente o judaísmo.

Tal como já acontecera com Francisco Sanches, a sua formação de médico forneceu-lhe o gosto pela observação e pela experiência, conferindo-lhe hábitos de investigação empírica em que a problemática da filos. natural surge, obviamente, como dominante. Daí, pois, a razão de um distanciamento perante a Escolástica, tida pelos homens de ciência da época moderna como excessivamente presa ao critério abstracto. Intentio nostra sit naturalem philosophia instituere, por isso a obra é fundamentalmente uma física e uma cosmologia de sabor antiaristotélico, dividida em sete partes, onde aborda, sucessivamente, os princípios das coisas naturais; as afecções e propriedades das coisas naturais; o céu e os astros; os mistos; a alma; o homem e Deus.

Percorre, a propósito de cada tema, a opinião das várias «seitas» filosóficas, mostrando as suas qualidades e os seus erros, com forte presença crítica e clara independência intelectual. É este, aliás, o aspecto fundamental da sua atitude intelectual, o qual determina, simultaneamente, uma atitude filosófica. Com efeito, proclama o autor: «Liberam rempublicam Libera decet Sapientia» (a uma República livre, convém uma Filosofia livre), escolhendo para ornamento do frontispício da obra as alegorias da filosofia e da liberdade, representando a primeira o critério racional na abordagem dos problemas e a segunda a condição essencial da emergência do filosofar, libertando as ciências do jugo da servidão (scientias è servitutis iugo liberandas viam operit, ut assensum non Secta, sed ratio promouet). Esta crítica do sectarismo condu-lo a um prudente eclectismo, onde se perscruta a forte presença do critério histórico. Segundo escreve, as «seitas» tiveram o seu tempo próprio, mas, hoje, o alargamento dos domínios do saber e o desenvolvimento inerente das metodologias determinam que os dois obstáculos principais na inquirição da verdade sejam «secte se submittere, et vanas ac inutiles quaestiones tractares». O princípio que proclama é o da não admissibilidade de qualquer opinião que não seja convenientemente demonstrada e tida como correcta ou verosímil pela razão, ou, melhor dito, pelo modelo de racionalidade que foi o seu.

Do ponto de vista do conteúdo, um dos aspectos que mais fizeram sobressair a obra foi a sua defesa do atomismo, com a consequente negação da metafísica substancialista de Aristóteles, o qual, não obstante, considera como «summi ingenii... in omnibus scientias versatissimus». A esta questão se refere Cardoso na parte dedicada aos «Principiis Rerum Naturalium»: «Sunt Atomi rerum principia» e componentes de todos os mistos, determinando as suas propriedades, princípios constituintes, modo e figura. A existência dos átomos é tornada imperativa à luz da razão porque, como refere, se a Natureza nada faz ex nihilo, torna-se necessária a existência de tais partículas, que representam o limite da divisibilidade da matéria.

A consequência inerente é, como já dissemos, a negação da teoria aristotélica da matéria, forma e privação, que qualifica de filos. monstruosa (ipse Heraclytus defleret tam monstruosam philosophiam). Nenhum desses elementos pode, pois, considerar-se princípio das coisas naturais: «principia vero sunt realia et non excogitata». Do ponto de vista cosmológico, nega a hipótese de Copérnico, mostrando-se partidário da concepção anterior, recorrendo para o efeito à autoridade da Bíblia: «Probatur primo, ex sacris litteris in quibus summa veritas splendet». Esta referência, apenas uma entre muitas, é para nós importante, habituados que estamos a opor ciência e religião, Razão e Graça, esquecendo que se trata de uma oposição que emerge de uma tradição exterior aos autores em análise, como é agora o caso. A Philosophia Libera é disso uma prova evidente, pois, transmitindo-nos, pela via da investigação empírica, um saber vastíssimo no âmbito da física e da cosmologia, através delas sobe até à metafísica e, por ela, até Deus. Assim, numa rica tradição que emerge de São Paulo, procura o autor demonstrar a existência de Deus e chegar ao conhecimento dos seus atributos, mediante as obras da criação, ou seja, pela contemplação da beleza, harmonia e ordem do Universo. Deste modo, a defesa do atomismo, por si empreendida, diverge explicitamente da concepção de Demócrito e de Epicuro, para quem «mundum non a Deo fuisse productum, sed a fortuito atomarum concurso».

OBRAS
Oración Fúnebre en la Muerte de Lope de Vega Carpio, Madrid, 1630; Discurso sobre el Monte Vesuvio, Madrid, 1632; Del Origen del Mundo, Madrid, 1633; De Febri Syncopali, Madrid, 1634; Panegyrico del Color Verde, Madrid, 1635; Utilidad del Agua y de la Nieve, Madrid, 1637; Si el Parto de trece y quatorce meses es natural, Madrid, 1640; Philosophia Libera in septem liberos distributa, Veneza, 1673; Las excelencias y las calunias de los Hebreos, Amesterdão, 1678.

BIBLIOGRAFIA
Kayserling, Romaniche Poesien der juden in Spanien, Leipzig, 1859; Maximiano Lemos, História da Medicina em Portugal, II, Lisboa, 1899; Sousa Viterbo, Três médicos poetas, Lisboa, 1908; Silva Carvalho, Médicos e Curandeiros, Lisboa, 1917; Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos-Novos Portugueses, Lisboa, 1922; Mendes dos Remédios, Os judeus em Portugal, Coimbra, 1928; A. d'Esaguy, «Isaac Cardoso médecin et poète», in Imprensa Médica, Lisboa, 1951; J. S. da Silva Dias, Portugal e a Cultura Europeia dos Séculos XVI a XVIII, Coimbra, 1953; Pinharanda Gomes, A Filosofia Hebraico-Portuguesa, Porto, 1981; Josef Hayim Yerusha Imi, De la Cour d'Espagne au ghetto italien. Isaac Cardoso et íe marranisme au XVII siècle (trad. fr.), 1987, XXI.

Pedro Calafate


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