Livro de Esopo |
Séc.XIV
Comentário de Álvaro Ferdinando Sousa da Silveira (1921). Lições de Português. Rio de Janeiro: Edição Revista de Língua Portuguesa. pp.101-3
(Nota: O til é desenvolvido como n.)
LIVRO DE ESOPO (extracto)
Texto
Conta-se que no tempo do inverno una serpente mui fremosa (1) jazia a riba (2) duna auga (3) corrente e jazia tanto (4) fria con o regelado, que non sabia de si parte. (5) E unu vilão, (6) passando per (7) o dito ribeiro, vio a dita serpente muito fremosa con muitas diversas colores (8) e ouve doo (9) dela, por que a via assi (10) morta de frio, e tomou-a e meteu-a no seo (11). E levou-a a sua casa e mandou fazer (12) mui grande fogo e tirou a serpente do seo (11) e pose-a (13) acerca dele e aqueentava-(14)a o milhor (15) que ele podia, e, quando a serpente foi (16) bem queente (14), vio-se poderosa e levantou-se em pee (17) contra o vilão, deitando contra ele peçonha (18) pela boca (19), e queria-o morder. E o vilão, veendo (20) esto (21), fez quanto pôde, ataa (22) que a lançou fóra de casa con gran trabalho.
En aquesta (23) estoria (24) o doutor nus (25) ensina que non devemos ajudar os maos omenes (26) quando os veemos (20) en algunus perigoos (27), por que, se algunu ben lhe fazemos, sempre deles averemos maos merecimentos, como fez esta coobra (28), que deu mao galardon aaquel (29) que a livrou do perigoo da morte.
Comentário
(1) fremoso = fermoso, do lat. formosu, tendo havido dissimilação de o-o em e-o, a qual é mui comum: relógio < (ho)rologiu, pesponto < posponto; em inscrições há seróribus por sororibus (dat.-abl. pl. do lat. soror, sororis) (v. Carnoy, Le Latin d'Espagne d'après les Inscriptions, p. 100).
(2) riba < lat. ripa. Significa margem; a riba = à margem, ao lado, ao pé
(3) auga < lat. aqua; auga = água. O a tónico atraíu a semivogal u, como também costuma atraír a semivogal i: contrairo (Lus. VIII 41) por contrário, capitaina (Lus. II 22) por capitânea, primeiro < primariu, etc.
(4) tanto: forma plena; a contracta tão é que hoje se empregaria aqui.
(5) non sabia de si parte = não dava acordo de si.
(6) vilão < villanu; sign. habitante de vila, camponês.
(7) per, preposição = por.
(8) colores = cores. A conservação do -l- intervocálico mostra que a palavra é um latinismo, ou, talvez, castelhanismo.
(9) doo = dó (pena, compaixão). Ouve (= houve) doo = teve pena. A correspondência entre o substantivo cantus e o verbo cantare, saltus e saltare, etc., fez surgir, de outros verbos, novos substantivos, a que, por esse motivo, se deu a denominação de post-verbais: um deles é dolus (v. Grandgent, Vulgar Latin, p. 13), tirado do verbo dolere, do qual veio o port. doer. A evolução de dolus é regular: dolu > doo > dó.
(10) assi = assim.
(11) seo (=seio); do lat. sinu: sendo breve o i, pronunciava o povo senu, cuja evolução é normal: sinu > seno > seo > seio. O radical sin- inalterado aparece em sinuoso, sinuosidade, e, transformado pelas leis fonéticas, vemo-lo em enseada (en-se-ada); sabe-se que em port. antigo seo ou seio significa também golfo, curva litoral: Logo os dálmatas vivem; e no seio Onde Antenor já muros levantou, A soberba Veneza está no meio Das águas - que tão baxa começou! (Lus. III 14).
(12) fazer, forma activa, mas significação passiva: ser feito; cfr. o seguinte passo dos Lusíadas (X 115): "O corpo morto manda ser trazido", equivalente a "manda trazer o corpo morto". Pode também considerar-se activo com sujeito indeterminado.
(13) pose (= pôs, v. pôr); pose-a = pô-la. Acerca da conjugação de um verbo com o pronome lo enclítico, v. Sousa da Silveira, Trechos Selectos, p. 59 ss.
(14) aqueentava = aquentava; observa-se aqui o hiato ee resultante de queda de consoante intervocálica. O lat. calere = estar quente; o radical cal- vê-se em calor, cálido, caldeira, rescaldo, escaldar. O particípio presente de calere é calens, calentis, cujo acusativo calente(m) evolve assim: calente > caente > queente > quente (queda do -l- intervocálico, assimilação de uma vogal a outra, crase ou fusão das duas vogais em uma só). De calente se fez adcalentare, donde acaentar > aqueentar > aquentar.
(15) milhor, forma antiga = melhor. É comum nos Lusíadas (IX 58 e passim).
(16) foi (= ficou).
(17) pee (< pede) = pé; levantou-se em pee = levantou-se, ergueu-se, aprumou-se; contrapõe-se à ideia acima expressa por jazia e sem saber de si parte: há pouco era uma coisa inerte, dócil, inteiramente sem vontade; agora já se levanta, já mostra a sua intenção perversa.
(18) peçonha = veneno. Em latim há o verbo potare (= beber), cujo radical pot- se mostra no adj. port. potável (água potável, isto é, boa para beber). O subst. lat. potio, potionis = acção de beber, bebida, beberagem medicinal, bebida com veneno; potione > poção (= beberagem medicinal). O nosso vocábulo peçonha deve provir de *potionea, com a dissimilação muito frequente, como já vimos, de o-o em e-o.
(19) boca < lat. bucca.
(20) veendo = vendo. Note-se o hiato ee, resultante da queda do -d- intervocálico: lat. videre > veer > ver.
(21) esto = isto.
(22) ataa = até.
(23) aquesta = esta.
(24) estoria = história.
(25) nus = nos.
(26) omenes = homens; forma normal tirada do plural homines (hómenes).
(27) Do lat. periculu > perígoo > perigo.
(28) coobra = cobra; do lat. colubra.
(29) aaquel = àquele.
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