Séc. XIII-XIV
Comentário de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, (1946). Lições de Filologia Portuguesa, seguidas das Lições Práticas de Português Arcaico. Lisboa: Dinalivro (s/d). pp.403 e 409-12
PAAY GOMES CHARINHO
(CV 400 / CA 248)
[Oi eu sempre, mha senhor, dizer
que peyor é de sofrer o gran ben]
que o gran mal e maravilho-m 'en
e non-o, púdi nen posso creer,
ca sofre'eu mal por vos, qual mal senhor
[me quer matar, e guarria melhor]
se mi vos ben quises[se]des fazer.
E se eu ben de vos podess' aver,
ficass' o mal que per vos ey a quen
aquesto diz. E o que assi ten
o mal en pouco, faça-o viver
deus con mal sempr'e e con coita d'amor!
e podesse veer qual é peyor
d'o mui gra ben ou d'o gram mal sofrer!
Oy = audivi. É preferível a grafia oi, isto é, o emprego de i sempre que seja vogal, e faça sílaba, sendo y apenas elemento átono de um ditongo. Oi (de oir= ouir - audire), audii por audivi - Mha em lugar de mia (como se lê no C. A.) é grafia provençalesca -. Nos grupos mh, bh, vh (por exemplo: em cambho, sabham, Segovha, Nevha) h vale i átono ou i semi-consoante, exactamente como nos símbolos lh, nh.
Lh foi o ponto de partida, modelo. O novo som molhado (palatizado), que resultou de lli, era simbolizado pelos neo-latinos ora por ll (ainda hoje o é em castelhano), ora por ill, lli, yll, lly, grafias usadas sobretudo em Catalunha. Os Provençais começaram a escrever lli, ligando o i a l por um pequeno traço horizontal, a fim de o diferençar de li. Indicavam assim que as duas letras designavam um só som. Esse grupo li era graficamente muito semelhante a um h. Foi por isso que os copistas o substituiram por h. Portanto, na ortografia dos apógrafos italianos, que são traslados de um manuscrito de 1350, pouco mais ou menos, isto é, no Cancioneiro Geral completado nos dias do Conde de Barcelos e de Alfonso XI de Castela, (depois de 1349) - sabian ou sabiam lê-se sabiam= (sapiebant) e sabhan é equivalente de sapiant, hoje saibam.
Quanto ao possessivo mha mho, era proclítico, tinha acento na última vogal. Os Castelhanos também pronunciavam miá, mió, sempre monossilábicos. Segundo as leis da ditongação antiga, o acento recaía na vogal mais forte e sonora, e não na semi-vogal i. Existia todavia a forma absoluta mía bissilábica, colocada depois do substantivo. A princípio mhá senhor mas senhor mía. É a rima (com folia, etc.) que autentica essa pronúncia. De mia saíu mî-a, por influxo de mim. Em Portugal a inicial m provoca muita vez nasalação da final em palavras monossilábicas. Temos mãe em vez de mae; muim em vez de muy, mas também muinto em vez de muito; nuve por nuve > nube, etc.
De mia se fez minha, por ser mais fácil de pronunciar. Por analogia dizem minho na Galiza. E todos os poetas castelhanos que no século XVII, de 1580 a 1640, se serviram do português, sobretudo em poesias líricas cantadas, intercaladas em dramas, utilizavam essa forma analógica.
Peyor. - No Cancioneiro da Ajuda os comparativos peôr melhôr, moor, de maor com assimilação da vogal pretónica à tónica, rimam sempre com a terminação ôr de senhôr, etc., e nunca com ór - Segue-se que o o era fechado, o que condiz com o o latino e o castelhano das palavras correspondentes. Todavia os dois oo de moor contraíram-se em mór; e este influíu com o seu o aberto nos outros comparativos portugueses, no século XVI, (menor, peor, melhor) certamente por ser o mais usado de todos eles.
Sofrer - parece ser sofrir à castelhana, mas deve dizer-se sofrer à portuguesa, como se vê na estrofe 2ª, onde rima com viver. Os galegos, como ocidentais influenciados por Castela, usam de ambas as formas.
Ca = Quam. - Gram é outra divergência ortográfica que denota a menor antiguidade do traslado italiano.
Depois de senhor falta o verso me quer matar - e guarria melhor.
Guarria é futuro contraído de um verbo cuja raíz acaba em r (cfr. querria, morria e terria, ferria, verria e valrria. Provem do germânico warjan guarir guérir). Hoje usa-se guarecer - cfr. guarnir, guarnecer. Guarirá, ferirá são formas analógicas recompostas.
Maravilhar-se, de maravilha mirabilia neut. pl. do adj. mirabile, de mirare, que subsiste no estado simples e em admirar.
Púdi era muito usado ao lado de pude - pretérito perfeito potui (no Cancioneiro da Ajuda temos pude). No Cancioneiro a forma reduzida já se usou a par de mais antiga em i. Cfr. dixi quiji e ouvi; 3ª pôdo e pôde.
Posso = possum (pot-sum); o pot é a raíz que subsiste em pot-(es) pot-(est). Por analogia com posso há possa.
Quises[se]des. - Facer e fazer. Há vacilação entre a grafia ç z: em geral z está no fim da palavra; no princípio e meio ç; esse é surdo, z é sonoro. O uso moderno ainda não estava bem fixado. A pronúncia de ç era ts e a pronúncia de z era ds.
As duas estrofes que o Cancioneiro da Ajuda possui a mais dizem:
E o que esto diz, non sab' amar
neua cousa tan de coraçon
com' eu, senhor amo vos. De mais non
creo que sabe que x'é desejar
tal ben qual eu desegei des que vi
o vosso bon parecer, que des i
me faz por vos muitas coitas levar.
E de qual é senhor, ouço contar
que o ben est; e faz gran traicion
o que ben á, se o seu coraçon
en al pon nunca se non en guardar
sempr' aquel ben. Mais eu, que mal soffri
sempre por vos - e non ben - des aqui
terriades por ben de vos nembrar.
Se o fezerdes, faredes ben i;
se non, sen ben viverei sempr' assi,
ca non ei eu outro ben de buscar!
(Cancioneiro da Ajuda 248; a fl. 67, e repetido a fl. 69 do Códice membranáceo).
No verso primeiro da quarta e última estrofe há no ms. qualeu. As duas palavras ligadas podiam ser qua (por quan, com omissão de til sobre a) e leu de leve; ou qual eu. Assim imprimi na minha edição, traduzindo todavia como se preferisse quan leu. Hoje avento outra interpretação: eu pode ser lapso de escrita por simples e, e então deveríamos ler qual é.
Lexicologicamente, há algumas formações na Cantiga 400, que será útil analisarmos, rapidamente embora:
Sofrer, em castelhano sufrir, forma de que os Galegos se serviam e servem muita vez; souffrir em francês; sofferire em ital., do lat. suf.- ferrere e suferire, que na boca do vulgo substitui a forma clássica sufferre (sub-ferre), por analogia com os verbos em ere, ire. É sempre a maioria que vence. Casos paralelos: oferre que, passando por offerrere offerrire, deu offrir em francês, mas foi substituído em port. pelo incoativo ofrecer: essere em vez de esse (fr. être, ital. essere); sequire por sequi (seguir) ; morire por morir (mourir morrer).
Quanto a gran ben por grande bem, com abreviação do adjectivo, tão intimamente ligado ao substantivo que os dois juntos formam um termo só com apenas um acento, de sorte que gran é proclítico - notemos mais uma vez algumas formações paralelas: granduque, granbesta, grancruz, frei João; sanjoão, etc.; bonvedro, bonduque, bon-nome; donjoão; donquixote, etc.; a belprazer; mui grande; Monforte: Monsanto, Montalegre; Fonseca; Valverde; Portalegre; Pai Rodrigues; Mem, Ruy Fernão Martins, etc., etc.
Ca, da linguagem arcaica, representa três modelos diversos. Em primeiro lugar era conjunção comparativa, equivalente de do que moderno (por exemplo val mais ca tu) : o quam latino. Em segundo lugar era conjunção equivalente de porque, pois que: o quia latino. Em terceiro lugar era forma abreviada de acá, advérbio portanto. Só esta, tónica sempre, persiste ainda hoje. Acá e eccu hac. Cfr. acó < eccu hoc; aqui <eccu hic (fr. ici). Outras formas compostas, cujo primeiro elemento é o advérbio demonstrativo eccu: aquello, aquesto, aquele, aquende. O segundo ca substituíu nos tempos arcaicos infindas vezes a conjunção que (quid).
Ficar, reforçado em fincar é figicare, derivado de figere, fixar.
Nas duas estrofes que a Cantiga tem a mais no Cancioneiro da Ajuda notemos a pronúncia vulgar do pronome se, si com s palatizado ao contacto da vogal palatal assim como o seu emprego como dativo ético, meramente expletivo, demais non creo que sabe que x'é desejar. Comparemos a pronúncia vulgar de vocábulos como sanguixuga (por sanguesuga) e bexiga.
Ouço representa audio; como goço (cast.) gaudio.
Est é latinismo usado pelos poetas antes de vogal. Ás vezes tomavam a liberdade de pronunciarem este, contando-o por duas sílabas.
Traicion, castelhanismo do autor que era da Galiza.
Nenbrar por membrar <mem'rare, de memorare, corn dissimilação. Hoje dizemos lembrar, levando mais longe a dissimilação.
Buscar, procurar para caçar < captiare. Tendo em vista o verbo composto emboscar (imboscare em ital.) e que era uso considerar os dois verbos como termos de caça, derivados de bosco, do lat. buxus, pronunciado buscus pelo vulgo (?), com metátese de cs em sc.
O nome de um só arbusto, que em regra não forma bosques extensos, teria nesse caso passado a ter em latim a acepção lata de bosque (bosco em ital., bois em fr., Busch em alemão, bush em ingl.). Segundo outros, busco seria arbuscum por arbustum, influído por arbusculum.
Meyer-Lübke acha insuficientes ambas as etimologias, foneticamente e semasiologicamente, e propõe como étimo conjectural busca, acha de lenhas, de origem desconhecida. (vd. nº 1420 do Romanisches Etymologisches Wörterbuch, Heidelberg, 1911).
|