Fonologia histórica

Introdução

Tal como nas leis fonéticas, mas agora independentemente do contexto fonético, pode haver regularidade na evolução dos sistemas fonológicos das línguas, mas, também neste caso, desde que se considere apenas uma secção de tempo na história de uma comunidade precisa. Considerando o latim vulgar da România Ocidental, todo o seu vocalismo acentuado e parte do seu consonantismo sofreram mutações ao evoluírem para os romances ocidentais. Da mesma forma, mas séculos mais tarde, o português medieval viu o seu vocalismo átono final reduzir-se no caminho para o português clássico, e o vocalismo átono pretónico deste último teve uma ulterior evolução, já a meio da época Moderna.

Símbolos

1. A mudança ocorrida entre duas formas separadas pelo tempo indica-se inscrevendo entre elas o parêntese angular >.

2. As formas latinas, para imediato reconhecimento, escrevem-se em caracteres maiúsculos.

3. Quando uma vogal acentuada latina é longa, a sua notação vem seguida do sinal : e, quando é breve, não é assinalada.

4. Recorre-se aos parênteses rectos para incluir, no seu interior, uma letra, ou letras que interessa considerar pelo seu valor fonético. Se estiver em causa o seu valor fonológico, ou seja, a entidade abstracta a que correspondem no sistema de uma língua, já se recorre às barras oblíquas.

5. O hífen no final de uma forma latina indica que naquela posição esteve uma desinência (normalmente -m para os substantivos e adjectivos, -t para as formas verbais) que caiu muito cedo em latim vulgar e da qual não guardam memória as línguas românicas.

Exemplificação:             AMA:RE>amar            PIRA->pera

À esquerda dos parênteses angulares estão as formas latinas e à sua direita as formas portuguesas resultantes. No primeiro caso, a palavra latina tem [a] longo na sílaba tónica e, no segundo, um [i] breve. Estas vogais, na mente dos falantes são, respectivamente, /a:/ e /i/, ao passo que nas suas bocas são [a:] e [i].


Evolução do vocalismo tónico latino

A partir do início da era Cristã, nas múltiplas situações de bilinguismo a que a expansão do Império Romano obrigava, o contacto linguístico forçou o sistema fonológico do latim vulgar a evoluir. Ao nível do vocalismo acentuado, deu-se uma notável redução das oposições fonológicas, deixando o sistema de conter dez diferentes segmentos vocálicos para passar a conter apenas sete. O rastilho para esta mudança consistiu numa modificação acústica que atingiu o acento das palavras: este deixou de se traduzir num aumento da frequência da vibração das cordas vocais (acento melódico, de altura ou tonal) para passar a resultar do aumento da intensidade dessa vibração (acento de intensidade). Ou seja, as vogais acentuadas deixaram de ser mais altas (de uma altura acústica, entenda-se) do que as átonas, e passaram a ser mais intensas. Esta mudança acústica veio provocar a alteração de todo o sistema vocálico tónico, desaparecendo a oposição fonológica entre vogais longas e breves, até aí possível, mas logo tornada impossível por o acento de intensidade alongar necessariamente a quantidade das vogais nele envolvidas. (i.e. apenas podia cair em vogais longas).

Como resultado, a quantidade vocálica foi substituída pelo timbre enquanto traço pertinente na distinção de segmentos vocálicos: à excepção do que se passou com /a/ longo e /a/ breve, vogais que se fundiram num único /a/, as antigas vogais longas tenderam para manter o seu timbre e as antigas vogais breves para sofrer abertura tímbrica. Falando em termos de altura articulatória, as antigas vogais breves sofreram, à excepção do /a/, abaixamento de um grau, tornando-se mais baixas do que eram anteriormente, enquanto que as antigas vogais longas mantiveram a respectiva altura. O português manteve, no caso das vogais tónicas, o mesmo sistema fonológico.


Vogais longas tónicas  Vogais breves tónicas
DI:CO>digo, com /i/ acentuad PIRA->pera, com /e/ acentuado
NU:DU->nu, com /u/ acentuado  LUTU->lodo, com /o/ acentuado
ACE:TU->azedo, com /e/ acentuado PETRA->pedra, com /E/ acentuado
FORMO:SU->formoso, com /o/ acentuado ROTA->roda, com /O/ acentuado
MA:TRE->madre, com /a/ acentuado CADO>caio, com /a/ acentuado

Fundiram-se em resultados únicos os antigos /u/ breve e /o/ longo, os antigos /i/ breve e /e/ longo, os antigos /a/ breve e /a/ longo. Desaparecem, assim, três oposições fonológicas, pelo que o sistema latino antigo de dez vogais acentuadas é rendido por um de sete.

Não se tratando de mudança condicionada pelo contexto (ela ocorre em todas as formas da língua latina em que estas vogais ocupem a posição acentuada), presenciamos aqui uma mudança fonológica e já não fonética, livre de restrições associativas com sons vizinhos (restrições sintagmáticas), mas sujeita a restrições opositivas com sons alternativos (restrições paradigmáticas).


Evolução das consoantes latinas oclusivas intervocálicas

Ao nível da fonética histórica do latim vulgar, observa-se que, por assimilação dupla, as consoantes oclusivas (não contínuas) intervocálicas do latim vulgar sofreram lenição (i.e. enfraquecimento), passando as geminadas a simples, as não vozeadas a vozeadas e as vozeadas a contínuas, podendo estas, depois, chegar a desaparecer, num processo que decorreu entre os séculos I e V da era Cristã (ver Fonética Histórica do Português - Contextos intervocálicos). O ímpeto assimilatório que desencadeou esta evolução latina, se não fora travado, acabaria num resultado único, que seria a assimilação total. Mas foi refreado por restrições do sistema (restrições paradigmáticas) que impediram as vogais de fazer desaparecer totalmente algumas consoantes que entre elas se encontravam (recorde-se que o contexto para este tipo de assimilação é o intervocálico). Assim, observaram-se diferentes graus de assimilação possíveis, mantendo-se quase intacta a sequência inicial de oposições fonológicas:




APICULA->abelha MUTU->mudo LACU->lago
FABA->fava NU:DA->nua  STRI:GA->estria
CIPPU->cepo GUTTA->gota PECCA:RE>pecar
ABBA:TE>abade ADDUCERE>aduzerarc


Evolução do vocalismo átono do português europeu

O português europeu distingue-se das variantes brasileira e africanas desta língua por apresentar em estado avançado uma redução do vocalismo átono, quer final (i.e. em final de palavra), quer pretónico (i.e., em posição átona anterior à ocorrência da vogal tónica). Esta redução chegou às variantes não europeias no que às átonas finais diz respeito, e o português do Brasil, por exemplo, na maioria dos seus dialectos, revela a elevação /e/>/i/, /o/>/u/, dizendo os brasileiros pont[i] para "ponte" e coc[u] para "coco". Já não elevam contudo, o /a/ final para /6/, tal como não o fazem os falantes africanos de português. Esta elevação em posição final terá sido muito recuada na história para ter chegado a conhecer uma difusão tão extensa. Mais recente, por menos difundida, foi a elevação das átonas pretónicas, que só parcialmente é conhecida das variantes africanas e que é desconhecida no Brasil. Em posição pretónica, o português europeu tem as seguintes elevações:

/e/ > /@/
/o / > /u/
/a/ > /6/

Posição acentuada  Posição pretónica
pele, com [E] tónico pelar, com [@] pretónico 
sebo, com [e] tónico  seboso, com [@] pretónico
posso, com [O] tónico possível, com [u] pretónico
roxo, com [o] tónico  arroxeado, com [u] pretónico
casa, com [a] tónico casario, com [6] pretónico


Este é um fenómeno do qual só há testemunhos directos a partir do século XVII, altura em que os textos escritos por mãos pouco alfabetizadas muito hesitam na colocação do grafema <e>, por exemplo, usando-o até no interior de grupos consonânticos, o que prova que o "e mudo" já figurava no sistema vocálico átono. Exemplo: <teres> para <três>.



Bibliografia

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ATENÇÃO - Para o valor das convenções fonéticas, consulte

http://www.phon.ucl.ac.uk/home/sampa/x-sampa.htm

http://www.phon.ucl.ac.uk/home/sampa/portug.htm