Ilse Losa,
O Mundo em que vivi

Edições Afrontamento, Lda
Rua de Costa Cabral, 859
Porto

«O meu avô, homem alto e magro, de cara larga, ossuda e um tanto avermelhada, olhos claros e quase sempre tristes, tinha o costume de levantar as sobrancelhas espessas quando dizia alguma coisa importante. Isso fascinava-me e por isso me desgostava ver-lhe, por vezes, as pingas de sopa presas no bigode pendente para cada lado da boca. Não ligava com ele, sempre tão apurado, com o cabelo farto, penteado cuidadosamente. «Limpa a boca, avô», dizia eu. «Ora, ora», respondia ele, um pouco embaraçado.

A avó contrastava com a figura esguia e imponente do avô. Baixa, muito baixa mesmo, tinha a cara miúda sulcada de rugas e usava o cabelo branco rigidamente penteado para cima da cabeça, onde o juntava num puxo redondo, apertado. Preferia vestidos escuros, que protegia nas lidas domésticas com um avental cor de cinza.

Eu, a julgar pelas velhas fotografias, não passava duma menina frágil, de cabelo louro, de feições infantilmente lisas. Nada mais descubro que valha a pena destacar.

Vivíamos os três numa pequena casa com uma varanda deitada sobre a rua, coberta com vinha. Ali minha avó passava as tardes de Verão a fazer meia ou a costurar. Ao certo não me recordo se costurava, mas suponho que sim, pois não me lembro de costureira alguma que a tivesse substituído nesse serviço. Mas seja como for: que fazia meia nunca o poderei esquecer. Vejo-a sentada na cadeira de espaldar, as agulhas a bater desembaraçadamente, enquanto observava o que se ia passando na rua. Tão acostumada estava a fazer meia que nem precisava de olhar. Aliás, as meias eram sempre pretas, infalivelmente pretas, fossem para ela própria, para o avô ou para mim. Por isso eu, apesar de tão pequena ainda, tinha de andar sempre de meias pretas. Isso arreliava-me, porque as crianças com quem convivia não usavam meias pretas e queria ser igual a elas. Cheguei a falar à avó nessa minha mágoa, mas respondeu-me:

― Não digas tolices, Rose. Se as outras crianças não usam meias pretas é porque as mães não sabem ser práticas e económicas. Duas palavras que, cedo, aprendi a detestar: prático e económico.

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