Leitura de Os Lusíadas e poemas de Camões.
Canção IV e Ode VI de Camões por Inês Pedrosa.
Centro Cultural de Belém | Sala Fernando Pessoa Comemoração do Dia da Poesia, 22 de Março de 2009.
Canção IV
Vão as serenas águas
Do Mondego descendo,
Mansamente, que até o mar não param;
Por onde minhas mágoas
Pouco a pouco crescendo,
Para nunca acabar se começaram.
Ali se ajuntaram
Neste lugar ameno
Aonde agora mouro,
Testa de neve e ouro,
Riso brando e suave, olhar sereno,
Um gesto delicado,
Que sempre na alma me estará pintado.
Nesta florida terra,
Leda, fresca e serena,
Ledo e contente pera mim vivia;
Em paz com minha guerra,
Contente com a pena
Que de tão belos olhos procedia.
Um dia noutro dia
O esperar me enganava;
Longo tempo passei,
Co'a vida folguei,
Só porque em bem tamanho me empregava.
Mas que me presta já,
Que tão fermosos olhos não os há?
Ode VI
Pode um desejo imenso
Arder no peito tanto,
Que à branda e à viva alma o fogo intenso
Lhe gaste as nódoas do terreno manto,
E purifique em tanta alteza o espírito
Com olhos imortais
Que faz que leia mais do que vê escrito.
Que a flama que se acende
Alto, tanto alumia
Que, se o nobre desejo ao bem se estende
Que nunca viu, o sente claro dia;
E lá vê do que busca o natural,
A graça, a viva cor,
Noutra espécie melhor que a corporal.
Pois vós, ó claro exemplo
De viva fermosura,
Que de tão longe cá noto e contemplo
Na alma, que este desejo sobe e apura;
Não creiais que não vejo aquela imagem
Que as gentes nunca vêm,
Se de humanos não têm muita vantagem.
Que, se os olhos ausentes
Não vêm a compassada
Proporção, que das cores excelentes
De pureza e vergonha é variada;
Da qual a Poesia, que cantou
Até aqui só pinturas,
Com mortais fermosuras igualou;
Se não vêm os cabelos
Que o vulgo chama de ouro,
E se não vêm os claros olhos belos,
De quem cantam que são do Sol tesouro;
E se não vêm do rosto as excelências,
A quem dirão que deve
Rosa e cristal e neve as aparências;
Vêm logo a graça pura
A luz alta e severa
Que é raio da Divina fermosura,
Que na alma imprime e fora reverbera,
Assim como cristal do Sol ferido,
Que por fora derrama
A recebida flama, esclarecido.
E vêm a gravidade
Co'a viva alegria
Que misturada tem, de qualidade
Que da outra nunca se desvia;
Nem deixa ua de ser arreceada,
Por leda e por suave,
Nem outra, por ser grave, muito amada.
E vêm do honesto siso
Os altos resplandores
Temperados co'o doce e ledo riso,
A cujo abrir abrem no campo as flores;
As palavras discretas e suaves,
Das quais o movimento
Fará deter o vento e as altas aves;
Dos olhos o virar
Que torna tudo raso,
Do qual não sabe o engenho divisar
Se foi por artifício, ou feito a caso;
Da presença os meneios e a postura,
O andar e o mover-se,
Donde pode aprender-se fermosura.
Aquele não sei quê,
Que aspira não sei como,
Que, invisível saindo, a vista o vê,
Mas pera o compreender não acha tomo;
O qual toda a toscana poesia,
Que mais Febo restaura,
Em Beatriz nem em Laura nunca via;
Em vós a nossa idade,
Senhora, o pode ver,
Se engenho, e ciência, e habilidade
Igual à fermosura vossa der,
Como eu vi no meu longo apartamento,
Qual em ausência a vejo.
Tais asas dá o desejo ao pensamento!
Pois se o desejo afina
Ua alma acesa tanto
Que por vós use as partes de divina,
Por vós levantarei não visto canto,
Que o Bétis me ouça e o Tibre me levante;
Que o nosso claro Tejo
Envolto um pouco o vejo e dissonante.
O campo não o esmaltam
Flores, mas só abrolhos
O fazem feio; e cuido que lhe faltam
Ouvidos pera mim, pera vós olhos.
Mas faça o que quiser o vil costume;
Que o Sol, que em vós está,
Na escuridão dará mais claro lume.