Canto II, 71-80





Leitura de Os Lusíadas e poemas de Camões.
Canto II, 71/80 por Fernando Luís Sampaio.

Centro Cultural de Belém | Sala Fernando Pessoa Comemoração do Dia da Poesia, 22 de Março de 2009.


Canto II

71
Louvam do Rei os Mouros a bondade,
Condição liberal, sincero peito,
Magnificência grande e humanidade,
Com partes de grandíssimo respeito.
O Capitão o assela por verdade,
Porque já lhe dissera, deste jeito,
Cileneu em sonhos; e partia
Para onde o sonho e o Mouro lhe dizia.

72
Era no tempo alegre, quando entrava
No roubador de Europa a luz Febeia,
Quando um e outro corno lhe aquentava,
E Flora derramava o de Amalteia:
A memória do dia renovava
O pressuroso Sol, que o Céu rodeia,
Em que Aquele, a quem tudo está sujeito,
O selo pôs a quanto tinha feito;

73
Quando chegava a frota àquela parte,
Onde o Reino Melinde já se via,
De toldos adornada, e leda de arte
Que bem mostra estimar o santo dia.
Treme a bandeira, voa o estandarte,
A cor purpúrea ao longe aparecia;
Soam os atambores o pandeiros,
E assim entravam ledos e guerreiros.

74
Enche-se toda a praia Melindana
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente mais verdadeira, e mais humana,
Que toda a doutra terra atrás deixada.
Surge diante a frota Lusitana,
Pega no fundo a âncora pesada;
Mandam fora um dos Mouros que tomaram,
Por quem sua vinda ao Rei manifestaram.

75
O Rei, que já sabia da nobreza
Que tanto os Portugueses engrandece,
Tomarem o seu porto tanto preza,
Quanto a gente fortíssima merece:
E com verdadeiro ânimo e pureza,
Que os peitos generosos enobrece,
Lhe manda rogar muito que saíssem,
Para que de seus reinos se servissem.

76
São oferecimentos verdadeiros,
E palavras sinceras, não dobradas,
As que o Rei manda aos nobres cavaleiros,
Que tanto mar e terras tem passadas.
Manda-lhe mais lanígeros carneiros,
E galinhas domésticas cevadas,
Com as frutas, que então na terra havia;
E a vontade à dádiva excedia.

77
Recebe o Capitão alegremente
O mensageiro ledo e seu recado;
E logo manda ao Rei outro presente,
Que de longe trazia aparelhado:
Escarlata purpúrea, cor ardente,
O ramoso coral, fino e prezado,
Que debaixo das águas mole cresce,
E como é fora delas se endurece.

78
Manda mais um, na prática elegante,
Que co'o Rei nobre as pazes concertasse,
E que de não sair naquele instante
De suas naus em terra o desculpasse.
Partido assim o embaixador prestante,
Como na terra ao Rei se apresentasse,
Com estilo que Palas lhe ensinava,
Estas palavras tais falando orava:

79
"Sublime Rei, a quem do Olimpo puro
Foi da suma Justiça concedido
Refrear o soberbo povo duro,
Não menos dele amado, que temido:
Como porto mui forte e mui seguro,
De todo o Oriente conhecido,
Te vimos a buscar, para que achemos
Em ti o remédio certo que queremos.

80
"Não somos roubadores, que passando
Pelas fracas cidades descuidadas,
A ferro e a fogo as gentes vão matando,
Por roubar-lhe as fazendas cobiçadas;
Mas da soberba Europa navegando,
Imos buscando as terras apartadas
Da Índia grande e rica, por mandado
De um Rei que temos, alto e sublimado.