Canto II, 99/113

Leitura de Os Lusíadas e poemas de Camões.
Canto II, 99/113 por Fernando Luís Sampaio.

Centro Cultural de Belém | Sala Fernando Pessoa Comemoração do Dia da Poesia, 22 de Março de 2009.


Canto II

99
Nos de sua companhia se mostrava
Da tinta, que dá o múrice excelente,
A vária cor, que os olhos alegrava,
E a maneira do trajo diferente.
Tal o formoso esmalte se notava
Dos vestidos, olhados juntamente,
Qual aparece o arco rutilante
Da bela Ninfa, filha de Taumante.

100
Sonorosas trombetas incitavam
Os ânimos alegres, ressoando;
Dos Mouros os batéis, o mar coalhavam,
Os toldos pelas águas arrojando;
As bombardas horríssonas bramavam,
Com as nuvens de fumo o Sol tomando;
Amiúdam-se os brados acendidos,
Tapam com as mãos os Mouros os ouvidos.

101
Já no batel entrou do Capitão
O Rei, que nos seus braços o levava;
Ele coa cortesia, que a razão
(Por ser Rei) requeria, lhe falava.
C'umas mostras de espanto e admiração,
O Mouro o gesto e o modo lhe notava,
Como quem em mui grande estima tinha
Gente que de tão longe à índia vinha.

102
E com grandes palavras lhe oferece
Tudo o que de seus Reinos lhe cumprisse,
E que, se mantimento lhe falece,
Como se próprio fosse, lho pedisse.
Diz-lhe mais, que por fama bem conhece
A gente Lusitana, sem que a visse;
Que já ouviu dizer, que noutra terra
Com gente de sua Lei tivesse guerra.

103
E como por toda África se soa,
Lhe diz, os grandes feitos que fizeram,
Quando nela ganharam a coroa
Do Reino, onde as Hespéridas viveram;
E com muitas palavras apregoa
O menos que os de Luso mereceram,
E o mais que pela fama o Rei sabia.
Mas desta sorte o Gama respondia:

104
"Ó tu, que só tiveste piedade,
Rei benigno, da gente Lusitana,
Que com tanta miséria e adversidade
Dos mares experimenta a fúria insana;
Aquela alta e divina Eternidade,
Que o Céu revolve e rege a gente humana,
Pois que de ti tais obras recebemos,
Te pague o que nós outros não podemos.

105
"Tu só, de todos quantos queima Apolo,
Nos recebes em paz, cio mar profundo;
Em ti dos ventos hórridos de Eolo
Refúgio achamos bom, fido e jocundo.
Enquanto apascentar o largo Pólo
As Estrelas, e o Sol der lume ao Mundo,
Onde quer que eu viver, com fama e glória
Viverão teus louvores em memória."

106
Isto dizendo, os barcos vão remando
Para a frota, que o Mouro ver deseja;
Vão as naus uma e uma rodeando,
Porque de todas tudo note e veja.
Mas para o céu Vulcano fuzilando,
A frota coas bombardas o festeja,
E as trombetas canoras lhe tangiam;
Co'os anafis os Mouros respondiam.

107
Mas depois de ser tudo já notado
Do generoso Mouro, que pasmava
Ouvindo o instrumento inusitado,
Que tamanho terror em si mostrava,
Mandava estar quieto e ancorado
N'água o batel ligeiro que os levava,
Por falar de vagar co'o forte Gama,
Nas cousas de que tem notícia e faina.

108
Em práticas o Mouro diferentes
Se deleitava, perguntando agora
Pelas guerras famosas e excelentes
Co'o povo havidas, que a Mafoma adora;
Agora lhe pergunta pelas gentes
De toda a Hespéria última, onde mora;
Agora pelos povos seus vizinhos,
Agora pelos úmidos caminhos.

109
"Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta, lhe dizia, diligente,
Da terra tua o clima, e região
Do mundo onde morais distintamente;
E assim de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Co'os sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço.

110
"E assim também nos conta dos rodeios
Longos, em que te traz o mar irado,
Vendo os costumes bárbaros alheios.
Que a nossa África ruda tem criado.
Conta: que agora vêm co'os áureos freios
Os cavalos que o carro marchetado
Do novo Sol, da fria Aurora trazem,
O vento dorme, o mar e as ondas jazem.

111
"E não menos co'o tempo se parece
O desejo de ouvir-te o que contares;
Que quem há, que por fama não conhece
As obras Portuguesas singulares?
Não tanto desviado resplandece
De nós o claro Sol, para julgares
Que os Melindanos têm tão rudo peito,
Que não estimem muito um grande feito.

112
"Cometeram soberbos os Gigantes,
Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou Pirítoo e Teseu, de ignorantes,
O Reino de Plutão horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos é trabalho ilustre e duro,
Quanto foi cometer Inferno o Céu,
Que outrem cometa a fúria de Nereu.

113
"Queimou o sagrado templo de Diana,
Do subtil Tesifónio fabricado,
Heróstrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo e nomeado:
Se também com tais obras nos engana
O desejo de um nome avantajado,
Mais razão há que queira eterna glória
Quem faz obras tão dignas de memória."