Arte de navegar, roteirística
e pilotagem

Bolina, navegação à

A navegação à bolina é, por definição, aquela que é efectuada com o vento aparente para vante do través, ou seja, menos de 90º relativamente à proa do navio, que o mesmo é dizer menos de 8 quartas. Uma quarta, por conseguinte, equivale a 11º,25 ou 11º15’. Com o vento aberto entre os 90º e os 157º,5 (8 a 14 quartas) o navio navega a um largo e com o vento a entrar por um ângulo superior a 14 quartas, navega à popa.

Contrariamente a uma ideia mais ou menos generalizada, nenhum navio à vela pode navegar contra o vento. Para se deslocar na direcção de onde sopra o vento – ganhar barlavento –, terá que fazer bordos, navegando em zigue-zague, a uma bolina tanto maior – menor ângulo com o vento – quanto as suas velas e o seu aparelho permitam. Por norma, um navio de pano latino – velas que envergam no sentido longitudinal do navio (e.g. caravela) – pode navegar mais chegado ao vento (bolina cerrada) do que um navio de pano redondo – velas que envergam no sentido transversal do navio (e.g. nau). Esta razão deve-se ao facto de as vergas – paus onde enverga o pano redondo – terem o seu movimento para vante limitado, devido à presença das enxárcias – cabos que seguram o mastro para a borda. Como tal, o ângulo com que a vela pode receber o vento é sempre menor do que aquele em que a vela já está, à partida, envergada no sentido proa-popa. Esta é a justificação pela qual, muitas das vezes mal explicada, se diz que uma caravela podia andar contra o vento. O que não corresponde minimamente à verdade. É que a navegação à vela para Portugal, da Mina ou do arquipélago de Cabo Verde,  só podia ser feita à bolina, pois a presença constante dos ventos alísios de nordeste (NE) a isso obrigava. Os navios tinham, consequentemente, que se afastar muito da costa e fazer a volta pelo largo, de forma a tornar possível a viagem, indo passar perto dos Açores. Com uma caravela, em vez de um navio de pano redondo, esse afastamento, ou volta pelo largo, seria um pouco menor. Mas não muito. É que, quanto mais cerrada for a bolina, maior é o abatimento – ângulo entre a proa e o rumo. No trajecto entre Cabo Verde e o cabo da Boa Esperança também os navios navegavam à bolina, até atingirem uma latitude próxima da do cabo. Nestas circunstâncias, sendo as mais das vezes navios redondos – naus – a fazer a viagem para a Índia, o afastamento da costa ocidental africana era enorme e passavam, inclusivamente, muito próximo da costa brasileira. O que terá levado ao descobrimento do Brasil, logo na segunda viagem da carreira, por Pedro Álvares Cabral.

            Apesar de muito se ter escrito acerca das capacidades de bolinar dos navios portugueses dos séculos XV-XVI, nem sempre as teses estão devidamente fundamentadas. E não por falta de documentação que refira as limitações de naus e caravelas. Indirectamente são fornecidas muitas informações por D. António de Ataíde na sua obra Viagens do Reino para a Índia e da Índia para o Reino (1608-1612), quando refere a proa a que os navios navegam e a direcção de onde sopra o vento. Mais explícito é o padre Fernando Oliveira, na sua Arte da Guerra do Mar, que escreve: «Os ventos que seruem pera qualquer derrota, sam os que vam com nosco, quero dizer, os que vão donde nos estamos pera laa onde imos. E vão com nosco todos os que ficão da ametade da roda ou circolo pera trás [mais de 90º com a proa], conuem asaber se irmos pera o sul, seruem largos todos os ventos que ficão da banda do norte de leste atee loeste,... qualquer destes leuaraa qualquer nauio do norte pera o sul sem trabalho. Tambem tomão as vezes os nauios do outro meyo circolo[menos de 90º com a proa], hua quarta e meia [cerca de 16º],... em especial os latinos... porem he cõ trabalho,... e descaem muyto do rumo sem aproueytar no caminho». De uma forma geral, como regra prática, e com base na documentação consultada, podemos concluir que um navio de pano redondo poderia navegar, no limite, com o vento relativo nas 6 quartas – cerca de 68º – a contar da proa. Por seu turno, uma caravela poderia bolinar com o vento relativo nas 5 quartas – cerca de 56º – a contar da proa. No entanto, em qualquer dos casos limites de bolina seriam de esperar cerca de 10º a 15º de abatimento relativamente à proa, o que tornava este tipo de mareação pouco eficaz. Era por isso preferível, não existindo obstáculos que o justificassem – e.g. baixos, ilhas, cabos – optar por uma mareação em que o vento fosse menos escasso.

António Gonçalves

Bibliografia
ATAÍDE, António de, Viagens do Reino para a Índia e da Índia para o Reino – 1608-1612, 3 vols., Lisboa, Agência-Geral do Ultramar, 1962
OLIVEIRA, Fernando, A Arte da Guerra do Mar, Lisboa, Ministério da Marinha, s.d.

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