Arte de navegar, roteirística
e pilotagem

Faleiro, Francisco e Rui

O reinado de D. João II foi marcado por inúmeras intrigas palacianas. O processo conturbado que foi a sua sucessão permitiu a continuação desse ambiente. Essas condições vão manter‑se ao longo do reinado de D. Manuel. Muitos homens sentem‑se despeitados, ao verem as suas ideias ser recusadas e decidem oferecer os seus préstimos a outros monarcas. Foi o caso de Fernão de Magalhães que foi para Castela e se propôs demonstrar que as ilhas Molucas, ricas em especiarias, se encontravam no hemisfério que pelo Tratado de Tordesilhas ficara no lado dos Reis Católicos.

Magalhães não foi sozinho. A concretização do seu projecto implicava a resolução de um problema técnico complicado, a determinação, com algum rigor, da longitude das ditas ilhas. Para solucionar esta questão Magalhães socorreu‑se do auxílio de Rui Faleiro, que tal como ele teria certamente razões para se sentir despeitado com o monarca português. Assim em 1517, Rui Faleiro vai para Sevilha levando consigo o seu irmão Francisco.

Tendo aceite o projecto, Carlos I considerou ambos, Magalhães e Rui Faleiro, em pé de igualdade, tendo iguais atribuições na viagem que se iria realizar. A cada um deles estava destinado o cargo de capitão‑geral da armada. A função de Faleiro seria construir alguns instrumentos necessários à condução da viagem e, tarefa bem mais importante, preparar um regimento no qual apresentasse propostas para solução do principal problema técnico da viagem, a obtenção da longitude.

O “prato azimutal” de Francisco Faleiro segundo a figura que vem no Tratado da Esfera, in Avelino Teixeira da Mota, O Regimento da altura de LesteOeste de Rui Faleiro, p. 119.

Razões não totalmente esclarecidas, embora se tenha invocado a saúde, levaram ao seu afastamento da preparação da expedição em 1519. Magalhães, mesmo depois de Faleiro ter sido afastado do planeamento da viagem, continuou a exigir a entrega do dito regimento, para o utilizar no decorrer da mesma.

Teixeira da Mota, que estudou a fundo este problema, chegou à conclusão que as instruções de Faleiro estariam incluídas nas regras náuticas que estão no final da relação da viagem de Magalhães, escrita pelo italiano António Pigaffeta. Posteriormente estudou um documento existente no Arquivo das Índias de Sevilha que considerou como contendo o texto das referidas instruções de Faleiro. Luís de Albuquerque afirma que Teixeira da Mota teria deixado inédito um estudo que preparava sobre o assunto, referindo ainda que o texto de Faleiro continua desaparecido.

Faleiro propunha três processos para obtenção da longitude: pela latitude da Lua, pelas conjunções e oposições da Lua com o Sol e com outros astros e pela declinação da agulha. Este último seria o método que teria a sua predilecção pois explica detalhadamente o mesmo, enquanto que para o uso dos outros não fornece praticamente informação nenhuma.

No entanto, o processo que teve alguma utilidade durante a viagem foi o segundo. Magalhães apresentou o regimento aos pilotos e a Andrès de San Martín, cosmógrafo que substituíra Faleiro na expedição, para que se pronunciassem sobre o valor das propostas de Faleiro. Os pilotos negaram qualquer validade ao texto, enquanto que San Martín considerou que seria possível obter as longitudes pela conjunção da Lua. O processo foi experimentado, por diversas vezes, durante a viagem com resultados razoáveis para as capacidades técnicas da época.

Quanto a Francisco Faleiro começou, tal como seu irmão, por trabalhar na preparação da viagem de Magalhães, tendo como encargo construir alguns instrumentos náuticos. Também foi afastado da expedição que fez a circum‑navegação do globo, tendo no entanto ficado encarregue de superintender a preparação da armada que se seguiria à de Magalhães.

Manteve‑se em Castela, sendo conhecidos inúmeros pareceres de sua autoria, como cosmógrafo. Foi chamado a pronunciar‑se sobre propostas de construção de cartas e sobre determinados padrões a que a mesmas deveriam obedecer, sobre instrumentos náuticos ou sobre métodos de cálculo a utilizar sobre determinados assuntos náuticos.

Foi autor de um Tratado del Esphera y del Arte del Marear: conel Regimiẽ~ento de las Alturas: cõ algũas reglas nuevamẽte escritas muy necessarias, publicado em 1535 e tendo privilégio real por dez anos concedido em 1532. Este texto contém partes baseadas na obra de Sacrobosco, mas vai mais além, pois Faleiro reelaborou aquele famoso texto medieval, de modo a que o mesmo melhor servisse para os seus intentos.

Dedica diversos capítulos às regras práticas a serem usadas pelos navegantes, tendo especial interesse o oitavo, que ele dedica à declinação da agulha e à utilização desta para determinação da longitude. O interesse desta parte texto reside no facto de ser o mais antigo texto impresso que se conhece onde é descrito um instrumento para, pela observação do Sol, se conseguir determinar a dita declinação. Em 1537, Pedro Nunes propõe um instrumento de sombras que é o aperfeiçoamento do proposto por Faleiro. Foram levantadas dúvidas sobre quem teria sido o inventor do processo, se Nunes se Faleiro, apontando os dados conhecidos para a primazia de Faleiro.

Desconhecem‑se as datas em que teriam falecido, embora se saiba que Francisco Faleiro ainda era vivo em 1574, sendo certamente bastante idoso, pois vivia em Espanha há 57 anos.

António Costa Canas


Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís de, “Faleiro, Francisco e Rui”, in Luís de Albuquerque [dir.], Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol I, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 402.
MOTA, Avelino Teixeira da, “A contribuição dos irmãos Rui e Francisco Faleiro no campo da náutica em Espanha”, in Avelino Teixeira da Mota [org.], A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas. Actas do segundo colóquio luso‑espanhol de história ultramarina, Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975, pp. 315‑341.
IDEM, O Regimento da altura de Leste‑Oeste de Rui Faleiro, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 1986.

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