Aula
da Esfera
A
Arte de Navegar em Portugal começou por se basear em
regras essencialmente práticas e empíricas. A formação
dos responsáveis pela condução dos navios tinha um
carácter eminentemente prático, sendo os conhecimentos
necessários transmitidos pelos mais experientes aos
“aprendizes” dessa arte. A literatura náutica
daquela época, redigida quase exclusivamente por
pilotos, é uma prova evidente desse pragmatismo, nela
se indicando as regras para condução dos navios, nos
mares que os Portugueses mais praticavam.
As
bases matemáticas necessárias para a navegação eram
bastante rudimentares, não sendo exigidos nenhuns
conhecimentos especiais, nem grandes capacidades de cálculo,
para levar a efeito as operações aritméticas necessárias
para determinar a posição dos navios. Por esse motivo
não existia em Portugal, durante o século XV e pelo
menos na primeira metade do XVI, qualquer organismo
institucional vocacionado para a formação dos pilotos.
O “apoio científico” era garantido por astrólogos,
que preparavam tabelas, prontas a utilizar, com
coordenadas dos astros para serem usadas na determinação
da posição dos navios.
Com
o passar do tempo, as exigências de precisão, no que
respeita ao conhecimento da posição do navio foram
aumentando. No final da primeira metade do século XVI,
a Coroa decidiu criar uma aula, do Cosmógrafo-mor, que
tinha, entre outras incumbências, a de ministrar formação
aos futuros pilotos e a outros homens ligados às
actividades náuticas, como cartógrafos e fabricantes
de instrumentos. Pouco se acerca das actividades deste
funcionário régio nos primeiros anos, mas as suas
aulas não teriam tido grande afluência, pelo menos
durante o século XVI. Situação semelhante se
verificou com a cadeira de matemática criada na
Universidade de Coimbra.
Em
1574, o rei decidiu solicitar ao Jesuítas que instituíssem
uma classe, no seu colégio de Santo Antão, em Lisboa,
destinada a dar a formação matemática necessária aos
homens do mar. Aproveitar-se-ia assim a experiência e a
vocação para ensinar que os membros daquela ordem
religiosa demonstraram desde a fundação da mesma. As
lições aí ministradas ficaram conhecidas pela designação
de Aula da Esfera. A origem desta designação está certamente
relacionada com os inúmeros “Tratados da Esfera”
redigidos na Idade Média, nos quais eram expostas noções
de Cosmografia, base dos conhecimentos necessários para
a Arte de Navegar.
O
objectivo inicial da Aula
da Esfera era fornecer as ferramentas técnicas e
matemáticas necessárias para os homens do mar. Por
esse motivo, o seu ensino era bastante prático, e
vocacionado para aquele objectivo concreto, pelo menos
nos primeiros tempos do seu funcionamento. Uma característica
importante desta aula é o facto de ele se afastar da prática
definida para o ensino da matemática nos colégios jesuítas.
Essa prática encontrava-se enunciada no Ratio
Studiorum, onde se definia o plano estratégico a
ser seguido pelos Jesuítas, em termos de ensino.
Sendo
o latim a língua culta da época usada na maioria das
aulas ministradas um pouco por toda a Europa, não
passou despercebido a um visitante italiano o facto de
em Portugal serem dadas lições, na Aula
da Esfera, em vernáculo, o que se percebe pelo
facto de os alunos serem geralmente pessoas que não
dominariam certamente o latim.
Com
o passar do tempo, e a modificação de diversos
aspectos da vida nacional, a referida aula sofreu também
alterações mais ou menos profundas. O programa das
aulas era definido pelo professor que as ministrava, razão
pela qual se notam modificações nas matérias
ensinadas cada vez que o professor mudava. Analisando os
diversos sumários, e nalguns casos apontamentos das próprias
aulas, que chegaram até aos nossos dias, notamos uma
tendência para um ensino cada vez mais teórico,
afastando-se portanto do seu objectivo inicial, que era
o de dar formação de índole prática.
O
interesse pela Arte de Navegar foi sendo cada vez menor,
mantendo-se no entanto, o interesse pela cosmografia e
pelo uso de globos. Nota-se por vezes, que os
professores analisam os problemas que interessavam aos
homens do mar, mas dum ponto de vista bastante teórico,
propondo soluções sem qualquer interesse prático.
Também o ensino da Geografia, que na época era
conhecida como Hidrografia, foi desaparecendo, a pouco e
pouco, das aulas.
Após
a Restauração da Independência, em 1640, os programas
da Aula da Esfera sofreram alterações significativas de forma a
melhor servirem as necessidades que o país conhecia.
Vivendo‑se então uma situação de confronto
militar eminente com Castela era premente a construção
de fortificações militares, especialmente nas regiões
de fronteira.
Matérias
como a Aritmética e a Geometria passaram a ser
ensinadas na segunda metade do século XVII, fornecendo
assim as bases essenciais para aqueles que mais tarde
viriam a ser engenheiros militares. A inclusão no
curso, por ordem régia, de lições de Arquitectura, é
mais uma prova evidente da importância que na época se
dava à formação de homens habilitados a construir e
reparar fortificações.
Muitos
dos professores que ensinaram na Aula
da Esfera eram estrangeiros. A insuficiência de
pessoal qualificado, em Portugal, para ministrar essas
matérias é uma das explicações para esse fenómeno.
Por outro lado, muitas das actividades de missionação
da Companhia de Jesus ocorreram no Oriente. Na China
essa missionação concretizou-se através de uma
actividade científica intensa por parte dos padres jesuítas,
que resolveram muitos dos problemas de ordem prática
que os Chineses lhes colocaram. Sendo Lisboa a via pela
qual esses cientistas chegavam ao Oriente, e pertencendo
aqueles territórios à Província portuguesa da
Companhia compreende-se facilmente que muitos desses
estrangeiros destinados ao Oriente cá ensinassem,
enquanto aguardavam a partida, ou quando de lá
regressavam.
Embora
possam ser apontadas inúmeras lacunas nas lições
apresentadas na Aula da Esfera importa destacar o facto de esta ter sido o único
local onde em Portugal se ensinou regularmente Matemática,
numa época em que a cadeira universitária dessa
disciplina não tinha praticamente nenhuns alunos. Além
disso, devido ao facto de muitos dos seus professores
serem estrangeiros, que tinham contactado com realidades
diferentes da portuguesa, a Aula
da Esfera foi a via de entrada de muitas das
novidades científicas que iam surgindo um pouco por
toda a Europa.
António
Costa Canas
06-2003
Bibliografia
ALBUQUERQUE,
Luís de, “A «Aula da Esfera» do Colégio de Santo
Antão no século XVII”, Estudos
de História da Ciência Náutica. Homenagem do
Instituto de Investigação Científica Tropical,
Lisboa, Instituto
de Investigação Científica Tropical, 1994, pp.
533-579.
LEITÃO, Henrique, “A periphery
between two centres? Portugal in the scientific routes
from Europe to China (16th and 17th
centuries)”, in Ana Simões, Ana Carneiro, Maria Paula
Diogo (eds.), Travels
of learning. A Geography of Science in Europe,
Dordrecht, Kluwer, 2003, pp. 19-46.
LEITÃO, Henrique, “Jesuit Mathematical Practice in
Portugal, 1540-1759” Archimedes, volume 6, Dordrecht, Boston, London, Kluwer Academic
Publishers, pp. 229-247.
Imagem:
Tratado sobre a
Esfera Material, Celeste e Natural, do padre Cristóvão
Galo. Reproduzido de ALBUQUERQUE, Luís de, “A «Aula
da Esfera» do Colégio de Santo Antão no século XVII”,
Estudos de História
da Ciência Náutica. Homenagem do Instituto de
Investigação Científica Tropical, Lisboa,
Instituto de Investigação Científica Tropical,
1994, p. 574.
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