A designação Diário de Bordo suscita controvérsia junto de alguns historiadores, sobretudo porque é tardio o uso do termo de forma sistemática, e os exemplos precoces são passíveis de uma outra classificação, mostrando-se algo desenquadrados do conceito que vem a cimentar-se no século XVII, e permanece até à actualidade com uma organização e obrigatoriedade que é conhecida. Parece-me no entanto útil que nos fixemos nesta expressão, adoptando a forma como chegou ao século XX, evitando confusões com alternativas menos adequadas, como “Diário de Navegação” (v.g. Diário de Navegação de Macau que regista movimentos comerciais no porto de Macau) ou o obscuro “Diário de Viagem” com múltiplas aplicações. O Diário de Bordo é pois um registo, mais ou menos regular, dos dados da navegação de um determinado navio, onde constarão rumos, singraduras, registos de observações astronómicas, posições observadas ou estimadas, manobras, aspectos meteorológicos e outras tantas efemérides consideradas como importantes para a boa condução da navegação e para uma informação posterior sobre a viagem.
Ainda durante o século XV, temos o exemplo do chamado Relato da Viagem de Vasco da Gama, que em muitos aspectos tem sido visto como um diário de bordo, onde falta o registo de enormes partes da viagem (pelo menos entre 18 de Agosto e 18 de Outubro de 1497), e com informações que não teriam importância para o efeito pretendido. Aliás, ao longo do século XVI vamos encontrar vários casos em que a designação de diário não preenche em absoluto as condições que se exigiriam a um diário de bordo, e pouca importância teriam tido para a navegação. Exceptuamos dois casos especiais, que são o Diário de Navegação de Pêro Lopes de Sousa, com os registos da viagem que efectuou ao Brasil sob o comando se seu irmão Martim Afonso de Sousa, e os chamados Roteiros de D. João de Castro, onde o carácter metódico dos registos os transforma em diários de bordo, mas com um objectivo distinto da sua normal elaboração. O caso de D. João de Castro é de resto um caso à parte em quase todas as considerações de natureza náutica, no século XVI, na medida em que os seus conhecimentos e métodos estão bastante avançados e isso é o mais importante acabam por não ter uma utilização prática significativa nas navegações que se lhe seguiram, permanecendo como estudo erudito e rigoroso, próprio de um fidalgo da renascença, interessado por questões de mar e navegação.
Até aos últimos anos do século XVI, não encontramos nenhum outro texto que possa verdadeiramente chamar-se um Diário de Bordo (o Diário da viagem de D. Álvaro de Castro ao Hadramaute, em 1548, é menos expressivo), mas é completamente absurdo pensar que eles não existiram numa forma qualquer. Não podemos aceitar que sendo a estima a forma básica e principal da navegação, se possa esquecer que para fazer estima é fundamental registar rumos, variações de rumo e distâncias percorridas, com o rigor possível e com uma enorme disciplina. É possível que numa viagem curta e numa derrota já conhecida, o piloto se dispensasse de escrever um registo da navegação, limitando-se a seguir os passos de um roteiro, mas parece-me de todo impraticável que o mesmo possa acontecer num percurso tão complexo como o de Lisboa à Índia. Além disso as cartas náuticas eram elaboradas no Reino, com base nos dados das próprias navegações, que os cartógrafos tinham de entender de qualquer forma. Quando entramos no século XVII (fim do XVI) e começamos a encontrar “verdadeiros” Diários de Bordo, verificamos que estamos a lidar com cópias sobreviventes, efectuadas à margem do procedimento normal e como resultado do zelo de alguém (provavelmente o 5º Conde da Castanheira). Com as excepções já referidas, talvez sejam estes os primeiros Diários de Bordo portugueses sobreviventes às agruras do tempo, mas não creio que, de maneira nenhuma, possam ter sido pioneiros da prática de registo de dados da navegação, que me parece inerente à técnica náutica (estima) e indispensáveis à produção cartográfica. Mais provável será que os registos dos pilotos tivessem desaparecido, como aliás aconteceu com muita outra documentação náutica portuguesa.
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Luís Jorge Semedo de Matos
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís, Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, 4ª Ed., Mem Martins, Europa América, 1989.
FONSECA, Quirino da, Diários da Navegação da Carreira da Índia nos anos de 1595, 1596, 1597, 1600 e 1603, Lisboa, Academia das Ciências, 1938.
LEITÃO, Humberto, Viagens do Reino para a Índia e da Índia para o Reino (1608-1612), 3 vols, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1957/58.
PINTO, João Rocha, Houve diários de bordo durante os séculos XV e XVI?, sep. Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXXIV, 1988, Lisboa, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1988.
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