Arte de navegar, roteirística
e pilotagem

Náutica Portuguesa

Quando as forças de D. Afonso Henriques conseguiram entrar na praça de Lisboa, aprisionando os navios que aí se encontravam e apoderando-se do respectivo porto, criaram-se as condições para o desenvolvimento de uma intensa actividade marítima, na costa ocidental da Península Ibérica. É seguro que nessa altura já o mar era sulcado por navios portugueses, em diversas direcções, e a conquista da barra do Tejo reforçou esta capacidade. No entanto não será antes do reinado de D. Dinis que se organiza e consolida o trato de comércio na costa portuguesa, protegido por uma esquadra permanente, que resulta do contrato efectuado entre a coroa e o marinheiro genovês, Manuel Pessanha, através do qual este se via obrigado a manter vinte homens de Génova, “sabedores do mar”, para servirem como alcaides das galés portuguesas. Nesta altura os navios portugueses já navegavam pela costa e até aos locais habituais do trato próprio da época, mas é normal que o incremento institucional da organização naval tenha concorrido para um aumento do número de práticos nessa arte, e, sobretudo, que a presença dos italianos tenha levado à divulgação de uma técnica náutica típica do Mediterrâneo, que se aceita como sendo a matriz dos conhecimentos desenvolvidos posteriormente, durante os séculos XV e XVI.

Em que consistia, então, esta náutica mediterrânica? Era uma técnica que permitia conduzir os navios nas condições exigidas pelo próprio Mediterrâneo, com troços de viagem curtos, quase sempre à vista de costa ou com pequenas travessias. Basicamente os navios seguiam direcções referenciadas no horizonte, estimando as distâncias percorridas, e confirmando a sua posição através de conhecenças costeiras. Sabe-se que, a partir do final do século XII ou princípios do XIII, o manter de uma direcção (um rumo) contou com a ajuda de um precioso instrumento que foi a agulha magnética (bússola), mas antes disso já havia outras técnicas ou outras formas de obter referências no horizonte, pelo conhecimento do local de nascimento e ocaso de certas estrelas (referência que não era permanente, como a da bússola, mas servia de orientação nas condições de uma navegação que era, necessariamente, lenta). O portolano (portulano) – velha compilação de instruções para a navegação – a partir do qual se terão desenhado as cartas portulano (designação do século XIX) é a expressão desta forma simples de navegar. O mais antigo documento deste tipo que chegou até nós assim o mostra (Lo compasso da navigare de meados do século XIII), e as cartas desenhadas a partir de compilações deste género, apontam-no claramente. São cartas onde sobressai a teia de rumos, a partir da qual se desenharam os contornos da costa onde foram inscritas as designações toponímicas.

Foi com esta herança de saber náutico que começaram as navegações portuguesas do século XV, nomeadamente as que decorreram sob a égide do infante D. Henrique, após a conquista de Ceuta em 1415. Discute-se quando é que o afastamento da costa exigiu a adopção de outras formas de navegar, tendo em conta que o número de dias sem avistar outra coisa que mar e céu poderá levar a que os erros de estima se possam tornar fatais. Ou seja, quando é que os navegantes portugueses começaram a servir-se dos astros para saber como conduzir os seus navios? Não é fácil responder a esta pergunta. A associação mais fácil que se pode fazer entre a configuração do céu e a posição do navio é a observação da Estrela Polar verificando que quanto mais alta ela está, mais para norte está o navio. A sua proximidade do pólo celeste faz com que seja visível em quase todo o hemisfério norte durante todo o ano (deixa de ser vista em latitudes abaixo dos 7º N ou 6º N), sendo intuitivo o estabelecimento de uma relação entre a sua altura e a latitude do lugar. Mesmo aqueles que desconheciam a noção de latitude, intrinsecamente ligada à ideia da Terra como um corpo esférico, observavam a variação de altura da Polar e associavam-na à regra que conheciam e que relacionava essa alturas com certos locais em terra. É desta forma que se supõe que terá começado a ser utilizada, imaginando eu que pode tê-lo sido mesmo sem o recurso a instrumentos próprios, como os astrolábios ou quadrantes que os astrólogos manipulavam desde a Antiguidade. Há, no entanto, uma referência concreta à observação da Estrela Polar que importa referir: numa viagem que deverá ter ocorrido entre 1456 e 1458 ou 59, Diogo Gomes avistou a ilha de Santiago e diz-nos “E eu tinha um quadrante, quando fui a estes países, e escrevi na tábula do quadrante a altura do pólo ártico”. Certamente que não foi a primeira vez que a técnica foi usada (o piloto parece familiarizado com ela), mas importa considerar o que é dito por Diogo Gomes, ao estabelecer a relação entre a observação pelo quadrante e a posição da ilha de Santiago. Deduz-se daqui uma técnica que me parece simples: navegava-se numa região onde – com excepção das ilhas – a terra ficava sempre a ocidente; ora, com uma simples observação astronómica, era possível localizar nesse “ocidente”, o local ou porto que se queria demandar: bastava saber qual a altura do pólo nesse porto e navegar na direcção correcta. Esta foi a técnica básica que acompanhou a náutica portuguesa até ao século XVIII (até ser conhecida a forma de determinar a longitude): saber a latitude de um lugar (saber a altura do pólo é saber a latitude do lugar); navegar para norte ou para sul até alcançar essa latitude; rumar depois a oeste (a leste, nalguns casos) até encontrar terra. Com os erros próprios do tempo, assim se aprendeu a demandar os portos atlânticos. Há apenas uma dificuldade a resolver ainda: o Pólo Norte não se localiza facilmente, porque não tem nenhuma referência exacta visível. Recorria-se à medição da altura da Estrela Polar, que dele estava afastada cerca de 3º 40’, corrigindo-se o valor obtido, de acordo com um conjunto de regras consignadas nos Regimentos do Norte. Basicamente, o Regimento apontava (de forma tabular ou gráfica) o valor a somar ou subtrair à altura observada da estrela, para obter a altura do Pólo, que é também a latitude do lugar.

Regimento do Norte, Livro de Marinharia de João de Lisboa

Todas as navegações efectuadas até ao limite de observação desta estrela (cerca de 6º a 7º N) podiam ser feitas assim, mas quando se passou o Equador para sul explorando a costa africana até ao Cabo da Boa Esperança, isto deixou de ser possível. Julgo que, aqui, foi decisiva a intervenção dos astrónomos, na forma como souberam aproveitar o seu conhecimento da esfera celeste, encontrando uma forma simples – ao alcance de pilotos com formação matemática não muito desenvolvida – de utilizar a observação da altura do Sol. com os mesmos objectivos com que fora utilizada a altura da Polar. O movimento aparente do Sol não se faz sempre sobre um mesmo círculo, variando ao longo do ano, com uma consequência evidente na alteração do tempo próprias do decorrer das estações. Em termos concretos, o sol varia permanentemente a sua posição em relação à Terra, movimentando-se (movimento aparente) entre os 23º 27’ S (em Dezembro) e 23º 27’ N (em Junho). A determinação da latitude faz-se com base na altura do sol tirada na sua passagem meridiana (ponto mais elevado do Sol), mas é necessário incluir no cálculo o valor da declinação solar, que era dado por uma tabela construída pelos astrónomos. Um processo relativamente simples, apesar de tudo.

Com o decorrer das viagens cada vez mais para sul e com a abertura do caminho da Índia, outras estrelas foram observadas (nomeadamente no Hemisfério Sul), mas o método mais vulgar para determinação da latitude foi sempre a determinação da altura do Sol na sua passagem meridiana, observada com o auxílio de instrumentos que já eram usados pelos astrónomos, simplificados e adaptados às necessidades da navegação. Já foi dito que o quadrante era usado para medir a altura da Estrela Polar, e é seguro que também serviu para as observações solares, embora se saiba que, a partir de 1500, era preferido o astrolábio por ser mais rigoroso.

Medindo a altura de uma estrela com o quadrante
Medindo a altura de uma estrela com um astrolábio. Desenho de Sousa Machado (Revista da Armada)

A partir do momento em que a latitude passou a ser uma coordenada facilmente determinável no mar, e importante para a boa condução dos navios, o desenho das cartas náuticas adaptou-se a essas circunstâncias, aperfeiçoando-se a técnica de determinação da posição do navio. O mais antigo mapa que chegou à actualidade, em que está suposta uma escala de latitudes, é o planisfério anónimo português de 1502, vulgarmente chamado de “Cantino”. A marcação do Equador e dos Trópicos de Câncer e Capricórnio indica-nos uma distância na carta, afastada dos tais 23º 27’ (23º e ½, como era genericamente suposto na época) que constituem a máxima declinação do Sol nos Solstícios. É uma carta ricamente ornamentada, que nunca serviu para navegar, mas que se supõe ter sido copiada de um padrão real, existente em Lisboa, onde estaria marcado todo o mundo conhecido dos portugueses. Nela encontramos a região da Europa e Mediterrâneo com a mesma configuração dos velhos portulanos, mas todo o resto da carta (nas zonas conhecidas pelos portugueses) teve em conta esta coordenada. Não faria sentido, aliás, que assim não fosse, porque a determinação da latitude no mar obrigava a uma interpretação na carta que não podia ser igual à velha técnica mediterrânica. onde apenas as linhas de rumos e as distâncias eram usadas. A estima continuou a ser fundamental, mas podia ser corrigida com a determinação de uma coordenada terrestre que permitia a sua correcção: navegando num determinado sentido (rumo) e tendo uma ideia aproximada da distância percorrida, o Ponto Estimado podia ser transformado no que se chamava de Ponto de Esquadria, muito mais próximo da realidade e mais adequado a uma boa navegação.

Ponto de esquadria para rumos a menos de 45º
do meridiano inicial


Ponto de esquadria para rumos a 45º do meridiano inicial


Ponto de esquadria para rumos a mais de 45º
do meridiano inicial

Resta-me referir que a par com a técnica de determinação da posição do navio, e o desenho de novas cartas onde estavam representadas as terras até então desconhecidas, apareceram também as regras ou as indicações práticas que apontavam os caminhos do mar. Refiro-me aos correspondentes dos velhos portulanos mediterrânicos, adaptados agora ao espaço atlântico e Índico: um conjunto de informações que permitiam encontrar o que chamo de “os caminhos do mar”. Os navios navegavam à vela, com limitações de autonomia, que exigiam um conhecimento razoável do regime de ventos, para que pudessem cumprir as viagens nas melhores condições. As “descobertas” do final do século XV e princípio do XVI, foram, sobretudo, o reconhecimento destes caminhos a seguir para aproveitar ventos e correntes, para evitar os baixos e outros perigos, saber as melhores épocas para certas viagens, aprender a reconhecer os sinais de terra, a interpretar e a compreender os perigos. Foi esta a função dos novos roteiros, elaborados para a carreira da Índia, depois para Malaca e Molucas, China, Japão, Brasil, enfim, para todos os mares onde andavam os navios portugueses, avisando os pilotos de como deviam escolher a sua rota no vasto espaço do oceano. Foram estes roteiros que se foram aperfeiçoando ao longo do século XVI, crescendo em pormenor e eficácia, tornando-se as mais importantes indicações para cada viagem específica.

Luís Jorge Semedo de Matos

Bibliografia

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BARBOSA, António, Novos subsídios para a história da ciência náutica portuguesa da época dos descobrimentos, Porto, Instituto de Alta Cultura, 1948.

COSTA, Fontoura da, A Marinharia dos Descobrimentos, 4ª Ed., Lisboa, Edições Culturais de Marinha, 1983.

MATOS, Luís Semedo de, “A navegação: os caminhos de uma ciência indispensável”, História da Expansão Portuguesa, dir. Francisco Bethencourt e Kirti Chaudhuri, 1º vol, Lisboa, Círculo de Leitores, 1998, pp 72-87.

RIBEIRO, António Silva, A Hidrografia nos Descobrimentos Portugueses, Mem Martins, Publicações Europa América, 1994.

SILVA, Luciano Pereira da, Obras Completas, 3 vols, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1943-45

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