Arte de navegar, roteirística
e pilotagem

Roteiros

«ESTE LIURO HE DE ROTEAR...» são as primeiras palavras do título do mais antigo roteiro português que se conhece, transcrito no Manuscrito de Valentim Fernandes, e que Fontoura da Costa supõe ter origem num texto ainda do século XV. Explica este livro como se devem percorrer determinadas rotas ou caminhos do mar, já anteriormente rasgados por outros que, efectivamente, os descobriram tendo o cuidado de tomar notas sobre a navegação efectuada. Apesar do desenvolvimento dos meios técnicos colocados à disposição dos navegadores, ainda hoje se usam roteiros com preciosas indicações sobre as costas, condições meteorológicas, formas de identificar perigos e muitas outras informações indispensáveis a qualquer navegação segura.

Estes primeiros textos decorrem de uma tradição mediterrânica de pormenorizadas descrições manuscritas sobre trajectos marítimos e maneiras de demandar portos, com avisos sobre perigos e múltiplas informações, cujas compilações escritas constituíram os “primitivos” portulanos, anteriores às cartas que os complementaram a partir do século XIV. O mais antigo texto deste género, que até nós chegou, foi o célebre Il Compasso di Navigare, datado de meados do século XIII, cujas características tiveram continuidade na tradição italiana, transitando para Aragão, França, Grã-Bretanha, Castela e, naturalmente, Portugal. É de notar, aliás, que os mais antigos roteiros escritos em português têm enormes semelhanças com os seus correspondentes noutras línguas, sugerindo uma fonte comum que, nos textos que se referem às costas europeias, é de crer que seja italiana.

Com o desenvolvimento da navegação atlântica ao longo do século XV, e com o surgimento da navegação astronómica, que permitia a localização de pontos da costa através da latitude observada, as condições dos roteiros portugueses foram divergindo dos tradicionais mediterrânicos, vocacionados para as tradicionais formas de localização do navio com base no rumo seguido e na estima da distância percorrida. Fontoura da Costa, num estudo sobre os roteiros portugueses escritos antes de 1700 (data que aqui não será ultrapassada), considera terem existido duas épocas distintas “bem delimitadas pelos notabilíssimos trabalhos de D. João de Castro” (1538-41). Compreende-se o seu critério, dada a singularidade dos Roteiros de D. João de Castro, mas entendo que não devem ser enquadrados na normal sequência dos textos que tiveram uma utilização prática para a navegação portuguesa. Foram uma importante obra do renascimento português, bem à medida do seu autor e dentro de um padrão de saber adequado às elites europeias do século XVI, mas num nível que não pode ser colocado ao lado dos conhecimentos próprios do ofício de piloto e da roteirística corrente. Assim, prefiro encarar a evolução dos roteiros portugueses (até 1700) como um processo sereno (sem ser linear), que passa da tradição mediterrânica de descrição de costas, com rumos e distâncias (Valentim Fernandes), para a introdução de latitudes de lugares e informações específicas para uma melhor utilização de ventos e correntes dominantes ou sazonais. Dentro do conjunto de instruções que acompanham a viagem de Pedro Álvares Cabral, em 1500, constam informações preciosas para ultrapassar o Atlântico Sul e demandar o cabo da Boa Esperança, que vêm a ter expressão em textos posteriores, e que surgem coligidas no primeiro grande roteiro da Carreira da Índia (ida e volta) elaborado por Diogo Afonso (ci. 1536), que ficou como referência por muitas décadas. Não se conhece o seu texto original, mas está transcrito de forma quase integral no Livro de Marinharia de Manuel Álvares e na compilação efectuada por Linschoten (Le Gran Routier de Mer) no final do século XVI, publicada em holandês, inglês e francês.

Um segundo marco na roteirística portuguesa – especialmente no que diz respeito à Carreira da Índia – surge com os dois Roteiros de Vicente Rodrigues (ci. 1575 e ci. 1592), riquíssimos de informação destinada aos pilotos da Índia, ao ponto de permanecerem em transcrições parciais (melhoradas) até ao século XVIII. É muito provável que a base destes dois roteiros tenha sido ainda o de Diogo Afonso, mas qualquer deles foi muito acrescentado de informação técnica, novas ilhas e baixos, alterações diversas e conhecenças múltiplas, onde proliferam indicações sobre fauna e flora marinha, indicadoras da proximidade de perigos, ilhas e costas. Aliás, Linschoten copiou e traduziu o primeiro destes roteiros (que também consta do Gran Routier), dada a sua importância e o acréscimo de informação que lhe achou.

Nesta fase, decorrido que era um século sobre a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia, os roteiros portugueses apresentavam consideráveis diferenças de estilo e informação sobre os mais antigos textos náuticos do Mediterrâneo. Destinavam-se, sobretudo, a fornecer indicações para grandes viagens, com períodos longos sem avistar terra, onde se perdiam com facilidade as referências próprias das travessias curtas. Surgem informações sobre aspectos meteorológicos, quer no que diz respeito a sinais de tormenta, como indicações sobre as correntes e os “ventos gerais” (V. Rodrigues), e o regime de monções, que era necessário aproveitar para atravessar o Índico ou demandar Malaca e o Extremo Oriente. Ao entrar no século XVII pouco se acrescentaram aos textos já estabelecidos, verificando-se, por exemplo, que uma das mais notáveis colectâneas de roteiros do princípio desse século, devida a Manuel de Figueiredo, no que diz respeito às rotas já conhecidas e exploradas (como a da Índia) não se esquece de dizer que os mesmos são “segundo Vicente Rodrigues e Pilotos modernos”, entendendo-se que apenas se lhe fizeram pequenos ajustes. Importante será, no entanto, referir o Roteiro de Gaspar Ferreira Reimão, de 1612 (que volta a invocar D. Afonso e V. Rodrigues), porque nele se regista uma alteração regimental à viagem de regresso da Índia, feita desde 1527 por fora (Leste) de Madagáscar, e que, a partir de 1597, voltou a fazer-se por dentro (Oeste) dessa mesma ilha. O século fecha com Luís Serrão Pimentel e seu filho Manuel Pimentel onde se repete esta situação, com raríssimas excepções.

Importante é ainda referir que, para além do roteiro da Carreira da Índia, que constituiu a base do que tenho dito, outros foram publicados para zonas específicas onde Portugal tinha interesses que obrigavam a viagens marítimas. O caso mais flagrante é a própria Europa, acerca de que não seria legítimo ignorar a evolução dos textos do século XV, aproveitados pelos portugueses e transcritos em muitas colectâneas. Mas, para além desta zona vizinha, ainda no século XVI há uma intensa produção de trabalhos referentes à costa do Brasil, do caminho de Malaca, das Ilhas das Especiarias, da China e do Japão, que se iniciam com a mesma base de saber náutico quinhentista e que vão evoluindo. Um pouco mais tarde vêm também os roteiros das Índias Ocidentais (ou de Castela), que passaram a ser frequentadas pelos navios portugueses. Manuel de Figueiredo deixou uma volumosa colecção de trabalhos náuticos destinados à preparação dos homens do mar (Hydrographia, exame de pilotos,...), com uma apreciável colecção de roteiros de todas estas paragens, onde não falta sequer a Derrota da Terra Nova dos Bacalhaos.



Luís Jorge Semedo de Matos

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Luís, Considerações sobre a Carta-Portulano, sep. Revista da Universidade de Coimbra, vol 31, Lisboa, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1984.

ALBUQUERQUE, Luís, “Roteiros”, in Dicionário de História dos Descobrimentos, dir. de [...], coord. Francisco Contente Domingues, vol II, Lisboa, Círculo de Leitores, 1994, p. 949

COSTA, Fontoura da, A Marinharia dos Descobrimentos, 4ª Ed., Lisboa, Edições Culturais de Marinha, 1983.

MOTA, A. Teixeira da, Evolução dos Roteiros Portugueses durante o século XVI, sep. Revista da Universidade de Coimbra, vol. XXIV, Coimbra, 1969.

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