Navios, Construção e Arquitectura Naval

Galeaça

O termo “galeazza” usou-se primitivamente como designação alternativa para “galea grossa” (as grandes galés mercantes do Mediterrâneo) e mais tarde para identificar um tipo de galé de grandes dimensões com a estrutura e obras mortas reforçadas para aceitar mais artilharia de grande calibre. Esta designação diversa era, apesar de tudo, coerente, uma vez que as primeiras galeaças militares não passavam de grandes galés mercantes modificadas (sendo isto verdadeiro para as seis venezianas de Lepanto, de 1571, e para boa parte dos exemplares mediterrânicos quinhentistas).

Apesar da origem mercantil, esta versão emergiu como um navio de função exclusivamente militar. Tentativa de aproximar a galé dos níveis de poder de fogo dos navios de alto bordo, a galeaça foi contemporânea da generalização do uso da artilharia, sendo assim um desenvolvimento genuinamente quinhentista.

As representações iconográficas de galeaças parecem vulgarizar-se a propósito de três campanhas de finais do século XVI, onde estes navios alcançaram um protagonismo muito superior à sua importância numérica: Lepanto (1571), Açores (1583) e Grande Armada (1588). O que surpreende é a escassez anterior de representações, fazendo crer a autores como R.C. Anderson que as galeaças venezianas de Lepanto tivessem talvez sido as primeiras do tipo militar. Ora, as referências documentais não deixam dúvidas sobre a existência de galeaças desse tipo nas primeiras décadas do século XVI; não só nas marinhas mediterrânicas, como também na Armada da Índia e na Royal Navy (1515). Pensamos que a galé saboiana que ocupa o primeiro plano do conhecido quadro de Greenwich (Fig.) pode ser a representação de uma dessas primitivas galeaças, pois a sua ordenança, o seu aparato e o papel destacado na figuração não deixam dúvidas sobre a sua função militar, o que contrasta com as características morfológicas do navio (em particular da proa, pouco visível mesmo no original) que correspondem a uma galé mercante remada “alla scaloccio”.

As galeaças nunca foram numerosas em qualquer marinha. Parece que sete foi o numero máximo na marinha veneziana e dez na marinha otomana. A sua importância foi, porém, de ordem experimental e nesse sentido crítica. Representam a tentativa de colocar os navios de remo em condições de competição com os navios de alto bordo, numa altura em que aqueles são empurrados irrevogavelmente para o estado obsoleto. O esforço de preservar a característica central dos navios de remo, ou seja a sua liberdade de movimentos, num casco mais capaz em termos náuticos e mais adaptado à instalação de uma ordenança significativa foi um assinalável fracasso e o epitáfio do navio de remo como navio de guerra principal. Um sistema de remos eficaz era incompatível com um casco resistente e preparado para a artilharia. Por outro lado, um número de bancos e remadores equivalente ao de uma grande galé tinha que motorizar um navio muito mais pesado o que fazia das galeaças navios mais lentos e menos manobráveis que as galés. A galeaça era um mau navio de remo e uma pior plataforma de artilharia.

Foram ensaiadas várias soluções para aumentar o espaço disponível para artilharia: arrombadas reforçadas, com dois níveis; coberta de remadores, instalação de peças grossas entre as bancadas; suportes superiores para peças ligeiras – nenhuma foi satisfatória, mas permitiram que algumas galeaças pudessem instalar ordenanças equivalentes em número (e próximas em calibres) a qualquer veleiro de guerra e que podiam aproximar-se da centena de peças.

O aparelho típico das galeaças mediterrânicas consistia em três velas latinas, embora em Florença pudessem ser encontradas galés bastardas (de grandes dimensões) com aparelho de caravela redonda, configuração que era frequente nas galés portuguesas.

Os portugueses usaram galeaças no oriente, embora de forma limitada. Não estando seguros da sua vantagem funcional sobre outros tipos mais familiares, construíram pontualmente uma ou outra unidade, provavelmente para testar o seu desempenho. Tratou-se de uma utilização experimental que nunca evoluiu para um estado de uso generalizado.

Pensou-se em construir uma logo no tempo de Afonso de Albuquerque, mas, eventualmente por oposição de parte dos oficiais, o projecto não foi avante. Em 1523, segundo o testemunho do escrivão da Fazenda António da Fonseca, encontrava-se uma em serviço na Armada da Índia e que, segundo cremos, era a galeaça Conceição, citada, entre outros documentos no conhecido “Alardo de 1525”. Longe de ser uma curiosidade naval, esta galeaça Conceição estaria muito activa nos anos subsequentes, fazendo parte do núcleo de choque da Armada. São também conhecidas as duas galeaças da grande armada que Nuno da Cunha levou contra Diu em 1531.

Não podemos deixar de registar o testemunho sobre as galeaças que Silvestre Corso enviou (ca1513-1515) a D. Manuel. Parece-nos importante por se tratar do testemunho de um homem dos navios de remo e de uma das figuras fundamentais da construção da Armada da Índia: “Cá chegaram três carpinteiros genoveses e quatro comitres ... e eles vos dão a entender que as galeaças são necessárias na Índia para vosso proveito e elas não são necessárias, porque essas galeaças não são senão assim como naus e querem grande custa e muita gente, porque uma galeaça há mister gente para quatro naus e, por derradeiro, não aproveitam mais que por uma nau”.

José Virgílio Amaro Pissarra


Bibliografia
ANDERSON, R.C., Oared Fighting Ships. From Classical times to the coming of steam, London, Percival Marshall, 1962.
ALERTZ, Ulrich, “The Naval Architecture and Oar Systems of Medieval and Later Galleys”, in John Morrison (coord.), The Age of the Galley. Mediterranean Oared Vessels since pre-classical Times, London / Annapolis, Conway Maritime Press / Naval Institute Press, 1995, pp.142-162.
BONDIOLI, Mauro, BURLET, René e ZYSBERG, André, “Oar Mechanics and Oar Power in Medieval and Later Galleys”, ibidem, pp.172-205.

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