O termo caravela ocorre pela primeira vez na documentação portuguesa em 1255, encontrando-se ainda em 1754, numa obra impressa, e num manuscrito de 1766. É portanto fácil de compreender que encobre referências a múltiplas embarcações, desde a pequena caravela latina de um mastro até à caravela redonda ou de armada, passando pela caravela latina de dois mastros, que protagonizou as viagens de exploração atlântica até 1488, sem deixar porém de continuar a ser utilizada depois desta data em várias circunstâncias.
A caravela latina apareceu nos Descobrimentos em 1440, segundo atesta Zurara: “Bem é que no ano de 40 se armaram duas caravelas a fim de irem àquela terra [do Rio do Ouro], mas porque houveram acontecimentos contrários, não contamos mais de sua viagem” (Crónica dos Feitos de Guiné, cap. XI).
Tratar-se-ia da caravela com dois mastros de pano latino, uma coberta e um pequeno castelo de popa, com um só piso, com cerca de 50 tonéis de arqueação. Navio ideal para singrar em mares desconhecidos, pela facilidade com que bolinava (isto é, progredia em ziguezague contra o sentido dominante do vento), a caravela podia navegar junto à costa e entrar em embocaduras de rios: um navio adequado para a exploração marítima, portanto. Mas é também o maior navio até então empregue nas viagens de descobrimento, representando por isso a vantagem e necessidade de progredir para Sul com uma embarcação capaz de levar os tripulantes até mais longe, combinando uma autonomia adequada com as qualidades marinheiras que essas viagens exigiam.
Foi por isso o navio empregue nestas viagens até Bartolomeu Dias dobrar o cabo da Boa Esperança. Mas é bem provável, como aventou Jorge de Matos, que o impedimento para a continuação da última viagem de Diogo Cão (terminada em 1486 ou 1487) tenha sido precisamente a falta de autonomia da caravela, agora patente pelo alongamento das explorações marítimas. Ou seja, o navegador ter-se-ia visto constrangido a voltar para trás, face a uma costa desértica (onde não tinha a certeza de poder reabastecer-se) e sem provisões que garantissem o retorno com segurança (sobretudo água potável). Em reforço desta explicação ocorre o facto de a armada de Bartolomeu Dias incorporar uma naveta para abastecimentos, que foi abatida uma vez cumprida a sua função, servindo de apoio às duas caravelas de exploração. Depois do regresso a Lisboa, em finais de 1488, os navegadores deram conta ao rei da sua impossibilidade de prosseguir a viagem por não terem navios fortes para enfrentar os “mares grossos” que encontraram; por isso Vasco da Gama levará naus na primeira viagem a fazer a ligação marítima com o Oriente, navios que, entre outras vantagens apresentavam uma capacidade de carga muito superior, e portanto maior autonomia nas viagens de longo curso.
Na documentação técnica existem regimentos relativos à construção de outro tipo de caravelas: as caravelas redondas, um nome moderno que vingou na historiografia, pela mesma razão que se chamam redondos navios como a nau ou o galeão; ou seja, são navios que armam pano redondo, na realidade velas com formato trapezoidal, ganhando aquela designação pelo aspecto que tomam quando enfunadas pelo vento. Caravelas armadas ou de armada são designações de época, que indiciam a sua funcionalidade: caravela de armada significa quase sempre que se destinava à navegação em armada ou ao serviço de armadas.
Existem regimentos para a construção de caravelas de 150 a 180 tonéis, de doze rumos e de onze rumos. Estas medidas apontam para tonelagens de 110 a 150 tonéis, no segundo caso, e de 100 a 125, no terceiro. Resulta daqui que caravelas redondas e caravelas latinas são tipos de navios distintos, encontrando no nome genérico o maior elo de ligação entre ambos.
A caravela redonda possui castelos de popa e proa, ao contrário da latina, que não pode ter qualquer estrutura erguida sobre a proa do navio, por causa da manobra da verga do mastro do traquete. Deste ponto de vista, a caravela redonda está mais próxima das naus e galeões que da sua congénere latina.
Acontece o mesmo quanto ao afilamento das linhas do casco, verificando-se que a relação entre o comprimento e a largura se situa entre os 3:1 e os 4:1, andando sensivelmente pelo meio (J. G. Pimentel Barata, "A Caravela", p. 36). Esta relação anda próxima da do patacho, navio de características semelhantes, e é ligeiramente superior à relação 3:1 estipulada pelos regimentos para os navios de 150 tonéis.
A configuração da caravela redonda obedece à dos navios redondos em geral, tendo o casco mais afilado que os de porte superior, castelos de popa e proa com dois e um pavimentos, e duas cobertas. Arvorava quatro mastros, com pano redondo no traquete e latino nos restantes. É uma morfologia perfeitamente adequada à tonelagem e de acordo com as tendências que conhecemos para a evolução geral dos navios de vela desde o século XV, que registaram primeiro uma grande elevação das superestruturas, e vieram paulatinamente a diminuir de volume.
Um outro aspecto estrutural que convém referir é o do esporão, que não existe na caravela redonda pelas mesmas razões que se aplicam ao galeão.
Não existe qualquer indicação minimamente segura quanto à cronologia dos diversos tipos de caravelas, depois de estabelecida a primazia da latina de dois mastros nas navegações atlânticas da segunda metade de Quatrocentos. Pimentel Barata avançou a hipótese de a caravela latina de três mastros ter aparecido já pelos finais do século XV, embora só se documente pelo primeiro quartel da centúria seguinte. Teria já dois pavimentos à popa, tolda e chapitéu aberto à ré, e uma mareagem de grades à proa. Para a tonelagem avençou os 100 tonéis, o que parece ser perfeitamente razoável, dado o comprimento de quilha requerido para a implantação de três mastros. A caravela redonda ou de armada ter-lhe-ia sucedido pelo segundo quartel do século, tomando paulatinamente o lugar da forma anterior (Pimentel Barata, op. cit., pp. 30-31). Julgamos porém ser muito plausível que a caravela redonda tenha aparecido bem mais cedo, muito provavelmente com a viagem de Pedro Álvares Cabral.
A armada de Cabral tinha três ou quatro navios do tipo da caravela. Poderão ter sido redondas, por duas ordens de razões: a caravela latina de dois mastros provara as suas fragilidades como navio transoceânico; e a rota já era conhecida, com a consequente possibilidade de aproveitamento de ventos constantes pela popa.
As caravelas de Cabral podem bem ter sido caravelas de três mastros, mas com pano redondo no traquete, como se usava ocasionalmente na navegação mediterrânica e faz todo o sentido que tenha sido decidido desde o início nesta circunstância. Essa mudança permitiria a rápida transformação da mareagem de grades para um pequeno castelo de proa com um pavimento coberto e o fecho do chapitéu com o aumento da tonelagem, conduzindo, com o tempo, ao acrescentamento de um quarto mastro latino, definindo-se desta maneira a caravela redonda tal qual é conhecida dos textos técnicos.
O facto de as caravelas redondas marcarem presença nas relações iluminadas das armadas da Índia não quer dizer muito quanto ao início do século XVI, mas significa que a forma documentada pelo Livro de Traças de Carpintaria (de 1616 e que apresenta os primeiros planos técnicos de qualquer tipo de caravela no caso redonda) já existe, consolidada, no terceiro quartel de Quinhentos.
As caravelas redondas tiveram uma utilização óptima nas armadas de guarda costa, do Estreito de Gibraltar, das Ilhas e no Norte de África. Quando D. Manuel decide enviar navios para os Açores a fim de proteger as naus da Índia, ou quando forma a armada do Estreito, fá-lo com caravelas, seguramente caravelas redondas ou de armada, com porte suficiente para a acção militar naval. Não faz sentido considerar outra hipótese.
A dimensão e forma do casco tornavam esta caravela incapaz como cargueiro para viagens de longa distância. Em contrapartida, o aparelho e as qualidades marinheiras adequavam-se a missões navais. Tanto nos quadros navais referidos como nas viagens para o Oriente, como elemento principal de combate ou no apoio aos navios de maior porte, a caravela redonda ou de armada foi verdadeiramente o primeiro navio criado para a guerra do alto mar, muito provavelmente logo desde a viagem de 1500 (F. Contente Domingues, "Os navios de Cabral", pp. 70-81).
Bibliografia
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DOMINGUES, Francisco Contente, Arqueologia Naval Portuguesa (Séculos XV e XVI). História, conceito, bibliografia, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 2003.
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FILGUEIRAS, Octávio Lixa, e BARROCA, Alfredo, "O caíque do Algarve e a caravela portuguesa", Revista da Universidade de Coimbra, tomo XXIV, 1971, pp. 405-441.
FONSECA, Henrique Quirino da, A Caravela Portuguesa e a Prioridade Técnica das Navegações Henriquinas, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934. Reedição: com Comentário preliminar, notas e apêndices de João da Gama Pimentel Barata, 2 vols., Lisboa, Ministério da Marinha, 1978.
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PIRES, António Tengarrinha, Caravelas dos Descobrimentos, 5 vols., Lisboa, Academia de Marinha, 1980-90.
XAVIER, Hernâni Amaral, As Caravelas dos Descobrimentos. Um Guia para Professores destinado à preparação da visita à Caravela "Boa Esperança", Lisboa, CNCDP-Aporvela, 1997.
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