O galeão português do século XVI era um navio redondo de alto bordo, do tipo da nau, mas com algumas características diferentes: as linhas do casco eram mais afiladas e o bordo mais baixo, tal como os castelos de popa e proa, o que lhe conferia melhores capacidades marinheiras, reforçadas por um aparelho composto por quatro mastros, os da vante (grande e traquete) com pano redondo, e os da ré (mezena e contra-mezena) com pano latino, aparelho este que se distinguia do da nau pelo acrescento do mastro da contra-mezena, junto à popa. Estas características garantiam-lhe uma superior capacidade de manobra, fundamental para a guerra naval, e as linhas do casco com pequena elevação das superestruturas tornavam-no pior alvo para a artilharia inimiga, por comparação com o navio redondo típico.
Problema diferente é o do significado do termo galeão que aparece na documentação avulsa em 1510, mas em rigor não se pode afiançar que designe uma embarcação que corresponda ao perfil traçado em cima, o que quer dizer que em si a referência em causa pouco significa. Em fontes impressas, a ocorrência mais antiga é a dos Anais de Arzila, em apontamento relativo ao ano de 1516 (Bernardo Rodrigues, Anais de Arzila, p. 176). Mas o autor escreveu tardiamente em relação aos acontecimentos que descreve, o que retira segurança à precisão desta caracterização tipológica, além de se manter o problema anterior; continuamos sem saber o que é que se entendia pela palavra galeão nesta altura.
As dúvidas relativas à terminologia das embarcações têm toda a razão de ser, porquanto as fontes revelam-nos a cada passo que embarcações similares são denominadas de maneira diferente. A mais frequente destas situações é a que diz respeito ao binómio nau-galeão, termos frequentemente aplicados aos mesmos navios no mesmo documento, sugerindo que a distinção não era clara para aqueles que se lhes referiam: na "Folha dos Nauios que Sua Magestade tem nesta Coroa de Portugall" de finais do século XVI -, figura uma lista inicial com os nomes e tonelagens desses navios: o segundo é o galeão "Sto. António" de 480 tonéis que, logo à frente, antes da descrição pormenorizada dos consertos que requeria e respectivos materiais, já é dado como nau (v. F. Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, pp. 437-458).
Por outro lado, é lógico reconhecer que uma especialização funcional efectiva teria de se reflectir na armação. Ou seja, esperar-se-ia que os privados armassem navios de carga (naus) e o Rei navios de guerra (galeões), sem prejuízo de encomendar também os primeiros. Porém, a investigação levada a cabo por Maria Leonor Freire Costa deixou claro que não há uma estratégia dos particulares, distinta da estratégia da Coroa, na armação dos navios (Maria Leonor Freire Costa, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa, p. 296).
Importa agora discutir a relevância de dois aspectos técnicos neste contexto: o problema do esporão e a especificidade do aparelho do galeão.
Começando por este último, constata-se que há navios a armar quatro mastros com aparelho misto (pano redondo nos da vante e latino nos da ré) bem antes da primeira referência ao galeão português. O navio que figura nas portadas de duas edições Valentim Fernandes (Estoria de muy nobre Vespasiano, de 1496, e o Marco Paulo, de 1502) tem esta mastreação e aparelho, que por outro lado eram conhecidos em Inglaterra desde os finais do século XV. Ilustra-o mais que uma das doze figuras de traço apurado do Warwick Roll, encomendado pela filha ou pela neta de Richard Beauchamp, conde de Warwick, falecido em 1439 (Frank Howard, Sailing Ships of War, p. 14).
Em consequência, o aparelho por si só não chega para identificar o galeão, conclusão a que chegaram Lopes de Mendonça (Estudos Sobre Navios Portugueses dos Séculos XV e XVI, p. 31 ) e Pimentel Barata ("O galeão português (1519-1625)", p. 322), e isso percebe-se por outro motivo. Apesar da averiguação dos tipos de navios enviados para a Índia ser impossível porque, mais do que quaisquer outras fontes, cronistas e relações de armadas da Índia espelham a confusão reinante entre naus e galeões, está fora de dúvida que os galeões navegaram para o Oriente. Quirino da Fonseca sustentou que se tratava de um navio desenvolvido com o propósito específico de substituir as caravelas redondas nessas armadas ("O problema das características dos galeões portugueses", p. 78), quanto a nós com desacerto. Mas se o galeão fosse um navio distinguível pelo aparelho não se compreenderia porque é que não figura um único nas duas relações de armadas da Índia ilustradas, onde vemos apenas navios com três mastros, do tipo da nau, caravelas redondas e embarcações a remos (v. a Memória das Armadas e o Livro de Lisuarte de Abreu, ambos do terceiro quartel do século XVI).
Quanto ao problema do esporão, radica numa afirmação indocumentada de Lopes de Mendonça, facto raro nos seus escritos, muito seguros por regra ("o galeão, assim como a caravela, tem esporão" - op. cit., p. 31), que foi aceite depois por outros autores, como Quirino da Fonseca.
Esta convicção nasce de uma frase de Fernando Oliveira, que filia o galeão na galé: "E galeão, ou galeaça, por que tem alguma semelhança na figura, ou imitação do ofício das galés, tomam também delas a derivação dos nomes" (Livro da Fábrica das Naus, p. 49). Uma frase que induziu também os autores em causa a julgar que o galeão deriva da galé, mas neste caso nem sequer se podem assacar as culpas às etimologias duvidosas de Oliveira. Semelhança de figura existe sim entre a galé e a galeaça, pois são dois navios do mesmo tipo. A similitude entre a galé e o galeão é portanto a funcional, e a frase só quer dizer que, para Oliveira, o galeão estava vocacionado para a guerra naval. Deduzir que por isso tinha esporão é excessivo.
Não só o texto de Oliveira não autoriza esta interpretação, como o manuscrito das Aduertençias de nauegantes de Marcos Cerveira de Aguilar elucida que esporão (palavra que aparece nos documentos técnicos) significa o mesmo que beque (F. Contente Domingues, op. cit., pp. 209-210). A questão ficou resolvida com uma simples observação de Pimentel Barata, plena de oportunidade. Se o galeão é um navio redondo do tipo da nau, tem proa de roda; logo, não há onde suportar o esporão, entendido como arma de ataque similar à das galés. Mas se isso fosse possível, estar-se-ia perante uma circunstância muito estranha, já que a utilização dessa arma partiria forçosamente o mastro do gurupés: "não há um único documento técnico português que mencione o esporão dos galeões no sentido de estrutura especial para o ataque. Nem qualquer das representações portuguesas, incluindo os desenhos do Livro de Traças, mostra tal estrutura, perfeitamente inútil num navio que levava por ante a proa um mastro inclinado a 35o,o gurupés, que se partiria numa abordagem e, assim, comprometeria todo o aparelho" (J. G. Pimentel Barata, "Os Navios", p. 288).
A lenda do esporão teve vida longa e o seu expoente máximo é o célebre "S. João" ou "Botafogo", figura central nas tapeçarias que representam a campanha de Tunes, em 1535. A que ilustra a tomada da Goleta mostra-o dirigindo o ataque, que a descrição setecentista pormenoriza dizendo que foi com o esporão que o "Botafogo" rompeu as correntes e abriu caminho aos restantes navios. Desse relato ficou-se a saber que ia armado com 366 bocas de fogo (o que vários autores aceitaram). Enfim, toda uma história que persistiu no imaginário dos que queriam que tivesse havido um navio como este, como se afirma no estudo que dissecou exemplarmente a construção deste mito (José Virgílio Pissarra, "O galeão S. João (c. 1530-1551). Dados para uma monografia”).
Alguma diferença existiu entre o galeão e a nau, em algum momento. Talvez não seja possível ir muito mais longe, mas na que é porventura a mais notável de todas as imagens das Tábuas dos Roteiros da Índia de D. João de Castro, a "Tavoa da Aguada do Xeque", vê-se um conjunto de embarcações de vela representativo dos meios navais portugueses do segundo quartel do século XVI. É também a primeira imagem em que um artista com traço rigoroso na representação de navios faz figurar lado a lado uma nau e um galeão, evidenciando as diferenças entre ambos.
O centro da figura é ocupado pela imagem de um navio que corresponde perfeitamente à descrição convencional do galeão, sobretudo porque do lado esquerdo figuram duas naus (uma praticamente ao lado do galeão, e outra num plano mais recuado), também elas ilustrando as características que normalmente se lhes atribuem. O galeão tem quatro mastros, dois com pano redondo e dois com pano latino; as obras mortas visivelmente mais baixas que as das naus; as linhas de casco mais afiladas e, pormenor curioso, o beque decididamente lançado para vante, ao contrário dos das naus (embora só se veja bem numa delas), muito mais lançados em roda, como que em prolongamento da roda de proa.
A comparação dos traçados geométricos não deixa quaisquer dúvidas quanto à maior elegância de linhas do galeão de 500 tonéis, por comparação com a nau de 600, muito embora tenha maior boca. Por outro lado, se o aparelho não é em si mesmo sinal distintivo, o certo é que se encontra nas Coriosidades de Gonçallo de Sousa uma lista dos mastros e velas de um galeão que condiz por com a descrição feita acima.
Não há grandes dúvidas quanto à existência de diferenças visíveis na morfologia e características das naus e galeões; quando é que isso se começou a verificar é uma incógnita, dado que a simples ocorrência do termo pouco ou nada quer dizer, tal como não se sabe quando é que essa distinção deixou de poder ser assinalada. De seguro, pode afirmar-se que existiam galeões no tempo de D. João de Castro e na época da tratadística (designando assim o período de c. 1570 a c. 1640, durante o qual se escreveram os primeiros tratados portugueses de arquitectura naval), já que os regimentos técnicos distinguem perfeitamente as tonelagens dos navios do tipo da nau, de 80 até 600 tonéis, e do galeão, de 200 tonéis. Considerando o conjunto dos regimentos conhecidos para a construção destes navios (v. F. Contente Domingues, Os Navios do Mar Oceano, pp. 325-434), vê-se que o galeão de 500 tonéis tem mais um rumo de quilha que a nau de 600, e menores lançamentos: logo, o casco é mais afilado e mais baixo, apesar da boca ser ligeiramente maior.
A documentação conhecida elucida-nos quanto a um aspecto fundamental, corroborando a conclusão já avançada por Lopes de Mendonça: trata-se inequivocamente de um navio com uma relação entre o comprimento e a boca de 3:1, ou próxima disso, portanto do tipo da nau. Se morfologicamente eram do mesmo tipo, funcionalmente se-lo-iam também.
A ideia de que o galeão pudesse ser um navio "concebido e construído exclusivamente para a guerra no alto mar" (Pimentel Barata, "O galeão português (1519-1625)", p. 308). esbarra nas informações das fontes e nos incomportáveis custos económicos de tal opção. A afirmação de que o galeão transportava carga na Rota do Cabo nem carece de ser demonstrada, e a observação da forma do casco evidencia que é um navio bojudo, embora menos que a nau, perfeitamente capaz de servir para o mesmo tipo de aproveitamente comercial, como de facto foi. A simples suposição de que se pudessem ter feito dois navios de morfologia semelhante, para que um fizesse a Rota do Cabo ajoujado de mercadorias, e o outro fosse ao lado, em vazio, apenas para o proteger, é assim inaceitável.
O galeão tinha melhores condições que a nau para a guerra naval, mas era um navio bifuncional. A especialização para a guerra coube a outra embarcação, a caravela redonda ou de armada.
Francisco Contente Domingues
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