Navios, Construção e Arquitectura Naval

Oliveira, Fernando

Nascido na Gestosa, localidade da Beira Alta pertencente ao bispado de Coimbra, c. 1507, Oliveira deu-se como sendo de origem social relativamente humilde. Com dez anos de idade foi estudar para o convento de São Domingos em Évora, onde se manteve até perto dos vinte e cinco. Aí adquiriu a cultura humanista de que os seus escritos dão conta, mas não é seguro que tenha sido discípulo directo de André de Resende, como tradicionalmente se afirma. Em 1532 foi para Espanha, por motivos que se desconhecem, mas poucos anos volvidos estava de novo em Portugal, dedicando-se ao ensino das primeiras letras a filhos de pesonalidades ilustres como João de Barros ou o barão do Alvito. E em 1536 saíu dos prelos a sua primeira obra impressa, a Grammatica da Lingoagem Portuguesa, também primeira gramática portuguesa a ser impressa e que por isso veio a granjear atenção e notoriedade.

Nos anos seguintes Fernando Oliveira voltou a sair de Portugal: segundo declarou posteriormente à Inquisição, embarcou de Barcelona para Génova, num navio que foi depois apresado pelas galés francesas, tendo sido feito prisioneiro. Mais tarde regressou a Portugal com o novo núncio apostólico, em 1542. Facto significativo foi o de Oliveira passar de prisioneiro de guerra a piloto das galés francesas, a cujo serviço voltaria aliás.

A esquadra de galés francesas estacionadas no Mediterrâneo passou em Lisboa em 1545, em direcção à Mancha, para se juntar ao resto da armada francesa. Oliveira embarcou então como piloto numa galé que no ano seguinte é apresada depois de um confronto com navios ingleses, de quem o piloto português fica prisioneiro. Em 1547, todavia, regressa a Portugal como portador de uma missiva do monarca inglês para D. João III. No seguimento de uma denúncia vem a ser preso pela Inquisição em 1548, situação em que se mantém até 1550.

Em 1552, talvez como capelão, incorpora a armada enviada por D. João III a auxiliar o destronado rei de Velez, no Norte de África: a expedição resulta num rotundo fracasso, com todos os seus integrantes aprisionados, e Oliveira é um dos escolhidos para vir a Portugal negociar os resgates. Tratou do episódio no seu segundo e último livro impresso em vida, a Arte da Guerra do Mar, publicado em 1555. Foi uma obra inovadora no panorama europeu, à época (muito embora não deva ter tido grande projecção internacional), no sentido em que se trata de um verdadeiro tratado da guerra naval, versando tanto os aspectos teóricos como práticos da questão. Sem que nos possamos deter no comentário à doutrina aí expendida, não deve ignorar-se que alguns passos do livro se tornaram muito conhecidos, nomeadamente aquele em que nega o milagre de Ourique, facto registável pela primeira vez num autor português em obra impressa no século XVI. Outro trecho citado amiúde é aquele em que condena a escravatura: não tanto o facto em si como o que considera uma hipocrisia, o de aprisionar corpos para lhes assegurar a redenção da alma, coisa que em seu entender não passava do campo das intenções enunciadas. Uma crítica de qualquer maneira muito ao contrário do sentir do tempo.

Talvez por isso tenha sido preso segunda vez pela Inquisição, ou porque neste livro apresentou uma visão muito pouco lisonjeadora dos acontecimentos de 1552, cuja responsabilidade imputou àqueles que eram nomeados para lugares de comando sem competência para tanto, mas apenas porque se serviam da lisonja e do tráfico de influências: crítica que atingia directamente Inácio Nunes, o comandante da expedição de Velez, mas também todos os que tinham contribuído para a sua nomeação.

Nos finais de 1554 o licenciado Fernão de Oliveira aparece nomeado revisor dos livros impressos pela Universidade de Coimbra, mas manteve-se pouco tempo no cargo por ter sido preso logo depois (se acaso falamos da mesma pessoa, como tudo parece indicar mas não é certeza adquirida). Quanto tempo permaneceu no cárcere não sabemos, assim como todo o período da sua vida que agora se inicia é deveras nebuloso; e todavia escreveu nestes anos obras muito importantes, todas manuscritas, a saber: a Ars nautica, o Livro da Fabrica das Naos e a Hestorea de Portugal.

A Ars, de c. 1570, é um tratado enciclopédico de assuntos de marinharia, dizendo respeito à náutica, cartografia, instrumentos náuticos e teoria da navegação em geral, na primeira parte (que preenche a primeira metade da obra), à arquitectura naval, na segunda parte, à organização e logística da marinha, na terceira, e finalmente à guerra naval, num opúsculo final que epitomiza a Arte da Guerra. A extensão e profundidade de tratamento das matérias não tem igual na literatura europeia do seu tempo, mas não é um livro técnico. O facto de ter sido escrita em latim indicia o que o leitor confirma na leitura: o público alvo eram os humanistas que, como Fernando Oliveira, se interessavam por aqueles assuntos, e não os homens do mar, que aí encontrariam preceitos por vezes muito distintos daqueles que se praticavam na navegação de alto mar. O cosmógrafo-mor Pedro Nunes é alvo de críticas cerradas neste texto, embora o seu nome nunca apareça citado directamente, o que a nosso ver resulta mais de uma conflitualidade pessoal que da consequência da rivalidade que opunha Nunes aos homens do mar (ou a muitos deles), já que Oliveira não pode também ele inscrever-se nesta categoria.

O Livro da Fábrica das Naus, composto cerca de 1580 e inacabado, é o primeiro texto escrito em português sobre arquitectura naval. Trata-se de uma obra notável e extraordinária no cômputo europeu, já que é o único texto sobre a matéria, escrito nesta época, no qual os preceitos técnicos são escorados em princípios gerais legitimadores do conhecimento, cujo enunciado revela o horizonte gnosiológico do autor. A intenção era a de enunciar os preceitos gerais da arte em princípios claros e ordenados, mas o carácter técnico que enforma o livro não quer dizer que Oliveira esperasse que viesse a ser lido ou seguido pelos oficiais do ofício, com quem sugere não ter tido sempre uma relação fácil, até porque não pertencia ao meio nem há notícia de ter tido grande ligação com ele. O facto, a par do carácter generalizante do texto, faz que com se lhe tenha reconhecido um carácter eminentemente teórico, com pouco a ver com o que seria a prática concreta dos estaleiros. Mas as últimas campanhas de escavação subaquática indiciam que Fernando Oliveira não estava tão longe do que se fazia nestes como inicialmente se pensou.

As décadas finais da sua vida são obscuras. Sabe-se que nos anos sessenta o cseu concurso enquanto piloto foi disputado por franceses e castelhanos (o que mais reforça a estranheza quanto às condições em que aprendeu a arte e nela ganhou créditos), mas é provável que não tenha saído de Portugal. É pelo menos praticamente seguro que se encontrava no país em 1580, tendo manifestado a sua profunda discordância com a união das coroas ibéricas na pessoa de Filipe II, escrevendo para o efeito uma História de Portugal que pretende legitimar e documentar o direito do reino a manter-se independente; o milagre de Ourique, por exemplo, contestado na Arte da Guerra, de 1555, como vimos, é agora recuperado em reforço da causa que animou o seu escrito de História. Vivo em 1581, pois há nele uma referência indirecta às Cortes de Tomar desse ano, é possível que tivesse sobrevivido até 1585, pois de um passo da História pode depreender-se uma crítica a um livro publicado nesse ano. Uma longevidade algo extraordinária no sentido em que se manteve sempre activo, produzindo uma obra polifacetada, perfeitamente característica desse Humanismo que representou tão bem, tão interessado na Gramática e na História como na ciência e na técnica aplicada, voltado para conhecimentos actuantes sobre a realidade cultural e material do tempo, herdeiro de um saber clássico que recuperou e revalorizou, a par da perfeita consciência da novidade da época que então se vivia - de tudo deu Fernando Olivieira ampla prova.

Francisco Contente Domingues


Bibliografia
DOMINGUES, Francisco Contente, Os Navios da Expansão. O Livro da Fabrica das Naos de Fernando Oliveira e a arquitectura naval portuguesa dos séculos XVI e XVII, Diss. de Doutoramento, Universidade de Lisboa, 2000.

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