Viagens, viajantes e navegadores

Brasil, Descobrimento do

A própria designação do território levanta um conjunto de questões historiograficamente controversas. Procurando as origens da designação atribuída ao território sociologicamente descoberto pela armada comandada por Pedro Álvares Cabral podemos reportar-nos à recorrente presença na cartografia europeia, desde o século XIV, de terras insulares no Atlântico Setentrional com aquela designação (embora, na centúria de Quinhentos, muitos cartógrafos, em consequência dos avanços geográficos alcançados, vão transportando a ilha Brasil para latitudes cada vez mais remotas e inexploradas), fenómeno eventualmente assimilável à tradição das viagens de São Brandão em busca do Éden. Por outro lado, a designação de Brasil é consentânea com o importante comércio da planta tintureira de cor avermelhada (assim denominada a partir do século XII e que Marco Polo refere no seu Livro) que constituiria um dos produtos de maior relevância no vulgarmente designado período do escambo, no âmbito da presença comercial portuguesa, nas primeiras décadas de quinhentos, no novo território do Atlântico Sul.

Os três documentos que nos permitem tomar conhecimento da forma como se processou o contacto com a terra e as gentes brasílicas (os Tupiniquins da região de Porto Seguro) são a Relação do Piloto Anónimo e as Cartas de Mestre João Faras e de Pero Vaz de Caminha, embora exista todo um conjunto de documentação relevante sobre esta matéria.

Tendo como comandante Pedro Álvares Cabral, a frota (a maior até então aprestada por Portugal) que conta com pilotos de renome como sejam Bartolomeu Dias ou Nicolau Coelho (integrante da armada do Gama) parte de Lisboa, mais concretamente de Belém, a 9 de Março de 1500. A armada incorpora já navios (13, das quais dez naus e 3 caravelas, segundo a interpretação mais corrente e aceite das fontes) de acordo com as condições tipológicas que serão padrão ao longo do século XVI (excepto no tocante à gradativamente inflacionada tonelagem das naus portuguesas) no âmbito da Carreira da Índia. Assiste-se aqui, muito provavelmente, a uma alteração tipológica na constituição das armadas portuguesas, passando-se de uma solução híbrida baseada na caravela para um tipo estruturado de navio. Surge, deste modo, um novo navio-tipo (resultante do navio determinante da capacidade portuguesa para proceder ao reconhecimento dos regimes de ventos e correntes no Atlântico – a caravela - e ao reconhecimento da costa africana na segunda metade do século XV): a caravela redonda ou de armada. Viajaram nos 13 navios da armada de 1200 a 1500 homens numa expedição com fins simultaneamente diplomáticos, comerciais, miliares e religiosos. Note-se que os testemunhos quinhentistas revelam discrepâncias quanto aos nomes dos capitães das embarcações que compunham a armada.

Em torno do Descobrimento do Brasil pela armada comandada por Cabral levantam-se duas questões historiograficamente controversas que assumiram a dimensão de verdadeiras polémicas : quanto à prioridade e à intencionalidade dessa arribada às Terras de Vera Cruz (na versão de Cabral) ou de Santa Cruz (designação tipificada na corte de Lisboa) mais tarde designadas por Brasil. A tese do conhecimento prévio da existência de terras no Atlântico meridional encontrou, por exemplo, apoio na (não completamente clara) passagem do Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, passível de interpretação que colocaria o cosmógrafo e navegante em paragens do litoral sul-americano em data anterior à arribada da armada de Cabral (esta tese é defendida por Jaime Cortesão sendo, pelo contrário, negada por Luís de Albuquerque). Note-se que os dados antropológicos presentes nesta obra são conformes com a moderna antropologia e poderão ser indício de uma efectiva arribada à fachada nordeste do continente sul-americano. A própria referência presente na Carta de Mestre João Faras ao mapa de Pêro Vaz Bisagudo (onde, segundo o autor, D. Manuel poderia aperceber-se da localização das terras então alcançadas) é de interpretação controvertida podendo indiciar, para alguns, um conhecimento anterior das paragens brasílicas ou, pelo contrário, a recorrência da mítica ilha Brasil na cartografia e imaginário ocidentais. A própria exigência negocial portuguesa de alargamento para ocidente do âmbito geográfico da esfera de influência geo-política lusa, decorrente do Tratado de Tordesilhas, foi frequentemente interpretada como prova inequívoca de um conhecimento anterior de terras fronteiras a África no Atlântico Sul, do mesmo modo que pode ser lida como firme decisão de garantir a exequibilidade da volta pelo largo, essencial para a Rota do Cabo (embora tal fosse possível com um meridiano português mais oriental) e procurando garantir que qualquer terra firme a ocidente (e que se constituisse como potencial ponto de apoio para as armadas destinadas à Índia) permanecesse na esfera portuguesa. O principal arauto desta interpretação (com incidência global na percepção da política diplomática portuguesa no período dos Descobrimentos, nomeadamente, com D. João II e D. Manuel) foi Jaime Cortesão, explicando a pouca informação remanescente por força de uma sistemática política de sigilo seguida por Portugal.

A própria expedição comandada por Vasco da Gama, as instruções decorrentes da experiência por aquele adquirida e, sobretudo, a rota (e os tempos definidos para a partida) da armada de Cabral denotam um aperfeiçoamento sucessivo dos nautas portugueses traduzido no domínio do conhecimento de regimes de ventos e correntes no Atlântico Sul. O interregno das grandes expedições ao longo da costa africana, após a dobragem do até então chamado Cabo das Tormentas por Bartolomeu Dias, seria o marco temporal de início de um intenso esforço no apetrechamento teórico e prático português na arte naútica traduzido, por exemplo, na construção naval (inclusivé, na tipologia dos navios) e em sucessivas expedições de reconhecimento geofísico no Atlântico meridional e setentrional.

Relativamente à intencionalidade da Descoberta efectuada a 22 de Abril de 1500 está hoje descartada a hipótese do acaso. A tese do desvio por ventos, correntes ou tempestade não encontra sustentabilidade nas fontes nem nas condicionantes físicas à navegação nas paragens visitadas pela armada de Cabral. A rota efectuada (noroeste) denota uma firme intenção (antagónica à derrota lógica para atingir o objectivo prioritário – a Índia). A própria descrição textual coeva das terras avistadas (Monte Pascoal) só é compaginável com uma aproximação à costa rumando a noroeste. Assim se fundamenta a hipótese de que Cabral tivesse recebido instruções régias para que, no decurso da viagem para o Índico, explorasse o Oeste Atlântico (em busca da terra firme cujos sinais tinham sido já referenciados na expedição comandada por Vasco da Gama) estando, assim, o afastamento para Ocidente inserido no plano imperial Português (e, inclusivé, de consolidação das condições de implantação do domínio índico), procurando encontrar o então provável prolongamento meridional do continente já identificado por Colombo, Caboto e, muito provavelmente, Duarte Pacheco Pereira. Assim se garantiria a operacionalidade da rota do Cabo. Desta forma, a intencionalidade da derrota cabralina que conduziu ao Descobrimento de 22 de Abril de 1500 parece inquestionável (pelas condições técnicas e físicas) sendo a menor publicitação do feito de Cabral por parte do poder régio justificável à luz da conjuntura geopolítica, diplomática e económica portuguesa (e, em grande medida, aos precários equilíbrios de poder que então se geriam no contexto ibérico). A armada prosseguiria ao fim de dez dias rumo ao Índico ao mesmo tempo que o navio capitaneado por Gaspar de Lemos prosseguiria para o reino levando a boa-nova (no imediato diminutamente propalada) do Descobrimento de parte do que viria mais tarde a ser o território do Brasil. Após 1500 novas viagens permitiram o alargamento do conhecimento português do litoral brasílico.

Duarte Nuno G. J. Pinto da Rocha

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