Considerada por uns como a maior consequência dos Descobrimentos, outros há que destacam o enorme feito que ela representa em termos técnicos e humanos para um pequeno país como Portugal no início do século XVI. Ao estabelecer uma ligação anual entre Lisboa e os portos do Oriente (Goa, Cochim e por vezes Malaca) a Carreira da Índia tornou-se num elo fundamental na respiração e transpiração quer de Portugal, quer do seu Império Asiático.
A nau é o navio por excelência da Carreira, sendo também utilizados galeões e fragatas (estas apenas nos finais do século XVII e no século XVIII), bem como, e mais esporadicamente, outros tipos como a urca, a caravela redonda ou a naveta. O tamanho ou capacidade das naus foi uma das características que mais alterações sofreu desde a viagem de Vasco da Gama, com 100t de média até às 200t a 300t com Pedro Álvares Cabral e às 1000t (1518). É comummente aceite que a média deve ter ficado nas 400t a 600t no século XVI e 800t a 1000t no século seguinte, embora os exemplos de gigantismo sejam fáceis de multiplicar.
As tripulações destes navios podiam ir até cerca de 200 homens, embora o número mais comum seja à volta dos 120 a 150. A este contingente juntavam-se os soldados ou os simples passageiros o que podia fazer chegar o total de pessoas a bordo até aos 1000, embora também aqui a média devesse rondar os 500. No topo dessa hierarquia estava o capitão que desempenhava funções essencialmente judiciais, militares e administrativas enquanto comandante supremo do navio. Quem verdadeiramente governava e conduzia o navio era o piloto. Este era o posto de maior responsabilidade a bordo, cabendo-lhe traçar a rota com a ajuda dos regimentos, das cartas náuticas e da observação astronómica e escrever o diário de bordo. O elemento que se seguia nesta estrutura era o mestre. Cuidava da manobra dentro do navio orientando e comandando tanto marinheiros como grumetes.
Os postos seguintes eram ocupados por uma série de homens do mar que se dividiam por actividades e funções bem distintas desde o guardião, a carpinteiros, calafates ou tanoeiros. Com funções não ligadas especificamente ao mar seguiam o meirinho ou alcaide, o capelão, o escrivão e um ou vários despenseiros, e por vezes o boticário e o cirurgião/médico substituído amiúde por um barbeiro que prestava os primeiros socorros. Depois dos oficiais vinham os últimos três tipos de homens do mar: os marinheiros, os grumetes que executavam os trabalhos mais duros e os pajens, geralmente crianças que tinham por função servir de mensageiros dentro do navio e transmitir as ordens dadas pelos capitães e oficiais. À parte desta estrutura havia uma outra, a dos homens encarregues da artilharia, e que era comandada pelo condestável tendo sob as suas ordens os bombardeiros.
Depois destes, que constituíam a tripulação, havia muitas outras pessoas que podiam embarcar. O contingente mais importante era o dos soldados. Com eles seguiam os fidalgos e nobres que iam assumir cargos administrativos ou militares. Havia ainda diversos religiosos, as mulheres, homens de negócios ou simples aventureiros que tentavam no Oriente a sorte que teimava em escapar-lhes em Portugal. Até escravos podiam embarcar logo em Lisboa.
Toda uma quantidade de tarefas deveriam ser efectuadas antes que a partida pudesse acontecer. Havia, em primeiro lugar, que preparar o navio, acabando reparações e fornecendo-lhe todo o tipo de materiais necessários para a viagem, desde velas a mastros e cordame. Depois tinha-se que nomear e escolher a tripulação. Seguia-se a recolha dos diversos abastecimentos, desde a alimentação, à água, à artilharia ou à botica. Por fim registava-se tudo e controlava-se o embarque das mercadorias com destino ao Oriente, só depois se podia dar a ordem de partida. Tudo isto era gerido pela máquina administrativa e logística do Estado onde se destacavam duas instituições: a Casa da Índia enquanto base comercial, administrativa e de gestão de todos os aspectos comerciais e financeiros; e os Armazéns da Índia que tinham alçada sobre toda a logística, fornecendo todos os materiais e produtos necessários para o sucesso da viagem.
A escolha da data de partida depende das diversas condicionantes da navegação à vela. Ventos, correntes e marés são escolhidos por forma a encurtar o tempo e os perigos da viagem. Os limites mais comuns para a partida de Lisboa eram meados de Março até meados de Abril por forma a que os navios pudessem acompanhar os ventos favoráveis no Atlântico e chegar ao Índico por alturas da monção grande de sudoeste. Para a volta a melhor época para a partida compreende-se entre Dezembro e Março quando sopra a monção de Nordeste com Janeiro a ser a data mais usual. De Lisboa até Cabo Verde não havia grandes dificuldades. Era depois deste arquipélago que surgiam os primeiros problemas. Era preciso escolher a longitude certa para montar com êxito a costa brasileira iniciando a volta do mar, contornando o alísio no Atlântico Sul. O cuidado tinha de ser extremo porque se a viragem fosse feita muito tarde podiam os navios ensacar-se no Golfo da Guiné e se a fizessem muito cedo podiam atingir a costa brasileira demasiado a norte. Da costa brasileira seguia-se em direcção ao cabo da Boa Esperança. A passagem era sempre bastante complicada porque junto à costa há fortes correntes contrárias e mais a sul as tempestades e o mar rijo eram uma constante no período habitual de passagem que coincidia com o Inverno Austral.
Depois do Cabo colocava-se, novamente, uma questão de datas. Os navios seguiam em direcção a norte devendo escolher entre fazer a viagem por dentro, pelo canal de Moçambique ou por fora passando a leste dessa ilha. A escolha entre a viagem por dentro e por fora tinha de ser feita, segundo os regimentos, de acordo com a data em que se cruzava o Cabo sendo meados de Julho a data de transição. A viagem por dentro seguia então à ilha de Moçambique onde se podia, ou não, fazer escala e daqui para Goa ou Cochim. Por fora havia que alargar a rota, após dobrar o cabo da Boa Esperança, até se estar a 100 léguas da ponta sul de Madagáscar seguindo pelo Índico Central até Goa ou Cochim. Uma outra rota seguida era em direcção a Malaca, sem ir à Índia. A melhor forma de o fazer era seguir até ao Cabo da Boa Esperança, como qualquer outro navio, e daí atravessar o Índico directamente para aquela cidade.
Com Pedro Álvares Cabral a torna-viagem é já efectuada por uma das variantes possíveis no Índico: a viagem por dentro. Esta era a rota inversa da que se fazia à ida. Outra possibilidade é fazer a viagem por fora também simétrica à ida. Contudo surgiram duas versões pelo que esta, a mais antiga ganhou o nome de viagem por fora pela carreira velha em oposição a outra variante designada de viagem por fora pela carreira nova. Esta última era também denominada carreira nova ou por fora de tudo. Do ponto de partida da Índia (em princípio de Cochim) seguia-se ao longo da costa até ao extremo sul do sub-continente indiano, aí inflectia-se para Sul passando entre Ceilão e as Maldivas até se avistar a ilha de Diogo Rodrigues. Dessa ilha a rota até ao cabo da Boa Esperança era igual à da carreira velha. Após a passagem do cabo da Boa Esperança seguia-se a parte mais fácil em termos náuticos e que corresponde à travessia do Atlântico trazendo os navios até Santa Helena, e depois até avistar os Penedos de S.Pedro (a Norte do Equador) que era a referência para se iniciar a volta pelo largo até chegar à latitude dos Açores.
Três realidades importantes numa viagem com estas características são as arribadas, as escalas e as invernadas. As arribadas são basicamente o regresso ao porto de origem. Para a ida estas arribadas podem ser provocadas por três grandes motivos: más condições climatéricas após a partida, as calmarias na zona da Guiné e a má montagem da costa brasileira indo os navios avistá-la a norte do cabo de Santo Agostinho. As escalas e invernadas faziam, também, parte duma viagem da Carreira da Índia. Houve quem tenha classificado as escalas como de reabastecimento (Bezeguiche, S.Tiago, Aguada de S.Braz, Santa Helena, Moçambique, Angola, Brasil e Açores), de reparação (Moçambique, Angola, Brasil, Santa Helena e Açores) e de reagrupamento (Moçambique, Santa Helena e Açores).
O tema dos naufrágios tem vindo a constituir-se como um dos pontos centrais utilizado para analisar, não só a evolução da Carreira, mas também da história de Portugal de 1500 a 1700. São muitas as causas geralmente apontadas para os naufrágios desde a carga excessiva e mal acondicionada à má construção ou idade avançada dos navios. Outros motivos podiam ser as partidas tardias, o excessivo tamanho das naus, a pressa em chegar ao destino, a obstinação de alguns pilotos e a inexperiência de muitos capitães.
A vida a bordo é um dos temas mais explorados no contexto da Carreira da Índia enquanto conjunto de situações, vividas ao longo de cinco, seis ou dez meses num espaço limitado que podem revelar o que vai no âmago de quem se sente apertado, injustiçado ou abandonado. Um dos factores mais importantes na vida a bordo eram as manifestações de religiosidade e a forma como estas permitiam uma abstracção das dificuldades diárias já que a conflituosidade estava sempre presente agravada pelo facto de todos se cruzarem e ser virtualmente impossível ignorar o outro. Para obviar o eclodir de conflitos, o poder e eficácia do comando era essencial. No sentido de amenizar tais problemas havia toda uma gama de distracções que ajudavam a resguardar a convivência a bordo como o teatro ou os jogos. A mortalidade podia ser, por vezes, devastadora, agravada pelos elementos climatéricos, pela ausência de regras de higiene, alimentação deficiente, inexistência de cuidados profiláticos e inadequada assistência médica. O escorbuto era especialmente temido numa época em que a medicina poucos ou nenhuns paliativos aplicava.
Rui Godinho
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