Viagens, viajantes e navegadores

Gama, Vasco da

Clique na imagem para a ampliar
Vasco da Gama
Clique na imagem para a ampliar

Sines?, c. 1468 – Cochim, 25 de Dezembro de 1524. O terceiro de seis irmãos, a tradição afirma que Vasco da Gama terá nascido na vila de Sines, à roda de 1468 ou 1469, sendo filho de Estêvão da Gama, alcaide-mor de Sines, e Isabel Sodré, bem como neto de um homónimo Vasco da Gama, juiz em Elvas. Os seus antepassados mais remotos, todos com costados no actual Alto Alentejo, tinham profundas ligações à Ordem de Avis, muito embora o seu pai e tios se achassem vinculados aos cavaleiros de Santiago – sendo que o ingresso nestas ordens monástico-militares constituía um importante meio de progressão social no Portugal quatrocentista e quinhentista.

Pouco se conhece da juventude de Vasco da Gama; porém sabe-se que em 1480 foi admitido na Ordem de Santiago, tendo recebido a tonsura (mas não quaisquer ordens sacras); mais tarde, é mencionado por Garcia de Resende, na Crónica de D. João II, como fidalgo d’el-Rei, posição que não lhe seria desmere-cida, tendo em conta os altos serviços prestados, não apenas por si (participando numa operação de confisco de navios franceses no Algarve), bem como pelos seus antepassados mais directos (que combateram ao lado de D. Afonso V na Guerra da Sucessão de Castela); terá conservado sempre o favor de D. João II, ao contrário de seu pai, ligado à Casa do Duque de Viseu – assassinado pelo Rei na sequência da conjura de 1484 –, e que estranhamente desaparece da documentação após aquela data (talvez caído em desgraça junto do Príncipe Perfeito). É na conjugação destes vectores (ao que se deve acrescentar o próprio perfil de Vasco da Gama – mormente a sua diligência e as suas capacidades de chefia, adequadas ao desempenho de uma missão com contornos políticos, militares, diplomáticos e comerciais bem definidos, ao que se junta, no dizer de Damião de Góis, o facto de ser «homem solteiro e de idade para sofrer os trabalhos de uma tal viagem») que podemos encontrar a explicação para a sua nomeação para o comando da primeira armada destinada à Índia, já que, pela lógica senhorial, a capitania da expedição deveria pertencer ao primogénito – o seu irmão mais velho, Paulo da Gama. Curiosamente, não se lhe conhecem quaisquer dotes na área da navegação anteriores à expedição de 1497-99 (embora Armando Cortesão tenha aventado a hipótese de Vasco da Gama ter já comandado expedições de carácter sigiloso no Atlântico Sul, entre 1488 e 1495, mas sem provas que o sustentem), pelo que, muito provavelmente, apenas as qualidades pessoais, a sua posição social e a sua ligação ao monarca (e não o conhecimento da arte de navegar) podem fazer luz sobre os motivos por trás de tal nomeação.

De resto, ao que parece, a sua escolha para o comando da frota teria ainda sido feita pelo próprio D. João II, tendo D. Manuel limitado-se a confirmar a vontade do defunto cunhado (não sendo despicienda a hipótese de ter agido pressionado pelas clientelas da Ordem de Santiago – à qual Vasco da Gama pertencia –, cujo mestrado estava nas mãos do bastardo de D. João, D. Jorge de Lencastre, o concorrente de D. Manuel à Coroa, e que seu pai em vão tentara legitimar). Não deixa, nesse sentido, de ser significativo que, em Dezembro de 1495, meses após a morte do monarca, Vasco da Gama receba, das mãos de D. Jorge, as comendas espatárias de Mouguelas e Chouparia; igualmente significativo é que, em 1497, Vasco da Gama tenha sido feito cavaleiro da Ordem de Cristo pelo Rei, o que poderá talvez ajudar a explicar os futuros desentendimentos entre aquele e a Ordem de Santiago.

Não obstante a oposição demonstrada pelos procuradores às Cortes de Montemor-o-Novo de 1495-96, a expedição destinada à Índia foi avante, armando-se uma frota constituída por um navio de transporte de mantimentos, a caravela Bérrio (sob a chefia de Nicolau Coelho), a nau S. Gabriel (capitaneada por Vasco da Gama e pilotada por Pêro de Alenquer, talvez o mais experimentado piloto luso da época) e a nau S. Rafael (comandada por Paulo da Gama). Partindo do Restelo em 8 de Julho de 1497, a armada chegou a Calecute quase dez meses depois, em Maio de 1498, não sem dificuldades – designadamente as colocadas pelo regime de ventos e correntes do Índico (então desconhecidos dos Portugueses), bem como pelas ciladas que lhes foram armadas em Moçambique e Mombaça; contudo, é também digno de nota, pela positiva, o auxílio que um experimentado piloto muçulmano (o qual a exegese histórica já demonstrou não ser o famoso Ahmad ibn-Majid, como durante muito tempo se supôs) forneceu à expedição a partir de Melinde. Ido em busca de «cristãos e esperciarias» – como terá afirmado um dos membros da tripulação desembarcado na cidade –, cedo Vasco da Gama contou com a oposição dos mercadores muçulmanos aí estabelecidos, que o impediram de estabelecer laços diplomático-comerciais pacíficos com o Samorim. Após alguns conflitos (que culminaram num pequeno embate naval ao largo da costa), iniciou-se a penosa viagem de retorno a Lisboa em Agosto de 1498, decidindo-se, ainda no Índico, pela destruição da S. Rafael, pelo mau estado em que se encontrava e por míngua de tripulantes; já dobrado o Cabo da Boa Esperança, Vasco da Gama foi obrigado, na escala que fez em Cabo Verde, a fretar uma caravela para substituir a S. Gabriel, na qual conduziu aos Açores o seu irmão Paulo, gravemente doente, acabando este por falecer na Terceira, chegando somente a Lisboa em fins de Agosto ou inícios de Setembro de 1499 (cerca de um mês depois de Nicolau Coelho, que comunicara em primeira mão a notícia da chegada à Índia a D. Manuel).

A viagem inaugural daquilo que viria a ser conhecido como a «Carreira da Índia», abrindo uma rota directa entre a Europa e o Oriente através da circum-navegação da maior parte do continente africano, pro-porcionaram a Vasco da Gama a concessão de inúmeros benefícios e prebendas: o monarca agradecido emite um alvará (24 de Dezembro de 1499) em que lhe promete doar Sines, pertença dos espatários (desde que obtivesse a aprovação do Papa e de D. Jorge, algo que nunca se verificará, pela inflexível oposição demonstrada pela Ordem de Santiago); a 10 de Janeiro seguinte, é-lhe conferido o direito (extensível aos sucessores) a usar o título de Dom; mais, é instituído na sua pessoa (e na dos descendentes) o cargo de Almirante do Mar da Índia (por contraponto ao Almirante do Mar-Oceano, criado pelos Reis Católicos em proveito de Colombo), com as mesmas honras, rendas e privilégios inerentes ao de Almirante de Portugal.

Entretanto, Vasco da Gama contrai matrimónio com Catarina da Silva, filha do alcaide de Alvor, de quem virá a ter sete filhos, entre os quais se destacam D. Francisco da Gama (2.º Conde da Vidigueira e estribeiro-mor do reino), D. Estêvão da Gama (capitão de Malaca e governador da Índia) ou D. Cristóvão da Gama (também capitão de Malaca, capturado em combate no socorro ao Preste João e martirizado na Abis-sínia).

Em 1502 inicia a sua segunda viagem ao Oriente, pouco após o regresso da expedição de Pedro Álvares Cabral; ao comando desta armada destaca-se por haver submetido, pelo caminho, a cidade de Quíloa (na costa oriental africana), fazendo-a tributária do Rei de Portugal (que, desde a viagem de 1497-99, justamente se arrogava o título de «Senhor da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia»). Ao longo dos anos subsequentes foi cumulando inúmeras tenças, sucessivamente confirmadas por D. Manuel e D. João III; isto para além das diversas permissões para trazer da Índia as mais variadas mer-cadorias isentas de taxas e fretes.

Em 1503, é expulso de Sines pelo Mestre de Santiago, não podendo entrar na vila sem sua autorização prévia; renuncia às suas comendas santiaguistas e fixa-se em Évora, donde parte em 1515 para Nisa. Em 1519, enfim, estabelece-se na Vidigueira, após um escambo efectuado com D. Jaime, Duque de Bragança – Vasco da Gama cedia a D. Jaime os 400 mil reais da sua tença acrescidos de 4000 cruzados de ouro pela doação, a título perpétuo, das vilas da Vidigueira e dos Frades, sendo investido pelo Rei na alcaidaria-mor das mesmas e agraciado com o título de Conde da Vidigueira como recompensa pela sua vasta folha de serviços.

Em 27 de Fevereiro de 1524, é nomeado – corolário de toda uma vida ao serviço da Coroa – sexto governador do Estado Português da Índia (o segundo com o título de Vice-rei, depois de D. Francisco de Almeida); parte pela terceira vez para o Oriente, à frente de uma portentosa armada com três mil homens, com o objectivo expresso de solidificar a presença portuguesa na Índia através da moralização de uma administração cada vez mais corrupta, que tanto havia proliferado durante o mando do seu predecessor imediato, D. Duarte de Menezes (vendo-se mesmo obrigado a usar ameaçar da força para destituir o antigo governador e compeli-lo a regressar à metrópole). Contudo, o seu governo efectivo duraria apenas três meses, pelo que não chegou a tomar medidas de alcance mais significativo; viria a falecer em Cochim, na véspera de Natal de 1524, tendo aí sido primitivamente enterrado; mais tarde foi trasladado para a metrópole e sepultado na capela que instituíra na Vidigueira pouco antes de partir para Oriente. Os seus restos mortais seriam por fim depositados na Igreja do Mosteiro de Santa Maria de Belém, em Lisboa, em 1880, onde repousam até hoje.

André Leitão

Bibliografia:

FONSECA, Luís Adão da, Vasco da Gama. O homem, a viagem, a época, Lisboa, Expo’98, 1998.

Arte de navegar, Roteirística e Pilotagem
Cartografia e cartógrafos
Navios, Construção e Arquitectura Naval
Guerra, Política e Organização Naval
Navegações, Cultura e Ciência Moderna
Biografias

© Instituto Camões, 2006