Guerra, Política e Organização Naval

Corso e Pirataria

O ataque aos navios de comércio que sulcam as águas, ou às populações ribeirinhas, é uma actividade que já vem quase desde que o homem se aventurou no mar. Apesar desta acções não serem o exclusivo de nenhum credo ou religião, nas fontes ocidentais os bárbaros e os infiéis eram sempre retratados como as grandes ameaças. A verdade é que esta actividade também era efectuada pelos próprios cristãos, quer contra os infiéis, quer contra outros cristãos e, por vezes, de um modo ainda mais cruel do que as acções cometidas pelos adversários.

Esses ataques podiam ser efectuados quer por navios que actuavam sem qualquer tipo de suporte “legal”, tratando-se neste caso de acções de pirataria, quer através da utilização de navios dos respectivos reinos ou de navios particulares mas, com o apoio dos respectivos governantes, o que se designa por acções de corso. Naturalmente que, do ponto de vista daquele que estava a ser atacado, não havia grande diferença.

Os reinos Ibéricos, pela sua proximidade geográfica ao Norte de África e pelas suas tradições na luta contra os infiéis mantiveram, com períodos de maior ou menor intensidade, conforme a situação política nessa zona, forças navais e acções contra os corsários muçulmanos mas, simultaneamente, também atacavam a navegação de comércio muçulmana. As acções dos corsários berberescos realizavam-se quase sempre junto à costa, mas, a partir dos inícios do século XVII, e na posse de embarcações mais possantes, iniciaram ataques por todo o Atlântico, chegando mesmo à Islândia.

Após os inícios do século XVI e, com o início da expansão dos reinos Ibéricos, outras nações europeias, como foi o caso de França e, posteriormente, da Inglaterra e Países Baixos, depressa começaram a cobiçar as riquezas retiradas das novas possessões, que os navios transportavam nos seus porões. O inverso já não se passou, pois os reinos Ibéricos nunca foram pródigos neste tipo de actividades, pelo menos na zona Atlântica, embora os espanhóis, nos inícios do século XVII, tenham utilizado a actividade de corso para atacar os interesses económicos das Províncias Unidas. Curiosamente, a actividade de corso realizada sob a bandeira portuguesa no Atlântico, foi efectuada contra os próprios interesses de Portugal, através de cartas de corso dadas por D. António, Prior do Crato, a ingleses e franceses, após Portugal ter caído sob controlo de Filipe II. Contudo, ambos os reinos Ibéricos exerceram actividades deste tipo no Oriente.

A dificuldade dos reinos Ibéricos em participar nesses tipos de actividades devia-se à necessidade que tinham de manter abertas as rotas comerciais com o Norte da Europa, em especial com os Países-Baixos e o Báltico, de modo a poderem escoar os seus produtos, quer os produzidos internamente, quer os que chegavam de terras longínquas. Além disso, também estavam bastante dependentes de diversos produtos que importavam dessas áreas, que incluíam muitos dos apetrechos para os navios e cereais.

Este comércio intenso passava, obrigatoriamente, nas águas francesas e foram estes os primeiros a contestar a divisão do mundo entre os reinos Ibéricos e, consequentemente, foram também os primeiros a atacar os navios desses reinos. Esses ataques, quer com o patrocínio real, quer levados a cabo autonomamente por particulares franceses, incluíram diversos ataques às ilhas atlânticas e ao Continente americano. Prolongaram-se, com maior ou menor sucesso, até bem para lá de meados do século XVI, apesar de diversos tratados e acordos firmados diversas vezes entre os dois reinos. Após os meados do século XVI, a complicada situação interna em França levou à diminuição das acções levadas a cabo por nacionais desse país.

É devido, principalmente, à ameaça de ataques dos infiéis e de franceses, que em 1552 é assinado um convénio entre D. João III e Carlos V de apoio mútuo na defesa da navegação de comércio. Esse convénio previa que as armadas, criadas em Portugal, nesse mesmo ano, para patrulhar os Açores e a costa Ocidental da Península Ibérica, deveriam proteger navios de ambos os reinos, devendo Castela fazer o mesmo, em especial na zona do Estreito.

Os ingleses, nos meados do século XVI tentaram, inicialmente, apenas furar o monopólio dos reinos Ibéricos ao longo de África e na América, de modo a aproveitar os novos territórios por estes descobertos, mas foram duramente perseguidos pelos autoridades reais desses reinos. O mesmo já não acontecia com os que vinham à Península Ibérica negociar, apesar da Inquisição levantar, por vezes, alguns obstáculos. É possível constatar-se, principalmente através de registos dos portos ingleses, que eram bastantes os navios ingleses que se dirigiam à Península para negociar.

Todo esta navegação de comércio, Ibérica e do Norte da Europa, fazia-se, assim, sob constante ameaça de ataques, pois estes eram efectuados mesmo contra navios conterrâneos dos atacantes. No entanto, cada vez mais, o comércio com o Norte da Europa desenvolvia-se com navios dessa zona, incluindo os das províncias rebeldes.

Para tentar fazer face à situação, D. Sebastião, por volta de 1570, implementa medidas com o objectivo de diminuir essas perdas, através da imposição do armamento mínimo que os navios deveriam transportar e tentar que os particulares também construíssem galeões (navios mais robustos para enfrentar ataques de adversários). Aparentemente com pouco sucesso.

Apesar das divergências religiosas, a situação política só começa a degradar-se após 1580, entrando em ruptura definitiva a partir de 1585, altura em que Filipe II embarga produtos e navios Ingleses e das repúblicas rebeldes dos Países-Baixos, nos portos de Castela.

Estas medidas têm seguimento idêntico em Portugal no ano seguinte assim como a decisão de atacar Inglaterra, inicialmente em 1587, mas só concretizada em 1588, com a «Felicíssima Armada». Fazem também com que Isabel I passe a dar mais apoio às acções contra os interesses do monarca espanhol, em dinheiro, homens e navios, quer aos rebeldes na Holanda quer às acções de Drake, nas Américas e na Península, em 1585 e 1587, respectivamente

É durante o ataque a Cádiz em 1587 que é capturada pelos ingleses, a primeira nau portuguesa da Carreira da Índia, a S. Filipe, ao largo dos Açores, assim como diversas embarcações e navios menores que navegavam ao longo da costa entre Cádiz e Lisboa e, é atacado o Algarve.

Nesse ataque de 1587 e no de 1589 à Península, apesar de terem objectivos militares, o factor comercial teve um grande peso. Para além dessas grandes expedições, outras mais pequenas, levadas a cabo por nobres ingleses, em especial aos Açores, realizaram-se até aos inícios do século XVII. Essas armadas tiveram o apoio da rainha inglesa e, apesar do seu número, apenas conseguiram capturar mais duas naus da Índia, embora tivessem levado à destruição de algumas outras. De realçar que apenas uma vez se travou um combate entre corsários ingleses e uma armada de protecção, que foi em 1591 e resultou no afundamento do célebre galeão inglês Revenge.

Contudo, a actividade dos corsários não se limitou a essas armadas, pois eram muitos os pequenos navios ingleses particulares, que, sozinhos ou em pequenos grupos, atacavam os pequenos navios Ibéricos que navegavam de ambos os lados do Atlântico.

As medidas tomadas contra o comércio holandês, por Filipe II, em finais do século XVI, levaram inicialmente a que os rebeldes holandeses começassem também a apoiar as acções inglesas, como sucedeu em 1596 num novo ataque a Cádiz. Posteriormente e, com a divulgação do Itinerário de Linschoten, começaram a aventurar-se na Rota do Cabo, tendo sido procedidos apenas por alguns anos pelos ingleses.

Este desenvolvimento fez com que o principal teatro de confronto entre as nações europeias se transferisse para o Oriente, e para a Rota do cabo em geral, onde os dois países atrás mencionados começaram uma campanha de expulsão dos portugueses da zona.

No entanto o Atlântico não ficou esquecido, pois a Barra do Tejo chegou a ser bloqueada e os holandeses chegam mesmo a ocupar parte do Brasil, Angola e S. Jorge da Mina.

Augusto Salgado


Bibliografia

ANDREWS, K. R., Elizabethan privateering, Cambridge, Cambridge University Press, 1964.
FERREIRA, Ana Maria Pereira, “Os Açores e o corso francês na primeira metade do século XVI...”, in Os Açores e o Atlântico, Angra do Heroísmo, ed. Inst. Hist. da Ilha Terceira, 1984, pp.280-297.
GUERREIRO, Luís R., “Pirataria, corso e beligerância estatal no Sudoeste peninsular e ilhas adjacentes (1550-1600)”, in As rotas oceânicas (sécs. XV-XVII), Lisboa, Ed. Colibri, 1999, pp.119-147.
JESUS, João Carlos da Silva de, “A cooperação entre os reinos Ibéricos: o caso das armadas dos Açores”, in A união Ibérica e o mundo atlântico, Lisboa, Ed. Colibri, 1997, pp.105-113.

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