Guerra, Política e Organização Naval

Armazéns

Do árabe al-mahazan, por intermédio da forma equivalente, mas mais antiga, “almazém”. Depósito ou dotação de material. Nos textos antigos, surge, por vezes num mesmo discurso, com os dois sentidos; tomando como exemplo o caso das armas, podia significar o paiol ou o número disponível de armas e munições. No século XVI, já existia o termo paiol, mas para designar um depósito de mantimentos, mercadorias preciosas e sobressalentes, geralmente a bordo de um navio; um espaço restrito de armazenamento, contra o significado muito mais abrangente de armazém. O termo arsenal, que viria a ganhar o significado de aparato bélico, tinha (e ainda conserva) valor de oficina, de fábrica de material de guerra e com este sentido veio a substituir os termos tercenas (ou taracenas) - daí a ocupação pelo arsenal do exército do espaço e função da tercena da Porta da Cruz - ou de um conjunto de estruturas de fabrico e reparação de armas e navios de guerra, como era o arsenal de Veneza ou mesmo o contemporâneo arsenal do Alfeite.

O termo armazém designava os depósitos de mantimentos, de armas, de ferramentas, material e peças sobressalentes, embora se especificassem apenas os armazéns de mantimentos e armazéns de ribeira, que serviam os grandes estaleiros como depósitos de material e ferramentas para a construção, reparação e armação de navios.

Quando surge singelo, o termo armazém vale para casa das armas e munições, podendo igualmente recolher todo o tipo de material, ferramentas e alfaias. Este estabelecimento era por vezes designado por casa dos almazéns, ou seja, casa ou armazém dos materiais. A concentração de material de vária sorte aumentava segundo a pequenez do local, pois não se justificava a existência de armazéns apartados para boa parte das localidades e fortalezas.

Os armazéns eram da responsabilidade de um almoxarife que respondia perante autoridade superior, variável, segundo o local e o tipo e dimensão do armazém. Em Lisboa existiam vários armazéns, de mantimentos e material; pelo reino, encontravam-se armazéns nas principais praças-fortes e portos. 

No espaço ultramarino, os almoxarifes dos armazéns dependiam dos capitães das praças, salvo no caso em que esta autoridade era revogada pela presença de um governador. Além das casas das feitorias que eram locais de armazenamento de mercadorias a traficar, nas posições portuguesas,  pontos de apoio logístico, existiam centros de armazenamento e distribuição de mantimentos, armas e material. Todas as posições fortificadas tinham armazéns de mantimentos e armazéns de armas. As posições com ribeiras (estaleiros) importantes, como Cochim ou Goa, viriam a ter armazéns de ribeira, mas nos primeiros anos os armazéns das armas desempenhavam esse papel.

Para economizar recursos, era comum que os cargos de almoxarife das armas e dos mantimentos fossem entregues a uma mesma pessoa. À medida que certos lugares se iam acrescentando, conjuntamente com o volume de trabalho e responsabilidade dos oficiais, foi necessário terminar com essas acumulações. Foram, por exemplo, os casos de Cochim ou Goa. Noutros, o percurso foi inverso, pois a pequenez de certos sítios não justificava sequer a existência de almoxarife dos mantimentos e armazém, optando a coroa por entregar a responsabilidade aos feitores, ainda que estes fossem agentes comerciais.

Estrutura mais complexa, e confusa, era a do Armazém do reino e dos vários armazéns de Lisboa, que por funcionalidade se encontravam geograficamente muito próximos, quando não contíguos ou partilhando o mesmo espaço, junto à Ribeira das Naus. Em virtude da política de expansão marítima portuguesa, os armazéns da Ribeira das naus, os armazéns de mantimentos e de armas das casas ligadas à Expansão (Casas de Guiné ou Mina, Casa da Índia, Casa de Ceuta) e o grande armazém do reino passaram, quase em exclusivo, a funcionar como uma grande estrutura de apoio naval. Do armazém da ribeira, desconhece-se a data de fundação, mas seria tão antigo como o estaleiro. O mesmo sucede com os armazéns das Casas do comércio ultramarino. D. Manuel mandou erguer novas casas para todos esses armazéns e fundou o grande armazém do reino, estabelecimento central onde eram depositadas e depois distribuídas as armas fabricadas pelas tercenas (cujo sentido é fundição e/ou oficina de fabrico de peças de ferro forjado e não a acepção, medieval, de estaleiro) e pelas armarias, quer portuguesas quer estrangeiras. Estrutura que ao longo de décadas impressionou viajantes portugueses e estrangeiros, e cuja grandeza mereceu sempre reparo nas descrições de Lisboa.

Em consequência das profundas alterações provocadas pela decisão de estender a área de interesses para o Índico, D. Manuel, em 13 de Setembro de 1501, nomeou um feitor para a nova Casa da Índia, feito responsável comercial pelo negócio da especiaria. Em 27 de Novembro de 1501, foi a vez do fidalgo Jorge de Vasconcelos ser nomeado para superintender a logística naval portuguesa, extinguindo o cargo de vedor-mor das artilharias e armazéns, criado por D. Afonso V, em 30 de Maio de 1480. O diploma de nomeação omitia o título, que mais tarde seria o de provedor-mor das armadas e armazéns, mas não deixava dúvidas sobre a natureza do cargo. Competia-lhe a construção e reparação naval, o aprestamento e a armação dos navios, incluindo a compra dos mantimentos e material (almazéns). Debaixo da sua alçada colocavam-se os armazéns de mantimentos e material de Guiné e das Índias e a sua responsabilidade estendia-se à guarda dos navios fundeados e ao abate das árvores. Jorge de Vasconcelos só respondia perante o vedor da fazenda ou perante o próprio rei.

Abarcando toda a “governança do mar”, o cargo de Jorge de Vasconcelos herdava as funções originais do almirante, por esta época degenerado em título honorífico e com essa natureza entregue a Vasco da Gama. Por esta razão o título não foi mantido. As funções andavam repartidas por funcionários intermédios. A criação do cargo de provedor veio corrigir esse problema com a colocação do lugar na hierarquia administrativa ao nível das responsabilidades e competências e compatível com a nova e complexa marinha portuguesa, instrumento da expansão ultramarina, objectivo central de D.Manuel, e da moderna administração que ao longo das primeiras décadas de quinhentos iria tomar o lugar das instituições medievais.

Dada a natureza do encargo, a provedoria rapidamente estendeu a tutela aos estaleiros, aos armazéns da Ribeira das Naus e ao Armazém do Reino, dividido em dois almoxarifados, um para armaria e outro para a artilharia e restante material, e aos fornos de biscoito da Porta da Cruz e de Vale de Zebro, cada um deles dirigido por um almoxarife. Em 1507 encontramos Jorge de Vasconcelos com o poder de nomear capitães para os navios de partes que circulavam na Carreira da Índia. Em meados do século XVI, quando o armazém do reino, segundo João Brandão de Buarcos, parece ser depósito e unidade de produção, o provedor dos armazéns da Guiné e Índia tinha alçada, para além do já referido, sobre as tercenas do reino, sobre a Casa da armaria e sobre a Casa da pólvora. O que se compreende tendo em conta que a construção de todos os navios da Coroa em Portugal e a organização de todas as armadas, inclusive as das ilhas, da costa e do Algarve eram da sua responsabilidade, como era a compra de todas as armas, matérias-primas, das peças e ferramentas e mantimentos e ainda o pagamento dos soldos da gente das armadas, salvo o caso das da Índia e Guiné cuja gente era paga na Casa da Índia.

O mais antigo regimento dos Armazéns que hoje se conhece é de data tardia, tendo sido dado pelo regente D. Pedro em 17 de Março de 1674. O preâmbulo parece querer afirmar a inexistência de anterior regimento. Não nos parece possível que um aparelho de tal dimensão tenha existido durante 172 anos sem textos regulamentares, quer na forma de regimento do Armazém ou de regimento do Provedor, apesar de se conhecer um regimento do almoxarife do armazém da Ribeira, com data de 13 de Novembro de 1524 e instruções gerais nas cartas de nomeação. Os segundos são por regra delimitações de poderes e áreas de responsabilidade e os primeiros são as instruções dos postos intermédios, que em conjunto não substituem o regimento geral.

Importa referir que sob a alçada do provedor dos armazéns se encontrava toda a gestão da frota da coroa, incluindo a escolha das tripulações e toda área técnica respeitante à arte de navegar. Era o provedor que presidia aos exames dos pilotos, sota-pilotos, mestres e contra-mestres e que aprovava as cartas e instrumentos de navegação, depois de inspeccionados pelo cosmógrafo-mor, lugar adstrito ou muito próximo da orgânica dos armazéns. Era no armazém que se fabricavam e guardavam os instrumentos náuticos, as cartas de marear e a sua carta padrão.

Como se entende, estes armazéns eram muito mais do que os simples depósitos dos nossos dias. Eram os centros logísticos de todo o aparelho militar português, cuja cabeça se encontrava em Lisboa e às ordens do provedor dos armazéns. A marinha da coroa era da responsabilidade do(s) vedor(es) da Fazenda, mas a responsabilidade executiva estava delegada no Provedor das Armadas e Armazéns.

A importância da provedoria só recentemente começa a ser apreciada pelos historiadores. Tempos houve em que se pensava que a estrutura coordenadora da marinha era a Casa da Índia, estabelecimento comercial. Quando se entendeu que tal hipótese não tinha consistência, nem suporte documental, chegou-se a sugerir a acefalia da marinha, ou a sua dependência directa dos vedores e mesmo do rei; facto que parecia estar comprovado nas inúmeras intervenções directas dos vedores e do rei, passando sobre as competências do provedor. Procedimento comum. A provedoria não era nem um Almirantado, nem um Estado-Maior, mas é certo que a máquina de guerra que permitiu a expansão portuguesa não podia funcionar sem uma estrutura directora com uma certa complexidade.

Já Francisco Mendes da Luz havia sublinhado que a simplicidade do termo “armazém” estava a esconder a verdadeira estrutura de coordenação da marinha portuguesa e da logística do império. Leonor Freire Costa, em estudo recente, tem já a preocupação de tratar a provedoria de acordo com a sua importância, pelo menos na administração dos estaleiros. Tratamos de matéria em investigação, sobre a qual não existem estudos de longo fôlego, mas uma enorme quantidade de documentação inédita. Só após a sua realização será possível ter uma ideia sólida sobre a natureza deste organismo central e crítico. 

José Virgílio Amaro Pissarra

 

Bibliografia

BRANDÃO, João, Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, ed. José da Felicidade Alves, Lisboa, 1990.
COSTA, Leonor Freire, Naus e Galeões na Ribeira de Lisboa. A construção naval no século XVI para a Rota do Cabo, Cascais, 1997, pp.264-270.
FONSECA, Henrique Alexandre da, Os Estaleiros da Ribeira das Naus, Lisboa, 1990.
LUZ, Francisco Mendes da (ed.), Regimento da Casa da Índia, Lisboa, 1992.
“Regimento dos Armazéns [17-03-1674]”, in José Justino de Andrade e Silva (ed.), Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, vol.VIII (1657-1674), Lisboa, 1856, pp.305-366.

Imagem: A zona da Ribeira das Naus numa das vistas de Lisboa, por exemplo a de Leiden ou a do Livro de Horas de D. Manuel.

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