Guerra, Política e Organização Naval

Junta de Badajoz-Elvas

A Junta de Badajoz-Elvas reuniu entre Abril e Maio de 1524 especialistas representantes do rei de Portugal e do imperador Carlos V (soberano do restante território peninsular), com o intuito de solucionar o problema do direito de posse das ilhas Molucas, no Extremo Oriente, onde recentemente tinham aportado dois navios da esquadra de Fernão de Magalhães, dos quais um tinha alcançado Sevilha, com uma carga de especiarias e outros produtos orientais.

Sem querer alongar-me muito sobre os antecedentes deste problema, é importante explicar que ele decorre dos termos do próprio Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, quando os reinos ibéricos dividiram o espaço Atlântico das suas navegações e conquistas, através de uma “linha direita de pólo a pólo” que deveria passar “a 370 léguas das ilhas de Cabo Verde para a parte do poente”. Em termos práticos, este acordo resolvia os conflitos de interesses levantados pela recente viagem de Cristóvão Colombo, e as explorações portuguesas no Atlântico Sul, que já tinham dobrado o Cabo da Boa Esperança e procuravam encontrar um caminho marítimo de acesso à Índia. Não sei se a evolução do problema foi mais rápida do que a poderiam adivinhar os intervenientes de 1494, mas cerca de três décadas depois desta assinatura, os portugueses tinham conquistado Malaca e alcançado as Molucas, enquanto uma esquadra espanhola, inicialmente comandada por Fernão de Magalhães, cruzara o Pacífico e alcançara essas mesmas ilhas. Colocava-se, portanto, o problema de delimitar no Extremo Oriente as duas áreas para que havia apenas uma fronteira no Atlântico. Quando Fernão de Magalhães partiu de Sevilha em 1519, D. Manuel colocara a Carlos V o problema da invasão de regiões sob jurisdição portuguesa, ao que o Imperador garantira que isso nunca iria acontecer, e que tal fora ordenado de forma expressa ao Capitão-Mor. Mas quando, em 1522, a nau Victoria (única sobrevivente) chegava a S. Lucar de Barrameda carregada de cravo, noz-moscada e sândalo, o conflito parecia inevitável. O novo soberano português, D. João III, apresentava os seus protestos a Carlos V e a resposta era a que se podia adivinhar: as ilhas onde tinham estados os navios espanhóis, onde se contavam as Molucas, não podiam ser reclamadas pelos portugueses, porque, numa consequência óbvia de Tordesilhas, estariam no hemisfério castelhano.

O problema afigurava-se tecnicamente bicudo, logo à partida porque não tinha havido uma demarcação rigorosa da “linha direita de pólo a pólo” que devia passar 370 léguas a oeste de Cabo Verde. Mas, pior do que isso, não vejo como fosse possível calcular e marcar os 180º de longitude terrestre indispensáveis para que se soubesse onde passaria o prolongamento oriental dessa linha, completando o meridiano e definindo os dois hemisférios em causa. Esta coordenada apenas se podia estimar, em função do andamento dos navios, ajustando (e ajustando-se) os dados tradicionais dos cosmógrafos antigos. De forma que na proximidade dos limites, quando dois ou três graus podiam fazer a diferença, as certezas são impossíveis, e a argumentação passa a ser política com mais ou menos fundamento jurídico.

Se olharmos para o planisfério português anónimo de 1502 (dito Cantino), tomando como escala da medida de um grau equatorial a distância entre os trópicos e o equador, veremos que, mesmo com as dificuldades referidas, está praticamente certa a largura do continente africano e a distância à Índia. Imaginando que as viagens sequentes, até Malaca, Banda e Molucas, deram uma noção (mesmo que vaga) do espaço percorrido, é impossível não pensar que os próprios portugueses foram tomando consciência do problema diplomático que vinha a caminho, quando os espanhóis percebessem até onde estavam a navegar os navios nacionais. Em boa razão, a disputa estava latente desde Tordesilhas, desencadear-se-ia mais dia ou menos dia, e foi nessa base que Magalhães apresentou o seu projecto a Carlos V, que não hesitou em aceitá-lo.

Os dois reinos decidiram, então, reunir uma “junta de especialistas” que debateriam o problema da delimitação oriental das suas zonas de influência, de forma a acordar a quem caberia a posse das longínquas Molucas, cujo comércio se revelava com valor significativo. Essa junta reuniu-se de 11 de Abril a 31 de Maio de 1524, sobre a ponte do rio Caia, entre Elvas e Badajoz, mas os resultados concretos foram absolutamente nulos, como seria de esperar.

D. João III sabia que não era possível fazer a delimitação com base em “verdades geográficas” incontestáveis, de forma que deu instruções para que fosse recusada toda a argumentação de cartógrafos e cosmógrafos, afirmando a sua soberania com base numa presença, de facto, desde há mais de uma década. Era um argumento juridicamente importante desde que tivesse força política para o impor, ou, por outras palavras, desde que Carlos V não estivesse disposto a combater pelas Molucas, o que era o caso. Nenhuma das partes queria que a dissidência resultasse em conflito violento, pelo que uma solução política era possível. Provisoriamente, ficou aceite que os direitos de comércio nas Molucas seriam portugueses, mediante o pagamento de 40 000 ducados anuais, que (ainda por cima) ficavam por conta do dote de D. Catarina, ainda em dívida a Portugal. E este foi o acordo imediato que se seguiu à “conversa de surdos” que foi a Junta de Badajoz-Elvas. Em 1529, com o tratado de Saragoça, foi concedida a posse definitiva do ocmércio das Molucas a Portugal, pela quantia de 350 000 ducados.

Não é certo que Portugal tenha pago esta quantia na totalidade e, hoje, pouco importa saber que as Molucas estavam, de facto, no hemisfério português, pela insignificante diferença de cerca de dois graus. O assunto, aliás, viria a perder importância nas últimas décadas do século XVI, fosse pela união das coroas ibéricas, fosse porque o comércio do cravo nunca atingiu a importância que se chegou a pensar.

Luís Jorge Semedo de Matos

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Luís, O Tratado de Tordesilhas e dificuldades técnicas da sua aplicação rigorosa, sep. Revista da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1973.

FRADE, Florbela, A presença portuguesa nas Ilhas de Maluco: 1511-1605 (texto policopiado), Lisboa, 1999

MOTA, A. Teixeira da, A viagem de Fernão de Magalhães e a questão das Molucas, Actas do II Colóquio Luso-Espanhol de História Ultramarina, ed. org. por [...], Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1975.

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