Mare clausum
A quem pertence o mar? Será que se pode falar em soberania sobre as águas, do mesmo modo que se usa este conceito para os espaços terrestres? Os primeiros estudos e pareceres favoráveis a um exercício de soberania sobre espaços marítimos, similar à praticada nos espaços terrestres, surgem nos tempos do Império Romano. Naquela época, diversos jurisconsultos apresentam argumentação justificativa do domínio de Roma sobre os mares frequentados pelos seus navios.
Na Idade Média a questão foi retomada por Génova e Veneza que pretendiam direitos de soberania sobre os mares Ligúrico e Adriático, respectivamente. O mesmo se passou no Norte da Europa, em Inglaterra e na Noruega. No entanto, em todas as situações mencionadas apenas se reivindicava uma ampliação da soberania para uma faixa de água contígua ao estado ribeirinho, considerando sempre que no alto-mar existia plena liberdade de navegação.
Quando se iniciou a expansão ibérica a situação alterou-se. Conforme iam descobrindo terras cada vez mais a Sul, ao longo da costa ocidental de África, os Portugueses começaram a reivindicar para si o exclusivo de navegação e exploração daquelas águas. Por um lado assistimos a proibições de âmbito interno, aplicáveis só aos súbditos do Rei de Portugal. Nestas foi vedada, em 1443, a navegação para sul do Bojador, e em 1446, a navegação para as Canárias, sem licença do Infante D. Henrique. O principal argumento para defender estas restrições era a prioridade do Infante na decisão de enviar navios para explorar aquelas águas. O facto de ter o exclusivo das navegações era entendido como uma espécie de compensação pelos encargos que a empresa implicava.
Esses mesmos argumentos, prioridade e compensação dos encargos, foram utilizados para tentar impedir estrangeiros de navegarem nos mares descobertos pelos Portugueses. Mas para conseguir garantir essa proibição não bastavam as Cartas Régias promulgadas pelo monarca português. Tornava-se necessário que a proibição se encontrasse expressa em legislação aceite pela generalidade dos monarcas europeus. O Sumo Pontífice, como autoridade suprema da Cristandade, reconheceu estes direitos de exclusividade da navegação e domínio dos mares, por meio de diversas bulas, como por exemplo a Romanus pontifex de 1456. Com base neste reconhecimento, D. Afonso V promulgou a lei de 31 de Agosto de 1474, na qual enuncia as penas a que se encontravam sujeitos todos aqueles que se atrevessem a navegar nos mares recém-descobertos pelos navios de Portugal.
Nesse mesmo ano de 1474 faleceu Henrique IV de Castela. D. Afonso V decidiu intervir na questão da sucessão daquele monarca, defendendo a sua sobrinha, D. Joana, cujos direitos à sucessão eram contestados pelos partidários da irmã do falecido, D. Isabel. Os resultados da intervenção militar de D. Afonso V foram desastrosos. Esta guerra contra Castela estendeu-se também ao mar, sendo cada vez maior o número de navios de Castela e Aragão que se atreviam a navegar para Sul do Bojador, desrespeitando nitidamente as restrições impostas pelo monarca português.
As negociações para resolver o litígio entre Castela e Portugal foram conduzidas pelo filho de D. Afonso V, o futuro rei D. João II. Tendo conduzido habilmente o processo negocial, D. João conseguiu o reconhecimento de uma série de direitos, que ficaram expressos no tratado assinado em 1479, em Alcáçovas, e ratificado, pelos Reis Católicos, no ano seguinte em Toledo. Os direitos de navegação no Atlântico foram divididos entre os dois reinos. A linha divisória seria um paralelo que passava pelas Canárias. Estas ilhas ficavam definitivamente sob soberania castelhana, ficando também Castela com os direitos de navegação para Norte do paralelo mencionado. Para Portugal ficava a exclusividade da navegação para Sul, bem como os direitos sobre os Açores, a Madeira e as conquistas no reino de Fez. Em 1491, o tratado foi homologado pelo Papa.
Em 1494, pelo Tratado de Tordesilhas, os mesmos monarcas assinam uma nova repartição das respectivas áreas de influência no Atlântico, definidas agora por meio de um meridiano que passava 370 léguas a Oeste das ilhas de Cabo Verde. Mais uma vez, a autoridade do Sumo Pontífice validava este acordo, que dividia o então chamado Mar Oceano em duas grandes áreas de navegação exclusiva, uma portuguesa e uma castelhana. Apesar deste reconhecimento por parte da autoridade máxima da Europa cristã, a aceitação desta partição não foi pacífica. Ficou célebre o pedido do rei Francisco I de França para que lhe mostrassem a cláusula do Testamento de Adão que o excluía desta partilha do mundo. A divisão imposta pelo Tratado de Tordesilhas constituía um obstáculo aos desejos de expansão por parte das novas potências marítimas que iam surgindo: França, Inglaterra e Holanda. Os ataques, por corsários dessas potências, à navegação portuguesa e espanhola eram cada vez mais frequentes, apesar de em termos de ordenamento jurídico internacional continuar a vigorar a doutrina do Mare Clausum definida em Tordesilhas.
No início do século XVII, a situação vai-se modificar radicalmente. Em 1603 navios holandeses, da Companhia das Índias Orientais, aprisionaram a nau portuguesa Santa Catarina, com uma carga preciosíssima. Os accionistas da companhia tiveram dúvidas sobre a legalidade desta apreensão, uma vez que as relações de Portugal com a Holanda sempre se tinham pautado por um clima de amizade. Pediram então um parecer, sobre esta questão, a um jovem advogado chamado Hugo Grócio, que redigiu um texto intitulado De jure praedae. Embora este parecer tenha ficado inédito até 1868, foi logo publicado em 1608 o seu capítulo XII, intitulado Mare Liberum. Neste é defendida a liberdade de navegação no alto-mar a navios de todas as nações. Grócio contesta a autoridade suprema do Papa, defendendo que o direito internacional é um assunto entre Estados soberanos entre si, desfazendo assim o antigo ideal da res publica christiana.
A posição de Grócio vai ser contestada pelo padre Serafim de Freitas que na sua obra De Iusto Imperio Lusitanorum Asiático vai rebater, um a um, os argumentos do holandês. Apesar da magnífica argumentação do clérigo português a conjuntura internacional exigia o fim da política do Mare Clausum. A liberdade dos mares era uma condição essencial para o desenvolvimento do comércio marítimo internacional.
António Costa Canas
05-2003
Bibliografia
FERREIRA, Ana Maria Pereira, O Essencial sobre Portugal e a Origem da Liberdade dos Mares, [Lisboa], Imprensa Nacional Casa da Moeda, [s.d.].
FREITAS, Frei Serafim de, Do Justo Império Asiático dos Portugueses. De Iusto Imperio Lusitanorum Asiatico, 2 vols. Introdução do Professor Doutor Marcello Caetano, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983.
HESPANHA, António Manuel e SANTOS, Maria Catarina, «Os Poderes num Império Oceânico», José Mattoso (dir), História de Portugal, vol IV, [s.l.]Círculo de Leitores, 1993, pp. 395-413.
MERÊA, Paulo, «Os Jurisconsultos Portugueses e a Doutrina do Mare Clausum, Revista de História, nº 49, Lisboa, 1924, pp. 5-23.
RADULET, Cármen, «Alcáçovas, Tratado de», Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol. I, pp. 42-44.
SALDANHA, António Vasconcelos de, «Mare Clausum» Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses, vol. II, pp. 685-686.
Imagem: Capa da edição princeps, de 1625, do livro de Serafim de Freitas, De Iusto Imperio Lusitanorum Asiático. Reproduzido de FREITAS, Frei Serafim de, Do Justo Império Asiático dos Portugueses. De Iusto Imperio Lusitanorum Asiatico, vol. II. Introdução do Professor Doutor Marcello Caetano, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983.
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