Política de Sigilo nas Navegações
A inexistência de textos, de diversa natureza e função, que documentem, com um certo nível de detalhe, as explorações marítimas dos portugueses constitui um percalço dificilmente superável. As teorizações que brotaram dessa contrariedade foram, essencialmente, duas. Também estas soluções historiográficas tiveram o seu percurso, rivalizaram entre si, opuseram-se, por vezes num tom mais assertivo, noutras ocasiões reposicionando e reavaliando as “verdades” que as distanciavam.
Para Jaime Cortesão os relatos de que há conhecimento são inconstantes e inconsistentes, além de tardios e em nada representativos do valor da experiência e da ciência náuticas dos especialistas portugueses em diversas áreas: Astronomia, Matemáticas, Arquitectura naval, Cartografia, Cosmografia.
Seria, portanto, do interesse régio manter secretos determinados factos e conhecimentos, de modo a afastar todos os potenciais concorrentes dos espaços mais importantes. Por essa razão se compreende que não constem nos documentos oficiais, porque, de outro modo, não faria sentido que simplemente se tivesse negligenciado o seu registo, ou que, realmente, não existisse a sageza que se supõe ter havido.
Neste âmbito, o estudo da cronística constituiu uma das principais bases de apoio dos defensores do sigilismo. Afirmava-se que Rui de Pina não tinha criado nada de original, antes se aproveitara dos escritos de predecessores (Fernão Lopes e Gomes Eanes de Zurara) e “calara” o que neles se escrevera acerca das origens dos descobrimentos. D. Manuel designara-o cronista-mor e incumbira-o da emenda de determinadas passagens dos textos, de modo a impedir que os súbditos de reinos estrangeiros tivessem acesso a informação exclusiva e, claro está, confidencial.
Mas, a par desta abordagem historiográfica, deparamo-nos com outra interpretação dos acontecimentos. Fundamentalmente, a sua argumentação sustenta que uma tal política apenas seria contraproducente para o interesse de estado, porquanto a omissão por parte do reino português relativamente ao descobrimento e exploração de novas terras, quer se tratasse de ilhas ou mesmo de uma massa continental, apenas inviabilizava, à luz da diplomacia e do direito internacional, a sua soberania sobre esses mesmos territórios.
Deste modo, caso se tivesse, efectivamente, conhecimento da existência de terra a ocidente, anteriormente à “descoberta” oficial do território pela armada de Pedro Álvares Cabral, em 1500, ter-se-ia corrido o grande risco de navios estrangeiros terem aportado a essa costa, impossibilitando qualquer tentativa de oficializar uma descoberta que, na origem, fora, de facto, portuguesa.
O conteúdo dos pertences que o infante D. Henrique possuía à hora da morte é uma das situações que Jaime Cortesão apresenta para que se tenha uma ideia do volume do conhecimento que existia, mas que está ausente, na sua totalidade, da documentação oficial. Isto porque o referido espólio não contém qualquer obra relativa a ciência náutica, por mais rudimentar que fosse.
No seguimento das considerações que fizera o mencionado historiador, Carlos Coimbra e Luís de Albuquerque, em artigos independentes, pronunciaram-se a este respeito. Em seu entender, o sucedido dever-se-á ao facto de, na época, não ser ainda premente a elaboração e utilização de obras de análise científica que servissem de directriz às navegações. A experiência era o elemento preponderante, a “madre das cousas”, como escrevera Duarte Pacheco Pereira, e o infante D. Henrique não deixava de ser um homem do seu tempo. Documentos de variada natureza, como os roteiros, os livros de bordo, as relações de escrivães e as cartas de marear, de que não existem exemplos anteriores a 1470, tiveram usos e destinos diferentes. Enquanto instrumentos de trabalho foram constantemente utilizados. A sua inexistência deve-se não ao secretismo que os envolveu (no entanto, Luís de Albuquerque admite que, até essa data, tivessem sido resguardados do conhecimento alheio), mas à utilização que deles se fez. Não existem, porque se gastaram e, como tal, serviram plenamente o seu propósito.
Sob a mesma luz se compreende a cronística, e a aparente leveza dos seus autores na elaboração de um relato contínuo e detalhado das viagens de exploração e de descobrimento. Álvaro J. da Costa Pimpão evidenciou o carácter selectivo que terá presidido à redacção das crónicas. Retomando em parte o que atrás foi dito, estas são obras interessadas nas motivações religiosas, políticas, económicas e militares do reino, empenhado na sua expansão ultramarina, e nos seus êxitos, e, portanto, não têm a preocupação de se pronunciar detalhadamente a respeito de conhecimentos de Geografia, Matemática, Náutica ou Astronomia. A este respeito, Álvaro da Costa Pimpão alerta para o facto de Rui de Pina não se ter coibido de escrever acerca das riquezas do continente africano e dos projectos que os monarcas portugueses tinham para estabelecer alianças diplomáticas, comerciais e militares com os reis locais, de forma a ter acesso directo ao ouro e a outros bens igualmente valiosos. De facto, essa informação consta nas crónicas, não obstante a projecção que teria nos interesses económicos de outros estados.
Ainda a propósito do mesmo assunto, Damião de Góis, que alertara para a escassez de informação concernente aos descobrimentos, quando apresentou as suas obras e estas foram submetidas à edição oficial, supervisionada pela Coroa, as alterações impostas não disseram respeito a qualquer informação relativa a viagens ou a ciência náutica. A existir política de sigilo, não houve sequer necessidade de emendar qualquer dado cuja divulgação seria ilícita. E Damião de Góis, que não se privara de escrever acerca da família real, mesmo a respeito de assuntos sobre os quais seria melhor guardar alguma reserva, não se pronunciara sobre o tema que nos é fulcral, as navegações e o saber que delas se extraía.
Jorge Borges de Macedo não duvida da existência de um sistema de controlo da informação, considerando mesmo que era uma das formas de expressão do poder de estado. Reconhece-lhe uma evolução gradual, à medida que determinados segredos o deixavam de ser, e consoante os próprios interesses do reino se iam modificando.
Noutro artigo, da autoria de Francisco Contente Domingues, esse interesse régio também é remetido para o mesmo ponto-chave: o sigilo era um instrumento basilar à disposição do estado português. Numa Europa que combatia o princípio do mare clausum, o fundamento jurídico do poder ultramarino de Portugal e Castela, e numa Pensínsula Ibérica que rivalizava entre si, a preocupação em manter determinadas informações assunto confidencial era um lugar-comum, uma prática corrente de que participavam todos os estados. Nesta perspectiva, o sigilo é pensado segundo parâmetros mais abrangentes, e a expectativa que paira sobre as fontes documentais é menor.
O descobrimento do Brasil pela armada de Pedro Álvares Cabral é um dos pilares deste debate historiográfico, que ora permitiu afirmar a intencionalidade do acontecimento, ora consubstanciou a sua casualidade. Para Damião Peres a derrota da armada para oeste foi intencional. O trajecto não seguiu as instruções de Vasco da Gama e o afastamento não poderia, de modo algum, ter passado despercebido aos pilotos. Ter-se-á tratado de uma viagem com dois objectivos: o oficial, de rumar para a Índia, e o secreto, de constatar, ou não, a existência de terras no Atlântico Sul. As instruções teriam sido transmitidas sob sigilo, não porque se pretendia oficializar uma descoberta anterior, mas porque, havendo fortes suspeitas da existência de ilhas ou de um continente a ocidente, se desconhecia a sua localização e, por conseguinte, sob que soberania se encontrava. Portanto, não se sabia ao certo o que se procurava, nem se era legítimo fazê-lo. A viagem fora intencional, mas a intenção não era hostilizar os Reis Católicos e dar origem a novo conflito diplomático pela posse da descoberta.
Acresce que o interesse português no comércio do Índico não era motivo de segredo. As próprias concessões papais o atestam a partir do momento em que legitimam esses objectivos. Tenha-se igualmente em conta que o reino e o seu império ultramarino não foram impermeáveis à presença de estrangeiros. Este é outro indicador da incoerência de uma visão absolutista da tese do segredo de estado. Por outro lado, conclui que a divulgação de certas obras científicas (como o Regimento do Astrolábio e do Quadrante), que seriam decerto manuseadas pelos pilotos, se realizava, de facto, com grande precaução, de que é sintomática a escassez dos seus exemplares.
Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís de, Dúvidas e Certezas na História dos Descobrimentos Portugueses, 1.ª ed., Lisboa, Vega, 1990.
COIMBRA, Carlos, Sobre o sigilo oficial dos descobrimentos, Lisboa, 1933, Separata extraída dos fascículos III e IV do volume II dos Estudos Portugueses do Integralismo Lusitano.
CORTESÃO, Jaime, A Política de Sigilo nos Descobrimentos, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996.
DOMINGUES, Francisco Contente, Colombo e a política de sigilo na historiografia portuguesa, Lisboa, 1990, Separata de Mare Liberum, vol. I, pp. 105-116.
LEITE, Duarte, História dos Descobrimentos. Colectânea de esparsos, vol. II, Lisboa, Edição Cosmos, 1960.
MACEDO, Jorge Borges de, O Carácter Europeu dos Descobrimentos e o Sigilo Nacional na sua Realização, Lisboa, 1994, Separata de Jaime Cortesão Um dos Grandes de Portugal, pp. 315-324.
PERES, Damião, O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral: antecedentes e intencionalidade, 2.ª ed., Lisboa, Comissão Executiva do V Centenário do Nascimento de Pedro Álvares Cabral, 1968.
IDEM, História da Expansão Portuguesa no Mundo, vol. II, Lisboa, Editorial Ática, 1939, pp. 17-21.
PIMPÃO, Álvaro Júlio da Costa, A historiografia oficial e o sigilo sobre os descobrimentos, in I Congresso da História da Expansão portuguesa no Mundo, 1.ª secção, Lisboa, 1938.
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