Guerra, Política e Organização Naval

Tordesilhas, tratado de

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A assinatura do Tratado de Tordesilhas culmina um período de confronto dos reinos de Portugal e Castela suscitado pela expansão marítima, o qual, por sua vez, se entende bem sobre o pano de fundo da política interna da Ibéria, nomeadamente no que tem a ver com os problemas de sucessão dos estados em causa.

Dentro desta conjuntura destaca-se o Tratado de Alcáçovas, assinado a 4 de Setembro de 1479, que inova no quadro das relações diplomáticas da época pela preocupação de ambos os soberanos em definir áreas marítimas de domínio exclusivo. O Oceano Atlântico foi demarcado em duas partes separadas por uma linha que passava a Sul das ilhas Canárias. O domínio das terras a descobrir a norte desse traçado pertenceria a Castela, e a sul a soberania das terras descobertas ou a descobrir a Portugal.

No acordo entre Portugal e Castela formularam-se claramente os princípios do Mare Clausum. Por via do seu articulado Portugal conseguiu impedir que embarcações estrangeiras, mormente castelhanas, tivessem acesso ao mar da Guiné. Tal impedimento é de extrema importância, pois D. João II vai utilizá-lo para fundamentar as suas pretensões às terras onde Colombo chegará pela primeira vez em 1492.

Quando o genovês chegou às Índias Ocidentais, já Portugal tinha percorrido um longo caminho do «Plano da Índia». Após a ligação entre o Atlântico e o Índico ter sido encontrada por Bartolomeu Dias, D. João II desinteressou-se definitivamente do caminho que lhe fora proposto por Colombo para chegar ao Oriente. Quando o Rei português tomou conhecimento da chegada de Colombo a «Cipango» esclareceu-o de imediato, que nos termos do Tratado de Alcáçovas, estas terras lhe pertenciam, uma vez que se encontravam a sul do limite acordado, logo dentro dos seus domínios da Guiné. Apesar dos erros grosseiros encontrados no diário de bordo do genovês, este com certeza teria tido a percepção de que tinha navegado a sul do paralelo das Canárias e que desse modo teria violado o Tratado. No entender dos Reis de Castela a expressão «as ilhas de Canária para baixo contra Guiné», que figurava no Tratado, apenas limitava a navegação junto à costa africana. A frase é muito ambígua e por isso ambos os lados lhe atribuíram diferentes interpretações.

Após a célebre entrevista com Colombo, o Rei português mandou de imediato preparar uma armada em direcção a Ocidente, que tinha como comandante D. Francisco de Almeida. Quando a esquadra se preparava para partir chegou um mensageiro dos Reis Católicos, que pediu para a suspender até ser determinado com exactidão a qual reino pertenceria a posse das terras descobertas. O enviado português à corte castelhana, Rui de Sande, propôs a Castela o Tratado de Alcáçovas como quadro diplomático no qual as negociações deveriam decorrer. Portugal, mais do que a posse das referidas terras, desejava sobretudo um reajustamento técnico do Tratado de 1479, contudo a solução que Castela propunha anulava qualquer tipo de delimitação de espaços. A soberania das Índias deveria basear-se antes no direito de descoberta.

Em Agosto de 1493 D. João II enviou uma nova embaixada a Castela, constituída por Rui de Pina e pelo Dr. Pedro Dias, que embora continuassem a defender as negociações tendo como base o Tratado de Alcáçovas, apresentaram uma proposta para a suspensão das navegações para Ocidente, tanto de navios portugueses como castelhanos. Os Reis Católicos consideraram esta proposta inaceitável, pois impedia uma segunda viagem de Colombo e ainda pressupunha a não-aceitação da soberania castelhana nas terras descobertas por este.

Perante os acontecimentos, os Reis Católicos procuraram defender as suas posições através da concessão de Bulas por parte do Papa Alexandre VI, cujo articulado foi claramente favorável às pretensões dos reis de Castela. A Inter Caetera I datada de 3 de Maio de 1493 conferiu legitimidade às pretensões castelhanas sobre as terras descobertas e a descobrir a Ocidente. No entanto ficavam ressalvados os direitos adquiridos nesta matéria, por qualquer príncipe cristão. A Eximia Devotiones, enviada em Junho, apesar de datada de 3 de Maio de 1493, reforça todos os termos da primeira bula onde transparece uma preocupação papal em transpor para as terras do Ocidente, todas as doações papais concedidas anteriormente a Portugal. A bula Inter Caetera II, escrita mais tarde mas antedatada de 4 de Maio por erro material (pretendendo substituir a anterior com o mesmo nome para clarificar a atribuição das novas terras aos castelhanos), declarava explicitamente que aos Reis Católicos estava reservada a jurisdição das terras a Ocidente de uma linha meridiana traçada de pólo a pólo, situada a 100 léguas dos arquipélagos de Açores e de Cabo Verde, que tenham sido descobertas até 25 de Dezembro de 1492. É neste seguimento que surge uma quarta bula, a Dudum Siquidem, de 26 de Setembro de 1493, que confirma todos os privilégios castelhanos e anula todos os benefícios anteriormente concedidos a Portugal, abrindo aos castelhanos a possibilidade de fazerem viagens no Atlântico Meridional.

São propostas que claramente favorecem os interesses castelhanos, impondo uma linha divisória que nunca poderia satisfazer as exigências de D. João II. A linha proposta não era favorável às condições de navegação do Atlântico Sul e o Rei precisava de todo esse espaço marítimo, para chegar ao Índico. Logo a proposta de delimitação do Papa é manifestamente insuficiente para as suas pretensões.

Vendo os seus objectivos comprometidos pelo Papa, o Príncipe Perfeito propôs aos seus homólogos de Castela uma resolução diplomática da questão, entre os dois reinos, sem intervenção papal. É enviada uma outra embaixada a Castela, composta por Rui e João de Sousa, Estêvão Vaz e Aires de Amada. Os representantes de ambos os reinos, na presença das testemunhas, vão assinar no dia 7 de Junho de 1494 o Tratado em Tordesilhas. Tudo nos indica que os representantes régios apenas confirmaram um Tratado que já teria sido obtido através de negociações directas entre os dois reinos, pois é provável que um primeiro acordo tivesse surgido em Fevereiro desse ano.

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Linha de Tordesilhas
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O rei de Portugal modificou a sua posição negativa a uma eventual alteração do critério de demarcação de espaços conseguida com o Tratado de Alcáçovas; inicialmente recusou a proposta do Papa em relação ao meridiano a 100 léguas dos Açores e Cabo Verde, todavia finalmente aceitou um semi-meridiano, mas a 370 léguas de Cabo Verde. Neste contexto foi traçada uma linha divisória, de pólo a pólo, a parte Oriental pertencendo a Portugal e a Ocidental a Castela. Uma delegação de pilotos, astrónomos e marinheiros ficou encarregue de fixar essa linha no prazo de 12 meses. Aos castelhanos ficaria assegurado o direito de passagem para o Ocidente. Seriam de soberania castelhana todas as terras descobertas por Colombo na sua segunda viagem, até 20 de Junho de 1494, para lá de 250 léguas a oeste de Cabo Verde. Quaisquer descobertas feitas depois dessa data e até ao limite das 370 léguas seriam posse de Portugal. Finalmente, ambas as partes comprometeram-se a não recorrer ao Papa para alterar o Tratado.

As dificuldades técnicas para na aplicação do tratado foram notadas desde logo, pois não estava exactamente determinado a partir de qual ponto do arquipélago de Cabo Verde deveriam ser contadas as 370 léguas. Nem tão pouco qual o processo que deveria ser utilizado para fazer a medição da longitude.

Esta alteração de 100 para 370 léguas tem sido muito discutida, o que levou alguns cronistas e historiadores a afirmarem que D. João II já teria um conhecimento prévio do Brasil. Mas, mais do que tudo, interessava ao rei salvaguardar o monopólio de acesso ao Cabo da Boa Esperança e consequentemente garantir a rota para a Índia.

O denominado segundo tratado (assinado no mesmo local e dia) resolveu outro tipo de questões de importância relevante no quadro político peninsular. Uma das mais importantes prendeu-se com a sucessão do trono português, pois o Rei tentava legitimar o seu filho natural D. Jorge, iniciativa que contou com a oposição dos Reis Católicos. Estes pretendiam ver no trono português D. Manuel, duque de Beja, Também a Santa Sé pressionou o rei de Portugal para eleger D. Manuel como seu legítimo herdeiro. Neste segundo tratado foi ratificado o domínio português sobre o comércio e navegação a sul das Canárias; definiram-se as zonas de expansão ibérica no Norte de África e os direitos de pesca de ambos os reinos, a sul do Cabo Bojador. Por último resolveram-se alguns conflitos de âmbito fronteiriço dentro da Península.

Tordesilhas foi sobretudo um regulador da expansão ibérica e o seu significado esvaziou-se progressivamente, conforme outros Reinos europeus o iam colocando em causa. Contudo o Príncipe Perfeito acabou por assegurar uma rota, um caminho há muito procurado para chegar às Índias, feito que seria possível materializar quatro anos mais tarde, em 1498.

Luísa Gama

Bibliografia:

ALBUQUERQUE, Luís de, O Tratado de Tordesilhas e as Dificuldades Técnicas da sua Aplicação Rigorosa, Coimbra, 1973, Separata da Revista da Universidade de Coimbra, Vol. XXIII.

Corpus Documental do Tratado de Tordesilhas. Coord. de Luís Adão da Fonseca e José Manuel Ruiz Asencio, Valhadolid, Sociedad V Centenario del Tratado de Tordesillas — Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1995.

DOMINGUES, Francisco Contente, «Tratado de Tordesilhas», Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses. Dir. de Luís de Albuquerque, Vol. II, Editorial Caminho, 1994, pp. 1039-1043.

FONSECA, Luís Adão, O Tratado de Tordesilhas e a Diplomacia Luso-Castelhana no Século XV, Estudo de Luís Adão da Fonseca e Leitura de Maria Cristina Cunha, Lisboa, INPA, 1991.

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