Navegações, Cultura e Ciência Moderna

Tratado da Esfera

A origem de grande parte do saber que circulou um pouco por toda a Europa entre os séculos XII e XVII tem uma fonte comum : a “Escola de Tradutores de Toledo”. Uma verdadeira síntese do conhecimento clássico e indo-árabe encontra-se em marcha entre meados do século XII e todo o século seguinte na Espanha cristã e na Sicília de Rogério II, dois pontos de contacto entre a cultura cristã e a cultura árabe. O epicentro deste sincretismo cultural é cidade de Toledo. A partir daí um corpo de tradutores, impulsionado por Gerardo de Cremona (1114-1184), traduz do árabe e do hebraico para latim muitas das obras que vão dar alento ao movimento de ideias a que se assistirá nos séculos XII e XIII. São compilações de saber como o Liber Alchorismi de Al-Khwarismi, o Almagesto de Ptolomeu, o Mensura Circuli de Arquimedes, o Sepeculis Conburentis de Diocles, os Elementos de Euclides, a maior parte das obras de Aristóteles, os diversos escritos de Hipocrates, de Galeno, de Al-Kindi, de Avicena, de Thabit Ibn Qurra, de Rahzés..., que vão refugiar-se à volta de paradigmas, verdadeiros modelos de interpretação da realidade, do Homem e do Mundo.

Um dos melhores exemplos da recepção, uso e divulgação destes novos saberes é, seguramente, o Tractatus de Sphera de um clérigo inglês, Iohannes de Sacrobosco (John of Holywood). Além dos seus textos, muito pouco se sabe a seu respeito, a não ser que era de origem inglesa e que ensinou na Universidade de Paris, por volta do século XIII. Os seus principais trabalhos, o Algorismus, o Computus e o Tractatus de Sphera, são  textos “elementares” versando matérias como a matemática e a astronomia, sendo notório o eco dos novos conhecimentos vindos de Toledo. Autores como Alfraganus, Ptolomeu ou Macróbio surgem  citados implícita ou explicitamente a par da divulgação de um novo tipo de numeração, os algarismos árabes.

A obra de Sacrobosco mais divulgada, o Tratado da Esfera, foi o compêndio de astronomia e cosmografia mais usado do século XII ao século XVII. Tratava-se de um manual para uso de estudantes, das classes mais ligadas ao quadrivium, contendo as definições, já bastante difundidas, da esfera celeste, dos pólos e eixo do mundo, tal como a sua forma; os vários círculos traçados na esfera celeste – horizonte, meridiano, verticais – usados na astronomia; o nascimento e ocaso dos astros; a desigualdade dos dias e das noites e as sua variações com a latitude e a época do ano; os movimentos dos planetas segundo as ideias de Ptolomeu; as causas dos eclipses do Sol e da Lua. O sucesso do manual deveu-se, essencialmente, à forma como os assuntos estavam redigidos, de maneira concisa e simples, acessível não só a uma população universitária que não parava de crescer, como também podiam ser usados por quem tivesse o mínimo de escolarização. 

A ressonância do Tratado da Esfera em Portugal foi apreciável, sobretudo na literatura náutica. Como demonstrou o Professor Luís de Albuquerque, o folheto já por cá circulava pelo menos desde o século XV. No entanto, a primeira obra, em Portugal, a citar o Tratado da Esfera é o Livro de Montaria de D. João I, para demonstrar a repartição do Zodíaco em doze signos. A projecção de Sacrobosco em Portugal  prende-se, contudo, com o facto da sua obra ter sido amplamente usada para instruir pilotos e homens ligados ao mar. O texto tinha processos relativamente simples para ensinar cálculos de trigonometria esférica, ou para  observar o movimento dos corpos celestes, e  tirar posições geográficas, nomeadamente a latitude. O escrito de Sacrobosco acabou por ser traduzido para português, ficando à disposição de quem não percebesse latim, e incorporado, ainda que com algumas lacunas, nos denominados regimentos de  Munique (c.1508) e Évora (c.1516). 

E foi concerteza pensando nos problemas práticos enfrentados no dia-a-dia na navegação oceânica, que se criou em Lisboa, ainda durante o século XVI, uma “aula da esfera”, regida pelo cosmógrafo-mor. O intuito era preparar pilotos, cartógrafos e construtores de instrumentos náuticos ministrando-lhes rudimentos de cosmografia, ensinando-lhes a leitura de cartas náuticas e o uso das tábuas de declinação solar. Para tal  a leitura de Sacrobosco, e do seu Tratado, era obrigatória. Temos conhecimento de Pedro Nunes ter ensinado nessa “aula”, acreditando-se que tenha composto especificamente duas obras para o efeito : o Tratado da Esfera, traduzido pelo próprio Pedro Nunes, e logo anotado e glosado com base nas novidades proporcionadas pelas navegações, editado em 1537; e o Astronomici Introductiorii de Spaera Epitome impresso em data e lugares indeterminados.

Directa ou indirectamente o compêndio de Sacrobosco foi influenciando outros textos que em Portugal foram aparecendo, tratando de temas relativos à cosmografia  e à astronomia. Nessas condições encontram-se a Arte del Marear de Francisco Faleiro (ed.1535); o Tratado de Sphoera por perguntas e respostas, a modo de diálogo de D. João de Castro ( escrito antes de 1537) ; a Sphaera utriusque tabelas ad sphaera huius mundi facilitor enucleationem de André Avelar (ed.1593, Coimbra) e os citados trabalhos de Pedro Nunes. Duarte Pacheco Pereira também refere Sacrobosco no seu Esmeraldo de Situ Orbis (c.1508), podendo mesmo ter-se servido de uma tradução portuguesa.

Constata-se, desta forma, o peso que o pequeno manual de Sacrobosco teve na cultura portuguesa ao longo de  todo o século XVI. Peso esse suficientemente elucidativo para provar a domínio, avassalador, que os saberes tradicionais, muitas vezes sob a forma de resistência e blocagem, impuseram à sociedade, impedido-a de participar de forma efectiva na grande “revolução” científica  e técnica,  ao longo do século XVII.

Carlos Manuel Valentim


Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís de, “Sobre Um Manuscrito Quatrocentista do «Tratado da Esfera» de Sacrobosco”, in Revista da Faculdade de Ciências, vol. XXXVIII, Universidade de Coimbra, 1959, pp. 142-156.
IDEM, Os Guias Náuticos de Munique e Évora, Lisboa, J.I.U., 1965.
CARVALHO, Joaquim Barradas de, As Fontes de Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”, Lisboa, I.N.-C.M., 1982.
PEDERSEN, Olaf, “In Quest of Sacrobosco”, in Journal for the History of Astronomy  16 (1985), pp.175-221.
THORNDYKE, Lynn, The Sphere of Sacrobosco and It’s Commentators, Chicago, Chicago University Press, 1949.

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