História Trágico-Marítima
A longa rota percorrida pelos navios portugueses desde a viagem de Vasco da Gama, entre Lisboa e a Índia, por via do Cabo da Boa Esperança, transformou-se, por vezes, num palco de catástrofes. De acordo com as estimativas feitas, admite-se que nos séculos XVI e XVII naufragou um navio em cada cinco dos que partiram com destino à Índia. Se limitarmos o período ao século XVI e à primeira metade do XVII, a percentagem de perdas atingiu quase 25%.
Quando a tragédia permitia que os náufragos chegassem a alguma terra ou ilha e dali voltassem à Índia ou atingissem, caminhando, algum local onde pudessem recorrer a outro navio, o acontecimento, depois de ter sido contado pelos sobreviventes, ficava registado pelas próprias testemunhas ou por alguém que tivesse mais habilidade na redacção. Nas páginas das narrativas enumeravam-se as causas dos naufrágios, como a largada fora da época regulada pelas normas, as excessivas dimensões e a má construção dos navios, utilizando madeiras inadequadas e calafetagem insuficiente: o exagero das cargas e a sua má distribuição; as tempestades, a deficiência das bombas de água, a carência de velas sobressalentes, a inexperiência, a ignorância e a incapacidade dos pilotos, a falta de solidariedade entre os navios, em virtude de ambição de chegar primeiro aos portos de destino e os ataques de inimigos piratas, corsários e navios de frotas adversas (francesas, inglesas, holandesas e turcas). Também se revelavam as situações psicológicas dos tripulantes e passageiros desorientados e desesperados e o comportamento dos homens que tinham enfrentado os perigos, a agonia e a morte, tanto na aflição do naufrágio, em que gritavam e recorriam ao socorro divino na confusão do momento extremo, mostrando o individualismo dos homens exposto na tentativa de salvação, como no sofrimento da peregrinação fatigante e perigoso em terras africanas inóspitas. Desta forma nasceu um género literário característico, que se baseia em experiências verdadeiras e que consistia nos relatos de naufrágios, cativando os leitores com os seus episódios impressionantes e aterrorizadores e circulando sob a forma de folhetos avulsos como literatura de cordel.
Todavia, os naufrágios de que se fez redacção foram, evidentemente, apenas uma ponta do icebergue. Em quase 40% dos casos, desconhecemos por que razões naufragaram estes navios, pois perderam-se com todos os tripulantes, passageiros e cargas sem deixarem sobreviventes, testemunhas ou vestígios. Ainda que este desaparecimento total não tivesse originado nenhuma narração, em que se descrevesse a desgraça no mar, considera-se mais calamitoso do que aqueles que foram alvo de relações e se tornaram célebres. Os empreendimentos heróicos e as façanhas prestigiantes dos Portugueses deram origem às crónicas laudatórias. Em contrapartida, afirma-se que a História Trágico-Marítima se salienta de um modo específico na Cultura Portuguesa, apresentando o seu lado escuro/sinistro, constituindo o reverso da visão épica/heróica, mostrando-nos o aspecto sórdido do comércio, da conquista e da navegação perpetuados nas Décadas e nos Lusíadas e podendo ser considerada como uma «anti-epopeia dos Descobrimentos».
Os relatos de naufrágios lograram grande popularidade, de tal forma que o do galeão São João que naufragou em 1552, afamado como o naufrágio de Sepúlveda, foi reeditado diversas vezes, e a primeira edição do da nau Santo António, surgido em 1565, teve mil exemplares numa época em que a tiragem média era mais ou menos de trezentos. A vasta divulgação fez com que, nos anos de 1735 e 36, doze desses folhetos e manuscritos fossem coligidos em dois tomos pelo erudito Bernardo Gomes de Brito, com o título da História Trágico-Marítima, incluindo os seguintes naufrágios: 1. galeão grande São João (1552), 2. nau São Bento (1554), 3. nau Conceição (1555), 4. naus Águia (1560) e Garça (1559), 5. nau Santa Maria da Barca (1559), 6. da nau São Paulo (1561), 7. da nau Santo António (1565), 8. nau Santiago (1585), 9. nau São Tomé (1589), 10. nau Santo Alberto (1593), 11. nau São Francisco (1597), 12. galeão Santiago (1602) e nau Chagas (1594).
Embora Bernardo Gomes de Brito tivesse pensado reunir as narrativas de naufrágios em cinco volumes (de acordo com Inocêncio Francisco da Silva), saíram apenas dois. Por outro lado, conhecemos um “terceiro”. No entanto, em vez de ser uma nova compilação, todos os exemplares do “terceiro volume” diferem por não ser mais que a encadernação dos folhetos avulsos já publicados, pois mantêm a numeração separada de cada brochura sem a folha de rosto interna, alguns não os coligem cronologicamente, há casos em que se misturam os relatos incluídos e não incluídos na História Trágico-Marítima, existem as compilações em que se juntam as duas ou três edições diferentes da mesma narração, há encadernações não só das relações de naufrágios como também de outros temas, etc. Baseando-se na investigação de Charles Ralph Boxer e na nossa consulta da variedade do “terceiro volume”, consideramos as seguintes seis narrativas dos naufrágios como sendo do género idêntico aos doze da História Trágico-Marítima, pela frequência do seu aparecimento no “terceiro”, pelo seu valor literário e pela sua analogia com os outros da compilação britiana; 13. nau Nossa Senhora da Conceição (1621), 14. nau São João Baptista (1635), 15. nau Nossa Senhora do Bom Despacho (1630), 16. nau Nossa Senhora de Belém (1635), 17. naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia (1647) e 18. galeão São Lourenço (1649).
Este género de literatura satisfez o gosto do público por diversas razões. Em primeiro lugar, o dramatismo do relato mais antigo, ou seja, o do naufrágio do galeão grande São João, impressionou os leitores de tal forma que, além de ter despertado o interesse por narrações deste tipo, ficou conhecido como um paradigma do género. Em segundo lugar, uma vez que todos os portugueses participavam quer directa quer indirectamente na aventura do ultramar e nas suas catástrofes, desejava-se ansiosamente saber a descrição dos acidentes em que poderia estar envolvido algum familiar, conhecido ou amigo. Como terceira finalidade, podemos considerar a didáctica, pois as causas dos sucessivos infortúnios cruamente apontadas serviriam de manual de naufrágios, para que outros se acautelassem contra futuros desastres e soubessem não só os perigos que poderiam vir a enfrentar, dando ênfase aos riscos evitáveis, resultantes da enorme ganância e da irresponsabilidade dos homens, como também às possíveis atitudes a tomar em caso de perdição e de peregrinação em terra desconhecida. Além disso, por descreverem o comportamento humano, em que se misturam o orgulho, a arrogância, a cupidez, o egoísmo, o altruísmo e a renúncia, mostravam vivamente tanto a brutalidade como o heroísmo nas situações que relatam.
Os desastres no mar e a caminhada em lugares distantes e ignorados, que foram escrupulosamente registados e que cativaram o interesse do público da altura continuam a chamar a nossa atenção, pois, além de não cessarem de aparecer as adaptações literárias baseadas na História Trágico-Marítima, a sua reedição e os trabalhos a esse respeito encontram-se hoje nas livrarias, tendo sido elaboradas, na última década, meia dúzia de teses de mestrado e de doutoramento. No entanto, os estudiosos não centraram muita atenção na documentação não publicada, embora os investigadores pioneiros como Charles Ralph Boxer e Giulia Lanciani já tenham referido alguns dos manuscritos não incluídos na antologia setecentista. As fontes, que estavam inéditas até há pouco tempo, não só nos proporcionaram outros pontos de vista para os naufrágios que já conhecíamos como também permitem modificar algumas opiniões geralmente aceites.
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