Um dos legados mais importantes dos Descobrimentos Portugueses é, sem dúvida, a volumosa produção literária daí resultante, a qual tem sido designada por literatura de viagens.
Trata-se de um extenso conjunto de obras que, longe de ser homogéneo, encerra os mais diversos aspectos directamente relacionados com as navegações portuguesas do século XV até às primeiras décadas do século XVII, bem como a apreensão dos novos espaços, gentes e culturas contactados. Numa tentativa de compreensão e racionalização dos «mundos» descobertos, a escrita surge como um suporte de fixação, organização e divulgação das novas realidades experimentadas e vividas pelos viajantes portugueses, dando origem a um novo quadro cultural que rompe definitivamente com o horizonte mental da Europa medieval. Com efeito, e segundo Luís Filipe Barreto, a originalidade deste quadro cultural decorrente dos Descobrimentos Portugueses reside no facto de, pela primeira vez na história da Humanidade, se ter verificado um processo de observação, classificação e acumulação sistemáticas de informação, concorrendo para a criação de um «planetário banco de dados» e, em última análise, para o desenvolvimento de uma «cultura-mundo».
Esta «cultura dos Descobrimentos» desenvolve-se no seio de um novo paradigma cultural para a Europa da época o chamado período do Renascimento em que o indivíduo é o principal sujeito do processo de conhecimento, sendo o sentido crítico e a experiência vivencial as suas ferramentas gnoseológicas. Deste modo, um novo saber surge deste processo, apoiado, não em construções teológicas, e, mesmo, mitológicas da cultura medieval, mas na experiência pessoal e real dos «agentes» dos Descobrimentos.
Se numa primeira fase a produção cultural daí decorrente é essencialmente manuscrita, como resultado de um discurso pessoal e pragmático do agente «descobridor», o advento da imprensa proporcionou, por seu turno, a abertura desses textos a novos públicos interessados pelas longínquas terras e gentes que a aventura das navegações permitiu descobrir, acelerando o desmoronar do antigo edifício gnoseológico medieval.
Em suma, o caracter empírico-pragmático é um elemento caracterizador da literatura de viagens, uma vez que, como afirmou Onésio Teotónio Almeida, «o que é novo em Portugal não é a introdução do conceito de experiência como critério fundamental de verdade, mas a concepção de que é através da experiência que o conhecimento deve ser primordialmente adquirido». Como resultado, a aceitação ou rejeição do conhecimento herdado da Antiguidade Clássica e do saber dogmático da Medievalidade dependeriam agora de critérios objectivos assentes na razão e experiência vivencial, e não no tradicional critério da «autoridade» incontestada.
Mas, para além da experiência, o tempo e o espaço constituem outros dois vectores caracterizadores desta nova ordem de saber, agindo como categorias organizadoras do conhecimento adquirido. Deste modo, enquanto que nas crónicas (género literário que resiste dos tempos medievais, fortemente condicionadas pelos poderes constituídos que os autores pretendem servir), sendo «reconstituições históricas» feitas a partir de relatos de navegadores ou de documentos lidos e interpretados pelo autor, predomina o vector tempo, nas descrições de terras privilegia-se o espaço, num discurso descritivo, onde predomina o carácter quantitativo, em benefício de um maior grau de precisão e de exactidão. Deste modo, terá sido essa evolução caracterizada pela mentalidade quantitativa patente nas «descrições» que, aliada às dificuldades no campo prático emergentes das navegações, terá levado ao acelerado desenvolvimento da produção de obras técnicas ao nível da astronomia náutica, cartografia, geografia e outras áreas do saber científico da época.
Podemos então fazer uma distinção entre dois grandes grupos tipológicos no seio da literatura de viagens portuguesa: as obras narrativas, que assentam nas descrições quantitativas e qualitativas da nova realidade mundial, e as obras técnicas, que tentam dar resposta a problemas práticos, mas que apresentam já algumas incursões no campo teórico e, se assim podermos chamar, na crítica científica.
No primeiro caso temos então as crónicas, que relatam os «trabalhos náuticos» dos portugueses, em que é dada particular atenção à forma e aos recursos estilísticos utilizados, numa narrativa marcadamente qualitativa. Paralelamente temos também as «descrições», narrativas essencialmente quantitativas, onde, como já vimos, predomina o vector espaço, numa particular preocupação pelo relato fiel, preciso e rigoroso: descrições geográficas (e da diversidade fitomórfica e zoomórfica), etnográficas e socio-económicas, no campo das novas realidades contactadas; relações de viagens, relatos de naufrágios, diários de viagens e de navegação e livros de armadas no campo das navegações. Importa referir que, se para a análise das crónicas devemos ter em conta a possibilidade de estas serem enformadas pelos interesses pessoais e subjectivos dos seus autores, pois, como já vimos, servem, ou poderão servir, os interesses do poder político dominante, também no estudo das descrições das novas gentes e terras contactadas importa determinar os quadros conceptuais de representação/explicação do outro por parte do relator e, neste sentido, qual a filtragem aplicada a essas novas realidades.
Quanto às obras técnicas, no campo do saber prático, estas resultam do desenvolvimento operado durante o século XV na astronomia náutica, a partir da observação sistemática dos astros no mar e da compilação da informação recolhida em compêndios de normas e instruções úteis para a navegação oceânica. A este nível temos então os livros de marinharia, compostos essencialmente por duas partes - uma primeira de regras de astronomia náutica e de pilotagem e uma segunda de descrições roteirísticas sendo o resultado da compilação, por parte dos pilotos, de todas as informações de interesse náutico que chegavam ao seu conhecimento e que decorriam da própria experiência adquirida nas viagens marítimas. Temos também os roteiros, incluídos nos livros de marinharia, isolados ou reunidos em compilações de obras do mesmo género os livros de rotear e que se distinguem dos seus congéneres do período medieval, não só pela sua dimensão oceânica, possível pela astronomia náutica, como também pelo maior rigor aplicado aos tradicionais roteiros de costa. No campo das obras técnicas temos ainda os guias náuticos e os livros de armação, para além das obras relacionadas com a cartografia, a qual é cada vez menos figurativa, fornecendo importantes informações como as escalas de latitudes e o registo de sondas, entre outras, e revelando a sua potencialidade enquanto auxiliar de navegação, ao invés de ser uma mera representação simbólica do mundo conhecido. De referir ainda os tratados de construção naval, que tentam sistematizar e normalizar os procedimentos adequados à construção dos navios através de princípios gerais de ordem quantitativa, na correcta proporção das formas, e mesmo de ordem qualitativa, no rigor da escolha dos materiais de construção.
Deste modo, as obras técnicas da literatura de viagens portuguesa revelam, por um lado, uma utilização crítica do saber tradicional, adaptando-o ou rejeitando-o de acordo com as necessidades e evidências resultantes das viagens de navegação, e, por outro, a sistematização e normalização dos novos conhecimentos adquiridos, aplicando-os e validando-os no campo prático da astronomia náutica, da geografia e da construção naval.
Mas a análise da literatura de viagens portuguesa não se deverá restringir apenas ao estudo das obras produzidas entre o século XV e as primeiras décadas do século XVII. Importa, de igual modo, analisar o quadro cultural português desse período, tendo em conta a especificidade política e sócio-económica do Portugal dos Descobrimentos. Deste modo, e como já verificámos, a doutrina/ideologia dominante atravessa o campo das crónicas, permeável ao elogio do Descobrimentos enquanto demonstração do valor político-militar de uma monarquia fortemente centralizada que, em muitos aspectos, mantém ainda uma acentuada vertente medieva, produzindo-se um discurso por vezes paradoxal, tendo em conta o novo quadro cultural em formação. Por outro lado, a persistência de uma perspectiva teológica dos Descobrimentos enquanto demonstração do poder da Cristandade, condiciona os quadros de representação do outro nas descrições das novas terras e suas gentes, através de uma visão moral e, por vezes, negativa dos mesmos.
No entanto, ao mesmo tempo que estes caracteres medievos persistem em alguns campos da literatura de viagens, a nova ordem de saberes, resultante dos Descobrimentos, caracterizada por um racionalismo crítico-vivencial, acelera o diálogo entre tradição e modernidade, num processo que conduz à criação do quadro interpretativo para uma nova realidade humana e geográfica que, pela primeira vez na história da Humanidade, se assume à escala planetária.
Bruno Gonçalves Neves
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