Nascido em Alcácer do Sal, em 1502, e falecido em Coimbra a 11 de Agosto de 1578, também conhecido pela versão latinizada do seu nome, Petrus Nonius Salaciensis (determinativo derivado do velho nome romano de Alcácer), foi um dos grande vultos da cultura humanista em Portugal e porventura o maior matemático e cientista português do século XVI.
Parece indiscutível ter ascendência judaica, mas ao contrário do que viria a suceder, no século seguinte, com os seus netos, nunca teve problemas com o Santo Ofício, talvez devido ao grande prestígio de que sempre gozou nos meios intelectuais e junto da Corte. Além disso, mesmo tendo tido antepassados judeus, os seus escritos não denunciam qualquer indício de ter sido judaizante ainda que Diogo de Sá lhe tenha dirigido um ataque em De Nauigatione Libri Tres (1549), por algo que Nunes teria escrito numa dos seus textos, o que poderia denunciar, como sugeriu Joaquim Bensaúde, que as suas obras de carácter científico encontrariam alguma resistência junto dos meios mais fervorosamente católicos (isto numa época em que se exacerbavam as diferenças entre credos numa Europa dividida pela Reforma); pelo contrário, o corpus das suas obras comprova antes a sua forma-ção cristã, dentro dos princípios da Igreja Católica, e de que talvez a dedicatória do seu De Crepusculis (1542) constitui o melhor exemplo.
Sabemos pouco sobre os seus primeiros anos (ironicamente, os principais testemunhos sobre essa fase da vida de Pedro Nunes encontram-se coligidos nos processos que a Inquisição moveu aos seus netos, na década de 1620). Passou a sua infância em Alcácer, então uma das mais prósperas vilas da comarca de Entre-Tejo-e-Odiana, onde permaneceu até vir para Lisboa; na capital do Reino iniciou os estudos em Artes, Matemática e Medicina (bacharelando-se na primeira daquelas discipli-nas em 1526).
Durante muito tempo, assumiu-se que tivesse também frequentado as Universidades de Salamanca e de Alcalá de Henares, embora o seu nome não constasse nos arquivos de nenhuma dessas escolas; porém, graças ao estudo de Joaquim Veríssimo Serrão sobre os alunos portugueses em Salamanca, comprovou-se a sua presença, pelo menos, na primeira daquelas escolas, desde 1517 (um documento datado de 29 de Maio de 1526 dá-o como tendo sido eleito conselheiro da Universi-dade salamantina). Em 1523, entretanto, havia-se casado com Guiomar Áreas, enlace do qual nasce-ram quatro filhas e dois filhos.
Ignoram-se as condições em, entretanto, que regressou a Portugal. O testemunho dos netos dá conta do interesse que D. João III tinha no promissor matemático, tendo-o mandado chamar de Salamanca. Tão-pouco se sabe o que esteve por trás da estima régia; sugerem alguns que a família de Pedro Nunes tivesse boas ligações com elementos da Corte, mas sem provas que o sustentem. Ao retornar à Pátria, é nomeado docente na Universidade de Lisboa (4 de Dezembro de 1529), onde irá reger as velhas disciplinas do triuuium. Assim, começa por leccionar a cadeira de Filosofia Moral; a partir de 15 de Janeiro seguinte, é nomeado também para a regência de Lógica. Contudo, parece que o seu ensino pensa-se que regido pelas teses nominalistas não cativaria os estudantes, sendo que, a partir de 4 de Abril de 1531, por decisão do Reitor, as suas duas lições de Filosofia deve-riam ser substituídas por somente uma de Metafísica.
Em 16 de Fevereiro de 1532 obteve o grau de Doutor em Medicina pela Universidade de Lisboa, após o que renuncia ao ensino público, talvez descontente com a decisão da Universidade no ano transacto; manteve-se, no entanto, como Mestre de Matemática dos irmãos mais novos de D. João III os infantes D. Luís (Duque de Beja e futuro Prior do Crato) e D. Henrique (o futuro Cardeal-Rei) facto a que alude na já citada dedicatória do De Crepusculis. Retorna à docência universitária, leccionando Matemática a partir de 16 de Outubro de 1544 (já com a Universidade sediada em Coimbra), até se aposentar, em 4 de Fevereiro de 1562. Porém, essa docência foi bastantes vezes entrecortada por deslocações periódicas mais ou menos longas a Lisboa, ditadas pelo seu exercício do cargo de cosmógrafo real (para o qual fora nomeado por alvará régio de 16 de Novembro de 1529), pelo qual recebia uma tença anual de vinte mil réis (que passaram a quarenta mil quando em 1541 foi confirmado no cargo, talvez como recompensa pela sua boa prestação); em 1547, D. João III designou-o para o cargo de cosmógrafo-mor do Reino, passando a auferir de um vencimento que se elevava aos cinquenta mil réis anuais. No exercício desse cargo terá composto um Regimento do Cosmógrafo-mor (1559), o qual no entanto, não chegou até nós, deduzindo-se a sua existência apenas pelo Regimento de 1592. Um ano após a sua nomeação como cosmógrafo-mor, o Rei fê-lo também cava-leiro da Ordem de Cristo, o que lhe conferia ainda mais prestígio e maiores rendimentos. O monarca, de resto, dispensava tanta protecção a Pedro Nunes que ordenou mesmo à Universidade que pagas-se os vencimentos correspondentes aos períodos de ausência do matemático em Lisboa, no exercí-cio das suas funções oficiais, o que muito irritava os membros da academia conimbricence.
A partir da sua jubilação, e ao longo dos dez anos subsequentes, manteve-se afastado da Corte, em Coimbra, não exercendo mais as funções de cosmógrafo-mor (embora não tivesse sido substituído no cargo); nesse período coligiu diversos privilégios, entre os quais uma significativa tença por haver sido mestre do Infante D. Luís. Em 25 de Abril de 1572, contudo, D. Sebastião chama-o de vol-ta a Lisboa (oferecendo-lhe oitenta mil reais anuais), a fim de volver aos seus trabalhos de cosmogra-fia, e à leccionação de uma «Aula de Esfera», onde ensinaria os novos pilotos, procurando articular o saber científico adquirido na escola com a prática empírica dos mareantes (evidenciando-se assim em defesa do experimentalismo); tal, porém, não só não teve grandes resultados, como também lhe valeu vários atritos com os homens do mar (de resto, no Tratado em Defensão da Carta de Marear, de 1537, já houvera escrito: «bem sey quam mal sofrem os pilotos que fale na Índia quem nunca foy nella, e pratique no mar quem nelle nam entrou»).
Em 1577, tão estabelecida se achava já a sua fama, que o Papa Gregório XIII encarregou-o do seu último grande trabalho, pedindo-lhe para se pronunciar acerca da reforma do calendário (que veio a ser conhecido como «gregoriano», e que viria a ser adoptado em 1583); a sua morte, um ano mais tarde, porém, tolheu-lhe essa tarefa.
Desta figura do Renascimento português conhecem-se os seguintes escritos (mencionados por ordem cronológica de edição):
- a) Tratado da Esfera (1537), tradução cuidada e comentada do De Sphæra do inglês John of Holywood (aliás, João de Sacrobosco), acompanhado das versões em português da Teórica do Sol e da Lua, do alemão Georg von Peuerbach (Jorge Purbáquio), e do Livro I da Geografia de Ptolomeu, bem como ainda de dois pequenos tratados originais de sua autoria: o Tratado de Certas Dúvidas da Navegação (onde responde às questões que Martim Afonso de Sousa lhe colocara sobre as navegações a Sul do Equador) e o Tratado em Defensão da Carta de Marear (no qual introduz o conceito das loxodrómias linhas cruzando todos os meridianos a um mesmo ângulo mais tarde aproveitado pelo neerlandês Gerard Mecator para conceber a projecção cartográfica que ostenta o seu nome);
- b) Astronomici Introductori de Sphæra Epitome, pequeno opúsculo não datado, um resumo do Tratado da Esfera, que a maior parte dos investigadores supõe ter sido elaborado posteriormente a 1537;
- c) De Crepusculis (1542, reeditado em 1571), porventura a sua obra mais original, foi (ao contrário do Tratado da Esfera) publicada em latim dado ser a lingua franca dos humanistas , o que lhe deu maior projecção e prestígio (não só a nível nacional como também internacional); nela descreve a variação do crepúsculo de acordo com as latitudes e as estações do ano, e alude ainda ao nónio (ins-trumento de medição cujo nome retirou do seu patronímico latino, e que seria mais tarde aperfeiçoa-do por Pierre Vernier);
- d) De Erratis Orontii Finei (1546, reeditado em 1572), onde rebate a solução encontrada pelo matemático francês Oronce Finé para resolver três problemas clássicos da geometria (duplicação do cubo, quadratura do círculo e trissecção de um ângulo);
- e) Petri Nonii Salaciensis Opera (1566), impresso em Basileia, onde compila vários dos seus trabalhos anteriores e outros até então inéditos; foi um grande sucesso, ao ponto de ter tido nova reimpressão em 1592;
- f) Libro de Algebra en Arithmetica y Geometría (1567), editado em castelhano, em Antuérpia, ainda que o próprio Pedro Nunes afirme tê-lo escrito trinta anos antes em português, e no qual critica os algebristas do seu tempo;
- g) De Arte atque Nauigandi Libri Duo (1573, embora se admita uma edição anterior de 1546), onde aborda, como o título indica, questões ligadas à arte de navegar;
- h) enfim, a Defensão do Tratado de Rumação do Globo para a Arte de Navegar, inédito até ao século XX, descoberto por Joaquim de Carvalho na Biblioteca Nazionale di Firenze e dado à estampa em 1952.
Pedro Nunes alude ainda a outras obras por si escritas (Tratado sobre os Triângulos Esféricos, Anotação à Mecânica de Aristóteles, De Ortu et Occasu Signorum, De Astrolabio Opus Demonstratiuum, De Planisphærio Geometrico, De Proportione in Quintum Euclidis, De Globo Delineando ad Nauigandi Artem), as quais estão dadas como perdidas. É provável que também tivesse efectuado uma tradução comentada do De Architectura, de Vitrúvio.
As suas obras cedo conheceram significativa repercussão na Europa, sendo reconhecido como génio ainda vivo; a sua notoriedade, porém, não esmoreceu após a morte. Assim, por exemplo, John Dee, cosmógrafo da rainha Isabel I de Inglaterra, alude a «Petrus Nonius Salaciensis» numa das suas cartas a Gerard Mercator, chamando-lhe «uiro […] eruditissimo grauissimoque» (homem eruditíssimo e ilustríssimo) de resto, Dee, temendo a sua morte (numa Inglaterra agitada por grandes convulsões religiosas), e testemunhando uma viva e profunda amizade pelo sábio português, afirma nessa mesma carta desejar legar os seus escritos e demais pertences a Pedro Nunes. De igual forma, sabe-se que Pedro Nunes também manteve correspondência epistolar com outros humanistas da época.
O mais importante cultor noniano, porém, terá sido o jesuíta alemão Christopher Clavius, que estudou em Coimbra entre 1555 e 1560, quando o matemático português ainda aí leccionava (embora talvez nunca tenha sido seu aluno), e que demonstra um profundo conhecimento da sua obra, tendo-a comentado em vários dos seus trabalhos e divulgado no seio da Companhia de Jesus. Foi por essa via, de resto, que o seu nome passou a figurar ao lado de outros grandes matemáticos e que a sua obra tem vindo a ser continuamente estudada desde então.
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Bibliografia
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