Biografias

Pereira, Duarte Pacheco

Duarte Pacheco Pereira é uma das figuras emblemáticas dos Descobrimentos portugueses. Herói militar, navegador e cosmógrafo, autor de um famoso escrito que é dos mais representativos da denominada «literatura de viagens».

D. P. Pereira nasceu em Lisboa por volta de 1460, isto é, pela mesma altura em que o Infante D. Henrique falecia. Das suas ligações familiares sabe-se que era neto de Gonçalo Pacheco, tesoureiro da casa de Ceuta e um dos muitos servidores do Infante D. Henrique; e filho de João Pacheco que fez parte de uma expedição guerreira contra os turcos no Mediterrâneo oriental, mas que vem a morrer em combate na praça de Tânger.

Ao longo do seu único trabalho escrito que chegou até nós – o Esmeraldo de Situ Orbis – percebe-se que D. P. Pereira teve um papel activo como navegador e roteirista, fundamentalmente, nos «rios da Guiné» e um pouco por todo o ocidente africano. Segundo João de Barros, Bartolomeu Dias, em 1488, no regresso da viagem que o imortalizou encontra-o moribundo a bordo de um navio junto da Ilha do Príncipe, acabando por o trazer de volta ao reino depois de fazer escala em S. Jorge da Mina. Presume-se que de Janeiro a Outubro de 1490 Duarte Pacheco, fez parte da guarda pessoal de D. João II. No entanto, os seus conhecimentos cosmográficos e a sua experiência naval levaram certamente o soberano a incorporá-lo na delegação portuguesa que, na localidade de Tordesilhas, tenta encontrar uma saída, através de negociações com os castelhanos, para os complexos problemas levantados pela viagem que Cristóvão Colombo acabara de efectuar em 1493, revelando terras a Ocidente. Com a iniciativa de Colombo ruía o tratado diplomático de Alcáçovas (1479), firmado entre a coroa portuguesa e castelhana, e com ele toda uma antiga ordem naval, comercial e geográfica. Ainda hoje se discute se D. P. Pereira esteve, ou não, no ano de 1498 em território sul-americano. A polémica passagem no Esmeraldo (Lº 1 Capitº 2º) que refere "uma tão grande terra firme", não permite saber claramente se terá havido um pré –descobrimento do Brasil. Com um maior grau de certeza, sabe-se que o grande navegador embarcou em Abril de 1503 rumo ao Índico, inserido numa esquadra capitaneada por Afonso de Albuquerque. Pouco tempo depois de desembarcar na Índia (Janeiro de 1504), é nomeado para assegurar a defesa de Cochim contra o rajá de Calecute, com parcos meios humanos e materiais, o que não o impediu de ter um papel decisivo e eficaz, com o importante apoio da artilharia, na defesa dos interesses portugueses no Malabar. De regresso a Lisboa, no início do Verão de 1505, é aclamado como um herói, facto que sobressairá mais tarde nos relatos dos cronistas.É por esse ano de 1505 que D. P. Pereira começa a redigir a sua única obra conhecida. No dizer do próprio autor (no prólogo à Iª parte) pretendia ser "um livro de cosmografia e marinharia". Ultrapassando na verdade esse âmbito, o livro mais não é que um relato das suas viagens, um roteiro náutico, uma "memória" escrita de um navegador e homem de armas, ao serviço de um Estado em expansão, onde predominam os dados autobiográficos e uma avultada experiência pessoal no campo das navegações portuguesas. Todavia, existem no escrito heranças das crónicas medievais: permanência de uma certa mentalidade conquistadora aliada a escrita panegírica. O manuscrito original do Esmeraldo perdeu-se, existindo hoje apenas duas cópias da obra, que ficou inédita até ao século XIX. A cópia mais antiga, existente na Biblioteca Municipal de Évora é datada da primeira metade do século XVIII; a outra mais nova é da segunda metade do mesmo século, encontrando-se na Biblioteca Nacional da Lisboa.

No Esmeraldo de Situ Orbis perpassa a emergência de uma nova época, uma nova Idade onde se enfrentam os antigos e os modernos saberes. Essa confrontação com base num conceito de "experiência", onde ainda não cabe a "experimentação" ou a observação sistemática, mas sim o conhecimento prático e empírico, não deixa de ser condição propícia para o colapso de algumas ideias e teorias erróneas acerca da Geografia e do mundo natural, que circulavam nos manuais dos autores clássicos e medievais. Não se trata ainda de uma "verdadeira" ruptura frente aos paradigmas da tradição, contudo é uma etapa fundamental para estabelecer a dúvida e a descrença num edifício gnoseológico em processo de desarticulação.

Para conceber o seu livro D. P. Pereira serve-se de várias autores. O mais importante é sem dúvida uma tradução espanhola, feita por Mestre João Faras, do De Situ Orbis de Pompónio Mela, de onde extrairá o nome para o seu próprio livro. Plínio numa tradução italiana e Sacrobosco numa tradução portuguesa, são outros autores que não fugiram à sua leitura, mas em língua vernácula. Seria Pereira um fraco latinista? A confirmar-se esta asserção, o autor do Esmeraldo estava muito perto dos grupos sociais que se distanciavam dos centros eruditos onde imperava o «Renascimento» da cultura clássica, e que apostavam no triunfo de um "saber" mais técnico e mecânico.

D. P Pereira vive num período de profundas modificações no campo da náutica que corresponde à segunda fase da navegação astronómica, com recurso às observações solares e à determinação das latitudes, com inevitáveis implicações na cartografia; inovações que exigiram ensaios e verdadeiras explorações hidrográficas na costa da "Guiné" onde andou D. P. Pereira, tal como Mestre José Vizinho. Os regimentos de Munique (c.1508) e Évora (c.1516) testemunham essa azáfama que, em parte, o Esmeraldo também reflecte através da exposição de uma grelha de latitudes de vários locais e do cálculo do grau de meridiano (aproximando-se do seu valor real).

Em 1508 D. P. Pereira interrompe a redacção da sua obra, a fim de ser incumbido de vigiar a costa portuguesa, o estreito de Gibraltar e estancar o corso nas águas com interesse para as rotas comerciais. Em 1519 é nomeado capitão da fortaleza da Mina. Por motivos não completamente aclarados vem para o reino preso, passados dois anos. Depois de tentar emprestar os seus serviços a Carlos V , acaba os seus dias reconciliado com o poder real e auferindo de uma tença vitalícia. Veio a falecer no princípio do ano de 1533.

Duarte Pacheco Pereira é bem o exemplo do indivíduo nobre, oriundo de um estrato cimeiro da sociedade, que se incorpora na máquina militar e administrativa do Estado. Misto de cavaleiro e mercador, que não descura a oportunidade de negociar, e de colher informações úteis para o comércio é, também, o homem que lida com técnicas de navegação, que sabe orientar um navio em alto mar ou fazer a guerra quando se torna inevitável. É a esta espécie de homens que o Estado recorre com frequência para suprimir as suas necessidades administrativas e técnicas. Através do Esmeraldo de Situ Orbis constatamos, afinal, o quanto estes homens práticos nos tinham para dizer, da sua experiência, da sua vida, das suas aventuras e contactos, do seu saber técnico e prático.

Carlos Manuel Valentim


Bibliografia
ALBUQUERQUE, Luís de, " Duarte Pacheco Pereira – O saber de experiência feito" Navegadores, Viajantes e Aventureiros Portugueses Sécs XV e XVI, Lisboa, Circulo dos Leitores, 1987, pp. 157-173.AUBIN, Jean, " Les Frustrations de Duarte Pacheco Pereira" in Le Latin et L'Astrolabe, Paris, Centre Culturel Caloust Gulbenkian, 1996, pp. 11-133.
BARRETO, Luís Filipe, Descobrimentos e Renascimento, Formas de Ser e Pensar nos Séculos XV e XVI, Lisboa, I.N.-C.M., 2ª Ed., 1983.
CARVALHO, Joaquim Barradas, A La Recherche de le Specificite de la Renaissance Portugaise, Paris, F.C.G.- Centre Culturel Portugais, 1983, 2 tomos.
IDEM, Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira, Lisboa, F.C.G., 1991
MOTA, Avelino Teixeira da, " Duarte Pacheco Pereira- Capitão e Governador de S. Jorge da Mina ", in Mare Liberum, nº 1, 1990, pp. 1-27.

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