A primeira referência a este termo, já anotada pelos
dicionários etimológicos, vamos encontrá-la num texto proveniente do
scriptorium do Mosteiro de Alcobaça e que Frei Fortunato de S.
Boaventura incluiu no segundo volume da Colecção de Inéditos
Portugueses (1829). Possivelmente do século XIV, as Historias d’abreviado
Testamento Velho contam, seguindo o Génesis, no capítulo 79, a chegada
dos irmãos de José ao Egipto em tempo de fome. Como é sabido, José,
filho de Jacob, tinha sido vendido pelos irmãos, os mesmos que José
agora recebe no Egipto, onde granjeara os favores do faraó. Por não
pretender desvendar o parentesco que o unia aos irmãos, José utiliza
os serviços do intérprete. Diz o texto:
(...) fez prender huu deles, que havia nome Symeom, e leixou os outros, e eles diziam huus contra os outros, per sua linguagem: com dereito padecemos esto, porque pecamos em nosso irmaaõ, veendo a coita da sua alma, quando nos rogava, e non o quisemos ouvir; e eles cuidavam que os non entendia Joseph, porque ele non lhe falava senon per torgimam.
(Frei Fortunato de S. Boaventura, Colecção de Inéditos
Portugueses, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1829, 2º vol., p. 67).
Já no século XV, Frei João Álvares utiliza o termo
várias vezes na sua obra Tratado da Vida e Feitos do Muito Virtuoso
Senhor Infante D. Fernando. Talvez redigida durante a década de
cinquenta do século XV e relatando acontecimentos recentes,
presenciados pelo próprio autor, a obra de Frei João Álvares deve
considerar-se como um dos documentos mais importantes para a
decifração temporal do uso do termo. Será necessário referir que o
autor da obra relata a vida do ‘Infante Santo’, (irmão do rei D.
Duarte, de D. Pedro e de D. Henrique), de quem fora secretário e que
acompanhara no cerco de Tânger em 1437. O insucesso de Tânger tornou
cativos em Fez, entre outros, o Infante e o secretário.
No cativeiro viria a falecer, em 1443, D. Fernando. Devem,
por conseguinte, merecer-nos toda a confiança as informações de Frei
João Álvares, das quais destacamos, evidentemente, as relativas à
comunicação entre ‘mouros’ e ‘cristãos’. Assim, o termo
turgimão surge no momento da entrega do Infante e da sua comitiva e
durante o cativeiro, uma primeira vez para situar os ‘recados’ para
o Infante cativo provenientes de Çala bem Çala (‘senhor de Fez’)
e, mais tarde, para descrever o modo utilizado pelo Infante para
comunicar com quem o mantinha no cativeiro.
Com o Ifante nom hya a cavalo salvo Çala bem Çala e huu christãao que la vivia com ele, a que chamavam alcaide Migeel, que foy aly torgimom das entregas do Ifante. (...)
E com estas razõoes concluiu e se foy. E jamais dally adiante nunca quis (Çala bem Çala, senhor de Fez) viir veer o Ifante nem falar com ell, senom enviava.lhe seus recados per huu judeu que era torgimam. (...)
O Ifante demandou torgimom e lhe falou neesta maneira: (...)
(Frei João Álvares, Obras, ed. Crítica de Adelino de Almeida Calado, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, Volume I, pp. 26, 32, 50)
Situando-nos ainda no século XV e, mais precisamente, no
reinado de D. Afonso V (1448-1481), dirigimos agora a nossa atenção
para a corte portuguesa e para um nome que aí desempenhou o cargo de
intérprete. Uma carta da Chancelaria de D. Afonso V revela-nos o nome
de Diogo Dias, que o Rei refere como “seu turgimão”. Datada de
1465, a carta não menciona o momento em que Diogo Dias foi nomeado ou
quem o substituiu no cargo. De resto, a carta não lhe diz directamente
respeito. Ela assinala apenas o seu empenho junto do Rei a favor do
castelhano Rodrigo de Sevilha, que pretendia lhe fosse autorizado o
porte de armas.
A quantos esta carta virem fazemos saber que querendo nós fazer graça e mercê a R. de Sevilha, castelhano, morador em Lisboa, pelo de Diogo Dias, nosso turgimão, que no-lo por ele pediu, temos por bem e queremos que daqui em diante ele possa trazer de noite e de dia quaisquer armas que lhe aprouver por todos nossos reinos e senhorio.
(In Sousa Viterbo, Notícias de Alguns Arabistas e Intérpretes de Línguas Africanas e
Orientais, Coimbra: Imprensa da Universidade,1906, p. 27)
Transitamos agora para os cronistas e autores que escreveram
sobre os primeiros momentos da Expansão Portuguesa. Se, até aqui, os
dados apresentados revelam um único nome para designar o intérprete
durante a Idade Média, os próximos indicam uma época que vê nascer
outra designação. É, por conseguinte, um momento de transição
aquele que ainda utiliza o termo turgimão, mas que faz já uso do novo
termo - língua - e onde a utilização do termo antigo parece
necessitar já de alguma explicação.
O termo preferido do cronista Gomes Eanes de Azurara é ainda
o de turgimão, embora aqui e além constatemos a utilização do termo
“enterpetador” na sua Crónica de Guiné. O referido momento de
transição deve situar-se, por conseguinte, entre os últimos anos do
reinado de D. Afonso V e o início da reinado de D. João II. Numa carta
de alforria de 1477 (reinado de D. Afonso V), o Príncipe D. João,
futuro rei D. João II, refere que João Garrido “fora algumas vezes
por língua à Guiné”. Recordamos que há pouco mencionámos uma
carta da Chancelaria de D. Afonso V onde o termo utilizado foi o de turgimão.
E se este termo aparece ainda no Cancioneiro Geral, compilado
e publicado por Garcia de Resende em 1516, mas cujas composições, pelo
menos para um grande número delas, datam de anos muito anteriores à
data da publicação, já na obra do mesmo autor, a Crónica de João
II,
provavelmente escrita na década de trinta do século XVI, é o termo
língua o utilizado. Damos como exemplo o trecho seguinte no qual Garcia
de Resende narra a segunda viagem de Diogo Cão ao Manicongo em 1485:
O qual hindo polla dita cofta com affaz perigo, e trabalho, foy ter com a dita armada ao rio de Manicongo, (...) o qual rio, e terra de Congo he de Portugal mil e fetecentas legoas, onde por fer tão longe da outra terra de Guine já defcuberta não fe poderão entender com a gente da terra, e levando muytas lingoas nenhua entendia, nem fabia aquella lingoagem.
(Garcia de Resende, Cronica de D. João II e Miscelânea, Lisboa: INCM, 1991, p.221).
Notemos ainda que o termo existia e era de uso corrente nesta
época em castelhano, francês e italiano, com as diferenças próprias
de cada língua. Introduzido pelos árabes, que o adoptaram do Caldeu,
onde significava ‘expositor’, o termo (torgeman), tounou-se
truchement ou trucheman na língua francesa. O italiano Cadamosto
escreve turcimano; mas, curiosamente, a tradução portuguesa da sua
obra (Navegações) que conhecemos emprega não só o termo turgimão,
mas também o termo língua, embora no original se encontre sempre
turcimano.