Revista Digital sobre Tradução - Número 1- Maio 2002

Artigo (2.ª parte)

Turgimão

A primeira referência a este termo, já anotada pelos dicionários etimológicos, vamos encontrá-la num texto proveniente do scriptorium do Mosteiro de Alcobaça e que Frei Fortunato de S. Boaventura incluiu no segundo volume da Colecção de Inéditos Portugueses (1829). Possivelmente do século XIV, as Historias d’abreviado Testamento Velho contam, seguindo o Génesis, no capítulo 79, a chegada dos irmãos de José ao Egipto em tempo de fome. Como é sabido, José, filho de Jacob, tinha sido vendido pelos irmãos, os mesmos que José agora recebe no Egipto, onde granjeara os favores do faraó. Por não pretender desvendar o parentesco que o unia aos irmãos, José utiliza os serviços do intérprete. Diz o texto:

 

(...) fez prender huu deles, que havia nome Symeom, e leixou os outros, e eles diziam huus contra os outros, per sua linguagem: com dereito padecemos esto, porque pecamos em nosso irmaaõ, veendo a coita da sua alma, quando nos rogava, e non o quisemos ouvir; e eles cuidavam que os non entendia Joseph, porque ele non lhe falava senon per torgimam.
(Frei Fortunato de S. Boaventura, Colecção de Inéditos Portugueses, Coimbra: Imprensa da Universidade, 1829, 2º vol., p. 67).

 

Já no século XV, Frei João Álvares utiliza o termo várias vezes na sua obra Tratado da Vida e Feitos do Muito Virtuoso Senhor Infante D. Fernando. Talvez redigida durante a década de cinquenta do século XV e relatando acontecimentos recentes, presenciados pelo próprio autor, a obra de Frei João Álvares deve considerar-se como um dos documentos mais importantes para a decifração temporal do uso do termo. Será necessário referir que o autor da obra relata a vida do ‘Infante Santo’, (irmão do rei D. Duarte, de D. Pedro e de D. Henrique), de quem fora secretário e que acompanhara no cerco de Tânger em 1437. O insucesso de Tânger tornou cativos em Fez, entre outros, o Infante e o secretário.

No cativeiro viria a falecer, em 1443, D. Fernando. Devem, por conseguinte, merecer-nos toda a confiança as informações de Frei João Álvares, das quais destacamos, evidentemente, as relativas à comunicação entre ‘mouros’ e ‘cristãos’. Assim, o termo turgimão surge no momento da entrega do Infante e da sua comitiva e durante o cativeiro, uma primeira vez para situar os ‘recados’ para o Infante cativo provenientes de Çala bem Çala (‘senhor de Fez’) e, mais tarde, para descrever o modo utilizado pelo Infante para comunicar com quem o mantinha no cativeiro.

 

Com o Ifante nom hya a cavalo salvo Çala bem Çala e huu christãao que la vivia com ele, a que chamavam alcaide Migeel, que foy aly torgimom das entregas do Ifante. (...) E com estas razõoes concluiu e se foy. E jamais dally adiante nunca quis (Çala bem Çala, senhor de Fez) viir veer o Ifante nem falar com ell, senom enviava.lhe seus recados per huu judeu que era torgimam. (...)
O Ifante demandou torgimom e lhe falou neesta maneira: (...)

(Frei João Álvares, Obras, ed. Crítica de Adelino de Almeida Calado, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960, Volume I, pp. 26, 32, 50) 

Situando-nos ainda no século XV e, mais precisamente, no reinado de D. Afonso V (1448-1481), dirigimos agora a nossa atenção para a corte portuguesa e para um nome que aí desempenhou o cargo de intérprete. Uma carta da Chancelaria de D. Afonso V revela-nos o nome de Diogo Dias, que o Rei refere como “seu turgimão”. Datada de 1465, a carta não menciona o momento em que Diogo Dias foi nomeado ou quem o substituiu no cargo. De resto, a carta não lhe diz directamente respeito. Ela assinala apenas o seu empenho junto do Rei a favor do castelhano Rodrigo de Sevilha, que pretendia lhe fosse autorizado o porte de armas.  

 

A quantos esta carta virem fazemos saber que querendo nós fazer graça e mercê a R. de Sevilha, castelhano, morador em Lisboa, pelo de Diogo Dias, nosso turgimão, que no-lo por ele pediu, temos por bem e queremos que daqui em diante ele possa trazer de noite e de dia quaisquer armas que lhe aprouver por todos nossos reinos e senhorio.
(In Sousa Viterbo, Notícias de Alguns Arabistas e Intérpretes de Línguas Africanas e Orientais, Coimbra: Imprensa da Universidade,1906, p. 27)

Transitamos agora para os cronistas e autores que escreveram sobre os primeiros momentos da Expansão Portuguesa. Se, até aqui, os dados apresentados revelam um único nome para designar o intérprete durante a Idade Média, os próximos indicam uma época que vê nascer outra designação. É, por conseguinte, um momento de transição aquele que ainda utiliza o termo turgimão, mas que faz já uso do novo termo - língua - e onde a utilização do termo antigo parece necessitar já de alguma explicação.

O termo preferido do cronista Gomes Eanes de Azurara é ainda o de turgimão, embora aqui e além constatemos a utilização do termo “enterpetador” na sua Crónica de Guiné. O referido momento de transição deve situar-se, por conseguinte, entre os últimos anos do reinado de D. Afonso V e o início da reinado de D. João II. Numa carta de alforria de 1477 (reinado de D. Afonso V), o Príncipe D. João, futuro rei D. João II, refere que João Garrido “fora algumas vezes por língua à Guiné”. Recordamos que há pouco mencionámos uma carta da Chancelaria de D. Afonso V onde o termo utilizado foi o de turgimão.

E se este termo aparece ainda no Cancioneiro Geral, compilado e publicado por Garcia de Resende em 1516, mas cujas composições, pelo menos para um grande número delas, datam de anos muito anteriores à data da publicação, já na obra do mesmo autor, a Crónica de João II, provavelmente escrita na década de trinta do século XVI, é o termo língua o utilizado. Damos como exemplo o trecho seguinte no qual Garcia de Resende narra a segunda viagem de Diogo Cão ao Manicongo em 1485:

 

O qual hindo polla dita cofta com affaz perigo, e trabalho, foy ter com a dita armada ao rio de Manicongo, (...) o qual rio, e terra de Congo he de Portugal mil e fetecentas legoas, onde por fer tão longe da outra terra de Guine já defcuberta não fe poderão entender com a gente da terra, e levando muytas lingoas nenhua entendia, nem fabia aquella lingoagem.
(Garcia de Resende, Cronica de D. João II e Miscelânea, Lisboa: INCM, 1991, p.221).

Notemos ainda que o termo existia e era de uso corrente nesta época em castelhano, francês e italiano, com as diferenças próprias de cada língua. Introduzido pelos árabes, que o adoptaram do Caldeu, onde significava ‘expositor’, o termo (torgeman), tounou-se truchement ou trucheman na língua francesa. O italiano Cadamosto escreve turcimano; mas, curiosamente, a tradução portuguesa da sua obra (Navegações) que conhecemos emprega não só o termo turgimão, mas também o termo língua, embora no original se encontre sempre turcimano.


Carlos Castilho Pais

 

© Instituto Camões, 2002