Revista Digital sobre Tradução - Número 4 - Maio 2004

DICIONÁRIO
João Ramalho


  Em 1516, Manuel ordena que a Casa da Índia apoie aqueles que queiram instalar no Brasil os famosos engenhos de açúcar. Até aí, a presença portuguesa nas terras brasileiras obedecia ao modelo adoptado na Índia, caracterizado por uma presença limitada ao conjunto das fortalezas e das feitorias. A colonização propriamente dita iniciar-se-á com o reinado de D. João III.

     João Ramalho faz parte do número de portugueses que o primeiro governador (Tomé de Sousa) e os primeiros jesuítas encontram nas terras brasileiras em 1549. Pouco ou nada sabemos sobre estes portugueses, anteriormente a esta data. Efectivamente, é a partir da chegada do governador e dos homens da Companhia de Jesus que os portugueses que se encontravam no Brasil, chegados por motivos de naufrágio, deserção ou por terem sido ‘lançados’ como degredados, começam a ‘existir’. Assim, as nossas principais fontes serão as cartas dos jesuítas do Brasil.

     
Natural de Vouzela, talvez de origem nobre, há quem afirme que João Ramalho foi criado de D. Isabel, esposa de D. Afonso V. Em honra da Raínha terá colocado à sua mulher (Burtira ou Mbey, filha do ‘índio’ Tibiriçá) o nome de Isabel. João Ramalho teve seguramente uma longa existência. Mas custa-nos a crer que ela tivesse chegado aos cento e quarenta anos, como alguns sugerem. Não sem razão, Afonso Taunay inscreve o nome de Ramalho ao lado dos de Gama, Cabral, Bartolomeu Dias e Afonso de Albuquerque.

     As cartas do padre Manuel da Nóbrega, revelando-nos embora alguns dados da biografia de João Ramalho, mostram também duas vidas ou dois modos de viver em confronto. Aos olhos do ocidental cristão, o viver de João Ramalho constitui ‘escândalo’ e obstáculo para levar a bom porto a sua missão evangelizadora: “Nesta terra (S. Vicente) está um João Ramalho. É o mais antigo dela e toda a sua vida e a dos seus filhos é conforme à dos índios e é uma petra scandali para nós, porque a sua vida é principal estorvo para com a gentilidade que temos, por ele ser muito conhecido e muito aparentado com os Índios. Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com irmãs e têm filhos delas, tanto o pai como os filhos. Vão à guerra com os índios e as suas festas são de índios e assim vivem andando nus como os mesmos índios” (carta de 15 de Junho de 1553, dirigida ao padre Luís Gonçalves da Câmara).

     
E na carta de 31 de Agosto de 1553, escrita “no sertão da Capitania de S. Vicente” ao mesmo correspondente, o padre Manuel da Nóbrega dá mostras da sua simpatia para com o antigo excomungado: “Neste campo está João Ramalho, o mais antigo homem que está nesta terra. Tem muitos filhos e é muito aparentado em todo este sertão. E o mais velho deles levo agora comigo ao sertão por mais autorizar o nosso ministério. João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios, e tem filhos casados com os principais desta Capitania e todos estes filhos e filhas são duma índia filha dos maiores e mais principais desta terra. De maneira que nele e nela e em seus filhos esperamos ter grande meio para a conversão desses gentios. Este homem, para minha ajuda, é parente do P. Paiva e cá se conheceram. Quando veio da terra, que haverá 40 anos e mais, deixou sua mulher lá viva, e nunca mais se soube dela, mas que lhe parece que deve ser morta. Deseja casar-se com a mãe destes seus filhos. (...) Se o Núncio tiver poder, hajam dele dispensa particular para este João Ramalho poder casar com esta índia, não obstante que houvesse conhecido outra irmã e quaisquer outras parentes dela”. A dispensa nunca deve ter chegado, talvez por ainda existir a mulher portuguesa de Ramalho. Isso não obstou a que João Ramalho se tornasse amigo do padre Manuel da Nóbrega. Da amizade não se esperam proveitos. Mas a inimizade entre os dois homens não traria qualquer proveito para o padre.

     
Precisamente, no ano em que o padre Manuel da Nóbrega escrevia, João Ramalho exercia o seu primeiro cargo público. Em 1553, o governador Tomé de Sousa nomeia João Ramalho capitão da vila de Santo André, que acabara de fundar, na fronteira do Campo de Piratininga; e em 1562 assume o cargo de capitão-mor de S. Paulo Piratininga, deixado vago por morte de Martim Afonso Tibiriçá, seu sogro.

     
Há quem afirme que João Ramalho foi o primeiro europeu a pisar as terras do Continente Americano. Foi seguramente um ‘herói’ diferente do Gama. Terá cumprido ‘heroicamente’ a sua pena de degredado, se é que algum dia o foi.


Fonte: Notícia do Brazil, in Colecção de Notícias para a História e Geografia das Nações Ultramarinas, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1812, vol. III, p. 42;

Pero Lopes de Sousa, Diário da Navegação, in Jaime Cortesão, Pauliceae Lusitana Monumenta Historica, s. d. p. 457 e p. 470;

P. Manuel da Nobrega, Cartas do Brasil e mais Escritos, ed. de Serafim Leite, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1955 - carta de 6 e Janeiro de 1550 ao P. Simão Rodrigues; carta de fins de Agosto de 1552 ao P. Simão Rodrigues; carta de 15 de Junho de 1553 ao P. Luís Gonçalves da Câmara e carta de 31 de Agosto ao mesmo.

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