Revista Digital sobre Tradução - Número 5 - Dezembro 2004


DICIONÁRIO DE TRADUTORES E INTÉRPRETES DE LÍNGUA PORTUGUESA



Jesuítas (Ásia)

Solicitado por D. João III, o primeiro grupo de missionários da Companhia de Francisco de Loyola chega a Goa em 1542. Dos primeiros missionários jesuítas do Oriente talvez apenas o nome de Francisco Xavier mantenha ainda hoje alguma ressonância para o grande público. Tão difícil seria colocar aqui o nome de todos eles quanto fazer silêncio sobre estes intermediários do Ocidente com o Oriente. A documentação que nos chegou é vastíssima. Partindo de Goa, os jesuítas espalharam-se pela costa do Malabar, chegando até onde os portugueses chegavam; sete anos depois estão no Japão (1549) e, um pouco mais tarde, batem às portas da China, onde (Sanchoão) morre Francisco Xavier em 1552.

Agindo no quadro e a favor de uma fé universal em que acreditam, foram também estudiosos da língua e da cultura do outro. Seria injusto que, a propósito do quadro em que actuaram, se não incluíssem estes nomes no inventário geral do nosso dicionário.

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Os primeiros jesuítas necessitaram de intérpretes. Se, por um lado, a necessidade da aprendizagem das línguas autóctones decorre da própria actividade de missionação, por outro, é no interior dessa mesma actividade que os jesuítas irão encontrar os ‘instrumentos’ que lhes permitem efectivar essa aprendizagem. Referimo-nos, evidentemente, aos convertidos e às crianças das escolas e dos colégios que um pouco por toda a parte criaram. O padre Luís Fróis refere dois convertidos na sua carta de Goa de 1559: Manuel de Oliveira e André Vaz (cf. doc. 40 de Documenta Indica, vol. IV). Mais tarde, os seminários serão os locais da aprendizagem das línguas nativas para os irmãos recém-chegados. A Carta Annua de 1576, lembrando os milhares de “gentios” convertidos, apontava ainda quanto importava “ter os necessários obreiros e que estes saibam a língua da terra”. O padre Fernão Guerreiro – que estabelece o número de 600 jesuítas a missionar na Ásia no primeiro ano do século XVII – descreve-nos o trajecto dos jesuítas em Bengala, um percurso que não é certamente muito diferente daqueles que foram realizados noutras paragens. Após as preocupações com a residência e a informação de que os jesuítas aprendiam a língua da terra, acrescenta o padre Guerreiro:

(...) sem a qual pouco se pode fazer. Ajudou-os Nosso Senhor, porque alguns deles a vão já sabendo arrezoadamente e tem já composto nela a doutrina cristã, a qual todos os domingos antes da missa e outra vez de tarde ensinam na igreja em língua Bengala e em Português. E na mesma língua Bengala lhe declaram já também o catecismo.

As gramáticas e os dicionários das línguas locais, que floresceram em todos os lugares onde a presença dos jesuítas se verificava, são um fenómeno dos século XVII. Todavia, em alguns casos, a sua elaboração e circulação em manuscritos deverão situar-se ainda durante o século XVI. Essas obras tinham por objectivo satisfazer as necessidades das escolas e dos irmãos recém-chegados do Ocidente. Assim, o primeiro nome que devemos apontar é o do padre Henrique Henriques. Logo em 1548 terá começado a redigir a gramática da língua malabar. Segundo a documentação consultada, o padre Henrique aparece ainda como o mais dotado de todos os jesuítas do seu tempo; sabemos, através dele, que todos os jesuítas têm o “cuidado de falar a língua”. Mas é o padre Henrique quem os ajuda na tradução dos sermões e no burilar das orações religiosas em língua malabar. A ele se devendo também a tradução da cartilha da Doutrina Cristã na mesma língua, impressa em 1559 em Cochim, na opinião de Américo Cortez Pinto (cf. Da Famosa Arte de Imprimissão, p. 381).

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Conhecer as línguas locais é assunto que não escapa ao rol dos temas da numerosa e fascinante correspondência dos jesuítas. Em Moluco, onde missionou mais de vinte anos, o padre Nicolau Nunes “sabia muito bem a língua daquela terra” (cf. Carta Annua de 1576). A missionar em Ternate, o padre Francisco Vieira dá a entender que conhece a língua malaio, a língua mais falada em toda a Indonésia. E um pouco mais tarde, assim como o padre Henrique havia feito para a língua falada em Cochim, o padre Lourenço Peres fará também, em Goa, a gramática da língua concani.

Quanto ao Japão, o nome do padre Luís Fróis domina toda a época do nosso estudo. Conhecedor profundo da realidade japonesa, a ele se deve a primeira história do Japão escrita por um ocidental. E são vários os testemunhos da sua competência na tradução de lições ministradas nos colégios dirigidos pelos jesuítas, bem como os da sua presença enquanto intérprete junto de outros irmãos da Companhia. O seu nome é referenciado com frequência, por exemplo, junto do Visitador Apostólico Alessandro Valignano – o mesmo Visitador que aconselhava a todos os jesuítas de Salsete que aprofundassem a competência comunicativa na língua local, falando entre eles apenas nessa língua. Na opinião do padre Francisco se Sousa (cf. O Oriente Conquistado a Jesus Cristo, p. 274), em apenas seis meses, todos falavam admiravelmente o canarim. Confrontada a opinião do padre Francisco de Sousa com aquilo que sobre o mesmo assunto diz a Carta Annua de 1576, verificámos que não há divergência entre as duas fontes.

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A criação e a administração de escolas são aspectos que não podem deixar de ser focados, quando se trata da Companhia de Jesus. Os jesuítas, continuando uma prática começada com os primeiros governadores da Índia, administram algumas das escolas criadas alguns anos antes pelos franciscanos e criam outras de raiz. Com alunos de todas as partes do Oriente, inclusive da África oriental, podemos imaginar facilmente a diversidade linguística dos falantes que frequentavam o Colégio de S. Paulo de Goa. Na perspectiva que é a nossa, o ensino do português que estes homens promoviam e ministravam nas suas escolas e colégios, constitui, portanto, a outra vertente do quadro que importa realçar. Roque de Oliveira, um mês depois da sua chegada a Malaca (1548), conseguia que 180 alunos frequentassem o seu colégio (Américo Cortez Pinto, op. cit., p. 391). Gaspar Barzeu é outro dos primeiros nomes assinalados., em 1553 aparece como responsável para uma escola dirigida a todos e com instalações próprias, independentes da casa dos jesuítas. No ano seguinte, o padre Afonso de Castro, em Ternate, oferece-nos o testemunho do ensino e da leitura em português, quando refere a necessidade de livros naquelas paragens.

Segundo a Carta Annua, só em Goa, no ano de 1576, frequentavam a escola de ler e escrever seiscentas pessoas; e no seminário de Salsete, num sistema de paridade que deve realçar-se, funcionavam duas escolas de aprender a ler e escrever, uma de português e outra da língua da terra.

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Para obviar à dificuldade da chegada de livros ao Oriente, numa altura em que o livro em Portugal se imprimia em número reduzido de tiragens, é instalada em Goa a primeira tipografia no ano de 1556. A tipografia, para além de permitir melhor e maior circulação de obras que até então circulavam em manuscritos, impulsiona a actividade tradutora, aproveitando as competências linguísticas entretanto adquiridas. Os dados de Américo Cortez Pinto, até ao século XVIII, apontam para uma maioria de obras em edições bilingues, representando estas quase o dobro das editadas exclusivamente em língua portuguesa. Só no que diz respeito ao século XVI, contámos 17 títulos, incluindo os Colóquios dos Simples e Drogas da Índia de Garcia da Orta, impresso em 1563 com um poema de Luís de Camões (cf. Américo Cortez Pinto, op. cit., toda a IV Parte).

Outros nomes poderiam ainda ser evocados. João Fernandes, segundo o padre Francisco de Sousa era “eloquentíssimo na língua japonesa” e “tão exercitado na língua do Japão que (...) fala muito melhor que muitos dos naturais”, na opinião do padre Francisco Cabral (cf. doc. 53 de Documenta Indica, vol. IV, p. 447); Fernão Mendes Pinto – o autor celebrado da Peregrinação, jesuíta durante alguns anos e acompanhante do padre Belchior Barreto à corte do rei do Bungo em 1556, tendo nessa altura o padre João Fernandes servido de intérprete – é outro dos nomes a lembrar.

Com o aproximar do termo do século XVI, as referências voltam-se para a língua chinesa. Com a concessão de Macau em 1557, os jesuítas encontram finalmente a porta da entrada para a grande China. Em documento datado do ano de 1592, Duarte de Sande, João Soeiro e João Rocha estudam na residência dos jesuítas de Macau a língua chinesa. Três anos mais tarde ainda Alessandro Valignano considerava a evangelização da China como “pura quimera”.

Talvez nem sempre nem unanimemente tenham os jesuítas actuado em toda a Ásia. No Oriente Conquistado a Jesus Cristo, o padre Francisco de Sousa faz eco da controvérsia havida sobre o modo de agir da Companhia de Jesus no Japão. “Guardar os costumes da terra” era o pomo da discórdia. Daí advirá para os padres do Japão, dizia o padre Valignano, “maior perseguição” do que a do “ferro e fogo dos idólatras”. Fruto de largos anos de experiência, o modo de actuar no Japão foi transportado para outros lugares.


Fonte: Joseph Wicki S. J., Documenta Indica, Roma, M. H. Societatis Iesu, 1948-1988, vol. II, pp. 304-305; vol. IV, p. 447 e pp. 316-353; vol. X, pp. 704-775 (Carta Annua de 1576);

P. Fernão Guerreiro, Relaçam Annual..., Évora, Manuel de Lyra, 1602, cap. I e XIX;

António Silva Rego, Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente - Índia, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1947-1958, vol. II, p. 323; vol. IV, p. 313 e p. 368; vol. , p. 9; vol. VII, p. 135 e p. 176;

Artur Basílio de Sá, Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente - Insulíndia, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1954-1998, vol. II, p. 135;

Padre Francisco de Sousa, Oriente Conquistado a Jesus Cristo pelos Padres da Companhia de Jesus da Província de Goa, Porto, Lello & Irmãos, 1978, Conquista IV, D. I e D. II;

Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, vol. II, cap. 225;

Américo Cortês Pinto, Da Famosa Arte de Imprimissão, Lisboa, Ulisseia, 1948.

© Instituto Camões, 2004