Número 11 - Abril 2007

ARTIGO

O Centro de Tradução da Administração Pública de Macau



Ruínas da antiga Igreja de São Paulo em Macau.
Ruínas da antiga Igreja de São Paulo em Macau

A 13 de Abril de 1987, os governos português e chinês, representados pelo então Primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, e por Zhao Ziyang, assinaram a Declaração Conjunta, que previa a transferência da soberania de Macau para a China, a 1 de Janeiro de 1999. No período entre a assinatura da Declaração Conjunta e a transferência da soberania, a população local desinteressou-se pelo português, optando por não o ensinar aos filhos, mas, nos últimos anos, a tendência inverteu-se e a língua portuguesa tem vindo a aumentar a sua presença no antigo território português.

Este novo fôlego deve-se a vários factores: na esfera económica, a China aposta no fortalecimento das suas relações comerciais com os países lusófonos e considera Macau como porta de entrada a esses mercados. Os imigrantes chineses também se interessam pela aprendizagem do português e, acima de tudo, a Declaração Conjunta prevê que “as leis vigentes manter-se-ão basicamente inalteradas” durante um período de 50 anos, após a transferência, ou seja, até 2049, o ordenamento jurídico português continuará a vigorar em Macau.

Essa disposição legal assegura a posição do português, porque as leis estão redigidas em português e quem trabalhar com elas terá que dominar a língua. Por enquanto, devido a uma falta de juristas macaenses formados, a magistratura e os advogados em Macau, a sua grande maioria ainda são portugueses. E, mesmo após o período de transição de 50 anos, os juristas continuarão a consultar os diplomas redigidos em português. Por essas razões, as autoridades macaenses atribuem dezenas de bolsas aos seus estudantes para frequentarem cursos de licenciatura em Direito nas faculdades portuguesas.

Actualmente, todo o aparelho jurídico e administrativo em Macau funciona em duas línguas: o português e o cantonense. O bilinguismo requer um esforço enorme de tradução e interpretação, mas, felizmente, apesar da administração portuguesa do território ter funcionado apenas em português, existe uma longa tradição de formação nessas áreas em Macau. A Escola Superior de Línguas e Tradução de Macau foi fundada em 1905 e, ao longo de mais de 100 anos, tem contribuído para a qualificação de tradutores e intérpretes de ligação que trabalham entre o Português e o Chinês. Em 1991, a Escola foi integrada no Instituto Politécnico de Macau, onde, graças à preocupação das autoridades da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) com a formação nessas áreas, são leccionados, ainda hoje, cursos em Língua Portuguesa e em Tradução.

Os serviços de tradução e interpretação tiveram que acompanhar as recentes mudanças políticas, tendo conhecido, por isso, vários desenvolvimentos ao longo dos últimos anos. Durante a época colonial, a língua exclusiva da administração era o português, existindo um Serviço de Assuntos Chineses, que facultava um atendimento em cantonense à população local. Porém, logo após a assinatura da Declaração Conjunta, o Cantonense começou a ganhar importância, tendo sido lançada, nessa altura, uma campanha de recrutamento de tradutores e intérpretes por parte das autoridades macaenses, o que levou posteriormente à criação de um Centro de Tradução e Interpretação da Administração Pública (CTAP) em 1990. Ao mesmo tempo, criou-se um gabinete de tradução e interpretação para servir os órgãos da justiça.
Em 1992, o Cantonense foi reconhecido como a segunda língua oficial no território, embora a administração continuasse a funcionar apenas com o Português até à transferência da soberania. De qualquer modo, os dados já estavam lançados. A partir desse momento, a procura de tradutores e intérpretes começou a crescer exponencialmente.

Hoje em dia, existem 180 tradutores e intérpretes na carreira da função pública. A grande maioria trabalha como tradutores no Centro de Tradução da Administração Pública, enquanto outros foram destacados para diferentes serviços e institutos públicos, tais como o Serviço das Finanças e o Instituto do Desporto. O número de intérpretes simultâneos continua reduzido e vários dos que estão integrados no CTAP foram destacados para os tribunais para responder à necessidade urgente de mais profissionais dessa área.

Desde a transferência da soberania, aumentou não só o volume de trabalho de tradução mas também a diversidade das áreas temáticas. Em 2004, o CTAP traduziu aproximadamente 33,000 páginas e prestou serviços de interpretação simultânea em 400 reuniões.

Entretanto, no domínio jurídico, a Declaração Conjunta definiu a norma: foi redigida nas duas línguas, português e chinês, fazendo fé as duas versões. É por essa razão que os linguistas que trabalham na Direcção de Serviços da Administração da Justiça tiveram de enfrentar um desafio particular: tiveram de traduzir todo o acervo legislativo para chinês, fruto do bilinguismo iminente do território. Actualmente, estão destacados para essa Direcção de Serviços 10 tradutores da função pública que asseguram que todos os diplomas que entram em vigor no território existem nas duas línguas.

Apesar de existir uma única carreira na função pública de tradutor/intérprete, a maioria dos efectivos foram formados apenas como tradutores, sendo que apenas uma dezena deles está preparada para desempenhar as funções de intérprete simultâneo. Esta escassez de intérpretes preocupa seriamente as autoridades da RAEM, levando-as a procurar a ajuda da Direcção-Geral de Interpretação da Comissão Europeia no sentido de formar mais profissionais nesse ramo. No segundo semestre de 2006, realizou-se um projecto-piloto que consistiu num programa intensivo de 5 meses de formação em Macau, Bruxelas e Lisboa com um grupo de 8 formandos. Todos já trabalhavam na função pública macaense, alguns inclusive como tradutores. Um dos aspectos mais interessantes do projecto-piloto tinha a ver precisamente com o perfil linguístico dos formandos: alguns eram macaenses ou macaístas, ou seja de ascendência mista luso-chinesa, outros eram chineses de Macau, de língua materna cantonense, e um deles era do norte da China, imigrante em Macau, de língua materna mandarim e que trabalhava com o Português e o Mandarim. Embora não haja diferença na escrita entre o Cantonense e o Mandarim, os falantes de um não percebem os falantes do outro. Daí que, entre este pequeno grupo de formandos, o português permitisse ultrapassar barreiras linguísticas. Sem dúvida, trata-se de uma situação interessante que, com o crescente interesse no português por parte de imigrantes chineses em Macau, talvez nos permita sonhar que a língua portuguesa não se manterá apenas como língua administrativa e judicial até meados do século, mas que sobreviverá para além do período de transição nessas esferas e na sociedade macaense em geral.

© Instituto Camões, 2007